Síndrome de Choque Tóxico Estafilocócico
O Síndrome de Choque Tóxico Estafilocócico (SCTE) foi descrito pela primeira vez
em 1978 (1) associado a casos menstruais, isto é, secundário ao uso de tampões
altamente absorventes.
O SCTE é provocado essencialmente pela toxina-1 do Síndrome de Choque Tóxico
sendo produzida por 90100% das estirpes de Staphylococcus aureusassociados aos
casos menstruais e por mais de metade das estirpes responsáveis pelos casos
não-menstruais (2,3).
O S. aureusé um coco aeróbico, Gram-positivo, responsável por várias infecções,
variando em gravidade desde foliculites e abcessos cutâneos até endocardite e
bacteriémia. O S. aureuscoloniza a pele e as mucosas de 30 a 50% de adultos e
crianças saudáveis (4).
Para o diagnóstico desta rara entidade clínica, devemonos basear nos critérios
revistos em 1997 pelo Centers for Disease and Prevention(CDC), que ainda se
mantêm actuais (Tabela1) (5).
Aproximadamente metade dos casos de SCTE são não-menstruais, ocorrendo em
várias situações clínicas, nomeadamente em infecções puerperais da ferida
operatória, mastite, septorinoplastia, sinusite, osteomielite, artrite,
queimaduras, lesões cutâneas, infecções respiratórias por influenza e
enterocolite (6); entre todos estes casos, 93% envolvem mulheres.
A taxa de mortalidade do SCTE é de 5% (7).
CASO CLÍNICO
Doente de 30 anos, caucasiana, casada e natural de Paredes. Gesta 2 Para 3 (1º
parto eutócico; 2º parto distócico por cesariana por gemelar e 1º feto em
apresentação de pelve).
Antecedentes ginecológicos: menarca - 12 anos, interlúneos regulares (28/
28 dias); cataménios - 5 dias. Coitarca - 20 anos.
Antecedentes pessoais e familiares irrelevantes.
Foi internada às 38 semanas de gestação, na véspera da cirurgia, tendo a mesma
ocorrido sem intercorrências. Teve alta ao 3º dia de puerpério, clinicamente
bem.
Ao 6º dia de puerpério iniciou febre (Ta - 39ºC), rash macular pruriginoso
generalizado, astenia e mau-estar geral, com 3 dias de evolução, sintomatologia
esta acrescida de dispneia, náuseas e dor abdominal no 3º dia, pelo que
recorreu ao Serviço de Urgência (SU) do Centro Hospitalar Tâmega e Sousa.
No SU, apresentou-se prostrada, muito queixosa, com febre (Ta - 39ºC),
hipotensão (TA - 85/45 mm/Hg), taquicardia (FC - 145 bpm), taquipneia (FR - 48
ciclos/min), eritema não descamativo generalizado, com acentuação nas regiões
abdominal, torácica,joelhos, palma das mãos e planta dos pés. O exame abdominal
revelou abdómen difusamente doloroso à palpação, globoso, com defesa e ruídos
hidraéreos intestinais diminuídos; a ferida operatória não apresentava sinais
inflamatórios. O exame ginecológico e mamário não revelaram alterações, com
lóquios e involução uterina normais.
As principais alterações dos exames laboratoriais foram: hemoglobina 16,9 g/dl,
hematócrito 47,4%,leucóci-tos 7,5x103/µl, neutrófilos 95,4%, plaquetas 90000/
mm3, ureia 68 mg/dl, creatinina 2,2 mg/dl,AST 145 UI/L,ALT 151 UI/L, PCR 336,4
mg/dl e estudo da coagulação normal.
A ecografia abdominal e pélvica revelou a presença de cavidade uterina virtual,
líquido livre em grande quantidade e distensão marcada das ansas intestinais,
com conteúdo líquido.
Atendendo à presença de abdómen agudo, procedeu-se a laparotomia exploradora.
Após a remoção dos agrafes, verificou-se a saída de exsudado purulento em
elevada quantidade (enviado para exame cultural e teste de sensibilidade aos
antibióticos). A cavidade abdominal e pélvica encontrava-se preenchida com
moderada quantidade de exsudado seroso, tendo-se procedido a lavagem abundante
com soro fisiológico (SF).
Esteve na Unidade de Cuidados Intensivos durante 3 dias, em ventilação mecânica
assistida durante 24 horas. Foi-lhe efectuada fluidoterapia e suporte
vasopressor com dopamina. Iniciou antibioterapia empírica com Clindamicina (600
mg 6/6 horas, endovenoso-ev) associado a tigecilina (50 ml em 100 cc SF, em
duas doses, ev), durante 14 dias.
A doente apresentou boa evolução clínica e analítica (normalização dos valores
laboratoriais no final da 2ª semana), tendo-se isolado S. aureus sensível à
meticilina no sangue e no exsudado purulento. Teve alta ao 21º dia.
Cerca de 1 ano após esta ocorrência, a doente encontra-se bem e sem sequelas
aparentes.
DISCUSSÃO
Neste caso clínico, verificamos a presença de febre, hipotensão, erupção macular
generalizada associados a envolvimento hematológico, renal e hepático. As
hemoculturas confirmaram a existência de S. aureusmeticilino-sensível. Segundo
os critérios do CDC, reúnem-se os critérios necessários ao diagnóstico de SCTE.
Na presença de uma doente em choque associado a abdómen agudo, foi urgente e
inevitável a necessidade de iniciar antibioticoterapia e de efectuar
laparotomia exploradora pela forte suspeita de clínica de abcesso intra-
abdominal ou então exclusão de outras situações patológicas (ex: presença de
corpos estranhos intraabdominais, atendendo à cirurgia recente a que foi
submetida).
Os sintomas e sinais de SCTE desenvolvem-se rapidamente, sendo em média 2 dias
nos casos póscirúrgicos; contudo, já foram descritos casos ocorridos 65 dias
após a cirurgia (8).
O diagnóstico do SCTE é baseado nos critérios do CDC (5) (Tabela 1). Para
cumprir os critérios, os doentes devem apresentar febre >38,9ºC, hipotensão,
eritema difuso e descamativo (este na convalescença) e envolvimento de, pelo
menos, 3 sistemas orgânicos. Apesar de 80-90% destas doentes apresentarem
isolamento de S. aureusdas feridas operatórias ou das superfícies mucosas, o
isolamento do agente não é necessário parao diagnóstico do SCTE.
Tabela 1 - Definição de Síndrome de Choque Tóxico baseado nos critérios do CDC
(1997).
A apresentação clínica é semelhante nos casos menstruais ou não-menstruais; num
estudo efectuado com pequena amostra, os SCTE não-menstruais foram associados a
início mais precoce de rash e febre, complicações renais e do SNC e menos
envolvimento musculo-esquelético. As feridas operatórias frequentemente
apresentam aspecto normal devido à menor reacção inflamatória associada à toxina
tipo 1 do S. aureus (9).
Embora a maioria dos casos de SCTE seja provocada por S. aureusmeticilino-
sensíveis, a emergência de S. aureusmeticilino-resistentes (MRSA) é uma
realidade, particularmente devido à presença de estirpes da comunidade cada vez
mais patogénicas e, por outro lado, ao uso generalizado e frequente de
antibioterapia (10,11).
As alterações laboratoriais reflectem a presença de choque e a falência
orgânica.Aleucocitose pode não estar presente, mas o número total de neutrófilos
maduros e imaturos geralmente excede 90%, com neutrófilos imaturos
correspondendo a 25-50% do total. Trombocitopenia e anemia estão presentes
durante os primeiros dias, frequentemente acompanhados por tempo de protrombina
e tromboplastina parcial activada prolongados. Outras alterações laboratoriais
que reflectem falência orgânica incluem: elevação da ureia e creatinina séricas,
elevação dos testes da função hepática e elevação da creatininafosfocínase
(CPK). A maior parte dos testes laboratoriais volta ao normal 7 a 10 dias após
o início da doença.
A pedra angular do tratamento do SCTE é o tratamento de suporte. Os doentes
necessitam de fluidoterapia intensiva (10 a 20 litros/dia) para manter a
perfusão devido à presença frequente de hipotensão refractária. Embora a
pressão arterial possa melhorar apenas com fluidoterapia, por vezes pode ser
necessário o recurso a vasopressores. É obrigatória a exclusão de materiais
estranhos na vagina (ex: tampões, esponjas contraceptivas) bem como a drenagem
de qualquer foco infeccioso.
Hemoculturas, culturas e teste de sensibilidade aos antibióticos da vagina nos
casos menstruais ou de material obtido a partir de um foco infeccioso ou de
ferida operatória nos casos não-menstruais são essenciais devido à
possibilidade da presença de um microorganismo MRSA (10,11).
Relativamente à antibioterapia, não há consenso se os antibióticos alteram o
curso desta doença; no entanto, a terapêutica anti-estafilocócica é necessária
para a erradicação dos portadores e prevenção das recorrências. As
recomendações actuais são para iniciar tratamento empírico com clindamicina
(adultos: 600 mg 6/6horas, ev) associada a vancomicina (adultos: 30 mg/Kg/dia,
ev, dividido em 2 doses). Caso haja disponibilidade de cultura e teste de
sensibilidade aos antibióticos, deve administrar-se clindamicina associado à
oxacilina (2 g 4/4horas, endovenoso) ou tigecilina (50 ml em 100 cc SF,
repartido por duas doses/dia). Dever-se-á manter a vancomicina na presença de
MRSA (12), com duração de tratamento entre 10 a 14 dias.
Apesar de não existirem estudos randomizados e controlados com o uso de
globulina imune endovenosa, está recomendado o seu uso nos casos graves de SCTE
refractários à fluidoterapia, na dosagem de 400 mg/Kg em dose única (13). Não se
recomenda o uso de corticóides dado que não existem dados suficientes que apõem
esta prática.
CONCLUSÕES
Embora o puerpério não receba a mesma atenção que muitos outros aspectos da
gravidez, a sua importância permanece incontestável, atendendo a que 60% da
mortalidade materna ocorre durante este período, sendo a infecção puerperal a
complicação mais frequente.
Os factores de risco para o caso apresentado foram: a gravidez, a Diabetes
Gestacional, o puerpério, o internamento hospitalar e a intervenção cirúrgica.
Os 3 primeiros contribuíram pela imunosupressão a que estão associados, a
intervenção cirúrgica constituiu provavelmente a porta de entrada e o
internamento hospitalar na provável aquisição duma infecção nosocomial.
Em suma, apesar de constituir uma entidade clínica rara, é necessário ter
presente os critérios diagnósticos do CDC para que seja prontamente
diagnosticada e tratada atempadamente contribuindo, desta forma, para uma
evolução favorável e prevenção de sequelas e recorrências.