Acesso, Práticas e Barreiras ao Teste VIH
Introdução: Os benefícios decorrentes da identificação precoce da infecção pelo
VIH são inequívocos, quer do ponto de vista individual, ao permitir o
encaminhamento adequado das pessoas que vivem com a infecção e o início
atempado de tratamento, quer do ponto de vista comunitário, ao constituir peça
central na estratégia de prevenção de novas infecções. Na Europa estimou-se que
15 a 38% dos diagnósticos de infecção VIH eram tardios, estando esta proporção
aparentemente a aumentar ou, na melhor das hipóteses, a manter-se. A UE definiu
como prioridade alargar o acesso ao teste e reduzir a proporção de indivíduos
infectados não diagnosticados. Para isso é necessário compreender o contexto
actual de realização do teste, definindo o acesso, as práticas e as barreiras.
Com esse propósito, e no âmbito de um estudo envolvendo cinco países europeus,
foi aplicado um questionário a doentes com infecção VIH seguidos em três
centros hospitalares nacionais.
Os objectivosforam: identificar os locais de realização do teste, compreender
quais as condições/contexto em que é realizado, caracterizar as barreiras ao
acesso, compreender a magnitude e identificar características associadas ao
diagnóstico tardio.
Material e métodos: De Julho a Outubro de 2008 e de Janeiro a Fevereiro de 2009
foi aplicado um questionário voluntário e anónimo a doentes que frequentavam as
consultas especializadas dos Hospitais de São João, Joaquim Urbano e Santa
Maria. Critérios de inclusão: idade superior a 17 anos e diagnóstico de
infecção VIH há menos de 3 anos. Critério de exclusão: primeira consulta. A
associação entre as características dos participantes e o diagnóstico tardio
(resultado principal) foi estimada através do cálculo de odds ratios (OR) e
respectivos intervalos de confiança a 95% (IC 95%).
Resultados: Preencheram o questionário 301 doentes: 53% do Hospital São João,
9% do Hospital Joaquim Urbano e 38% do Hospital Santa Maria. Dos participantes,
68,7% eram homens; a idade mediana (percentil 25 - percentil 75) foi 39
(31-50) anos; 18,2% não nasceram em Portugal. As vias de transmissão da
infecção mais frequentes foram a sexual, em 68,3% (heterossexual em 50,7%, HSH
em 17,6%) e o consumo de drogas endovenosas em 7,1%. No entanto 22% declararam
desconhecer qual o modo de transmissão da infecção.
O Centro de Saúde / consulta de Medicina Geral e Familiar foi o local de
realização do teste para 37,7%. Dos restantes, 17,7% foram diagnosticados no
contexto de internamento hospitalar, 11,7% no Serviço de Urgência hospitalar,
10,3 % em consulta de infecciologia/venereologia, 3,0% num centro de
aconselhamento e diagnóstico (CAD), 2,7% num centro de atendimento a
toxicodependentes e os restantes 17% em consultas de outras especialidades,
laboratórios privados, serviços de sangue ou estabelecimentos prisionais. Não
houve diferenças significativas entre sexos. Afirmaram ter feito o teste por
iniciativa própria 29,1% dos homens e 16,7% das mulheres. Responderam ter um
teste negativo anterior 34,0% dos homens e 28,3% das mulheres. Os motivos
apontados para a não realização de teste prévio ao que identificou a infecção
foram, respectivamente, em homens e mulheres: baixa percepção de risco 76,5%
vs. 86,2%; dificuldades "logísticas" 9,2% vs. 10,3%, medo pessoal/
social 0,8% vs.1,7%, ausência de sintomas 8,4% vs. 1,7%.
A gratuitidade do teste foi confirmada por 70,4% dos participantes e todos
afirmaram ter tido facilidade no acesso ao local de teste. Negaram ter recebido
aconselhamento pré teste 77,2%. Referiram ter-lhes sido pedido consentimento
explícito para a realização do teste 44% dos participantes e 53,1% responderam
desconhecer a possibilidade de recusa do teste.
À data do diagnóstico, 65.3% dos doentes apresentavam uma contagem de
linfócitos T CD4 inferior a 350/mm3 (o que foi considerado diagnóstico tardio).
Os factores que se associaram significativamente a um diagnóstico tardio foram
(ORs ajustados para idade, sexo e categoria de transmissão): o sexo masculino
(OR: 2,01 (IC95%:1,11-3,63)), a idade (OR (por ano):1,03 (1,00-1,05)), realizar
o teste por iniciativa médica (OR:1,92 (1,05-3,50)), realizar o teste no
hospital (OR:4,27 (1,99-9,17)), realizá-lo por doença (OR:4,10 (2,12-7,92)). A
realização do teste por rotina ou tendo como motivos a preocupação ou parceiro
seropositivo foram factores associados a um diagnóstico precoce. Quando
questionados quanto a estratégias que permitissem diagnóstico mais precoce,
57,5% dos doentes sugeriram que os médicos deveriam testar todos os doentes,
55,5% que os testes deviam ser rotina e 36,5% que devia haver mais campanhas de
incentivo ao teste.
Discussão:Os locais onde mais frequentemente o teste foi proposto foram o
centro de Saúde e o Hospital. Uma pequena proporção realizou o teste por
iniciativa própria. Relativamente ao contexto/condições do teste, a maioria dos
doentes teve acesso fácil e gratuito ao teste, mas só uma minoria refere ter
tido aconselhamento prévio e apenas 44% confirmaram a existência de um pedido
explícito de consentimento, dados que apontam para falhas de informa-ção/
comunicação no momento do teste. A proporção de doentes que nunca tinha feito
qualquer teste previamente ao que identificou a infecção foi de 68%. A baixa
percepção de risco foi apontada pelos doentes como a principal barreira ao
teste e cerca de 22% declararam desconhecer qual o modo de transmissão da
infecção, revelando lacunas importantes no conhecimento da infecção pelo VIH.
Na amostra estudada, o diagnóstico de infecção pelo VIH foi tardio em 65,3% dos
casos, com previsíveis repercussões graves a nível individual e das estratégias
de saúde pública. Ser homem ou ter idade mais avançada foram factores que se
associaram de forma significativa a um diagnóstico mais tardio. A realização do
teste por rotina ou tendo como motivos a preocupação ou parceiro seropositivo
foram factores associados a um diagnóstico precoce.
As opiniões expressas pelos participantes como forma de promover o diagnóstico
precoce revelam uma cultura de responsabilização médica e social que deverão
ser tidas em conta na definição de novas estratégias.