Confidencialidade, Aconselhamento e Discriminação
Confidencialidade, Aconselhamento e Discriminação
Maria do Céu Rueff
Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Na exposição que se segue ter-se-ão em conta três mudanças de paradigma nesta
matéria:
1 - Da "doença dos outros" à doença que "está entre
nós" e é susceptível de atingir todos.
2 - Da notícia da mortalidade à notícia da vida em diferente realidade,
ou a terapia anti-retroviral que permite viver com relativa qualidade.
3 - Da política de saúde pública de isolamento à defesa dos Direitos
Humanos em saúde (1, 2)
.
Um estudo da Pan American Health Organization (3) pôs em evidência como
estigma, discriminação, HIV/AIDS se relacionam e potenciam, tornando claro que
o ponto de partida para um cenário ideal reside na identificação do HIV através
de testes, que permitirão os cuidados de saúde e apoio, evitando-se o estigma e
atingindo-se a prevenção, num ciclo que deveria suceder-se.
Recordámos a política dos "três Cs": consent, counselling,
confidentiality -, dos instrumentos internacionais (4) e a questão médica dos
modos de transmissão do vírus (é o comportamento não protegido - e
portanto não esclarecido acerca dessa possibilidade - que cria a
susceptibilidade de transmissão, transformando-se no comportamento de risco).
Enfatizou-se o repúdio do "isolamento epidemiológico" dos chamados
grupos de risco (5), sendo recordado que tal política significa não só a negação
da verdade de que qualquer pessoa, seja qual for o grupo a que pertence, pode
ser responsável pela propagação de HIV, como leva à discriminação arbitrária.
Os perigos pressentidos na política de detecção precoce relacionam-se com as
seguintes questões, entre as mais frequentes colocadas no âmbito da discussão
ético-jurídica:
a) A identificação do síndroma por meio de exame para detectar a infecção
precoce deve ser obrigatória e determinando a falta de consentimento para a
obtenção do teste?
Qualquer intervenção médica é considerada interferência no direito ao respeito
pela vida privada, constituindo privação da liberdade. Recolher sangue no
âmbito de exame médico para detectar HIV constitui ofensa à integridade física
e se for efectuada por médico sem consentimento do paciente é facto que
consubstancia o crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos
arbitrários - art 156º do C. Penal. A licitude dos testes de despistagem só
ocorre com o consentimento informado, só então havendo compatibilidade com o
artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Pareceimprovável, nas circunstâncias presentes, que algum esquema de rastreio
obrigatório pudesse vir a satisfazer o teste de "ser necessário numa
sociedade democrática", para protecção da saúde pública, tal como exige o
nº 2 do art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (política do
Conselho da Europa, desde Recomendação Nº R (89) Comité de Ministros de 24 de
Outubro de 1989). Alternativa: disponibilidade da realização de testes
voluntários e campanha baseada na informação e educação, que encoraje o
abandono de comportamentos de risco.
b) A Portaria nº 258/2005, de 16 de Março, que determinou a inclusão da
infecção por HIV/Sida na tabela de doenças de declaração obrigatória,
significará o fim da confidencialidade médica em matéria de HIV/Sida?
O objectivo da Portaria expressa no verso da folha de notificação: Definição de
Casos de Sida para Fins de Vigilância Epidemiológica. Estatuiu-se apenaso dever
de declaração dos casos de HIV/Sida ao Centro de Vigilância Epidemiológica das
Doenças Transmissíveis, a coberto de confidencialidade, para um correcto
entendimento do número de casos. Isto não desencadeia a aplicação à situação de
HIV/Sida de regimes associados às tradicionais doenças contagiosas,
nomeadamente: a Lei nº 2 036, de 9 de Agosto de 1949 (luta contra as doenças
contagiosas), ou diplomas que prevêem a evicção escolar por motivos de doenças
transmissíveis.
A Portaria nº 258/2005 prevê o modo de protecção dos dados a fornecer, pelo que
o dever de declaração é feito de modo "procedimentalmente"
controlado, não se confundindo com comunicação de informação a terceiros.
c) A instituição de programas de detecção precoce implica a quebra do segredo
médico e a não protecção do anonimato e dos dados médicos em Saúde?
A resposta é liminarmente negativa.
A protecção do segredo médico ancora-se no art. 26º da CRP. As garantias legais
da sua protecção encontram-se neste preceito e no Código Penal através da
previsão dos crimes de violação de segredo e violação de segredo por
funcionário público (artigos 195º e 383º).
A Lei (da Protecção de Dados Pessoais - LPDP) nº 67/98, de 26 de Outubro,
proíbe em geral o tratamento de "dados sensíveis" (art 7º, nº 1),
onde se referem, entre outros, dados pessoais atinentes à vida privada, origem
racial ou étnica, bem como dados relativos à saúde e à vida sexual, incluindo
os dados genéticos.
Também os artigos 85º a 93º do Código Deontológico dos Médicos (Regulamento nº
14/2009, DR, 2ª Série, Nº 8, 13 de Janeiro de 2009) vinculam os médicos ao
segredo, sob pena de sanção disciplinar.
O estudo ONUSIDA (6) Estigma, discriminação e violação dos direitos humanos em
relação ao HIV - Estudos de casos de programas bem sucedidosrevelou que,
apesar de metade das pessoas com HIV entrevistadas terem dito guardar segredo,
45% afirmaram que as equipas de cuidados lhes tinham dado confiança bastante para
partilhar as informações sobre a sua seropositividade com outros, aumentando o
número de pessoas dispostas a "tornar público" o seu estado
serológico, depois de revelarem em grupos de apoio. Aconteceu assim no Projecto
do Cambodja e manteve-se a tendência nos projectos da Tailândia, Bielorrússia e
Uganda.
Mas há que ter em conta duas notas importantes:
1) Não confundir programas de detecção (voluntária) precoce com testagem
obrigatória.
2) Não confundir revelação pública do estado serológico, por vontade própria,
com cessação da confidencialidade. É que esta confidencialidade permite que as
pessoas possam vir sem medo ao sistema para serem testadas, ao passo que aquela
mostra apenas que tais pessoas podem viver sem esconder o estatuto serológico
porque não serão então discriminadas. Nisto consiste o paradoxo do segredo:
respeitando-se a confidencialidade é aumentada a confiança, sendo potenciadas as
condições que permitem maior franqueza e abertura à verdade em saúde.