Osteonecrose da Mandíbula Associada ao Uso de Bifosfonatos: Uma Patologia
Secundária Grave
INTRODUÇÃO
Na década de 60, os bifosfonatos surgiram como arma terapêutica em patologias
com alto índice de reabsorção óssea - hipercalcemia neoplásica, Doença de
Paget e metastização óssea. Actualmente, são fármacos de primeira escolha no
tratamento da osteoporose, sendo que mais de dois milhões de pessoas a nível
mundial se encontram medicados com bifosfonatos (1).
Os bifosfonatos são análogos químicos do pirofosfato com a capacidade de
ligação ao osso e inibição da função dos osteoclastos. Actuam ligando-se à
matriz mineral óssea exposta na sequência da acção osteoclástica. Devido ao
facto de não serem metabolizáveis no organismo humano, a sua concentração a
nível ósseo é mantida por longos períodos de tempo, interrompendo a reabsorção
óssea mediada pelos osteoclastos. A nível tecidular, os bifosfonatos inibem a
reabsorção óssea e diminuem o turnover ósseo. A nível celular, os bifosfonatos
actuam directamente nos osteoclastos, inibindo a sua função de variadas formas:
através da inibição do recrutamento dos osteoclastos; da diminuição do tempo de
vida dos osteoclastos e da inibição da sua actividade na superfície óssea. A
nível molecular, os bifosfonatos actuam ligando-se com o receptor de superfície
dos osteoclastos ou a uma enzima intracelular (2).
Actualmente, estão disponíveis no mercado bifosfonatos de administração
intravenosa e oral. Os bifosfonatos orais são primariamente utilizados no
tratamento da osteoporose, contudo existem outras indicações menos frequentes
como: a Doença de Paget e a Osteogenesis Imperfecta. Os bifosfonatos
intravenosos (IV) estão indicados para o tratamento da hipercalcemia associada
ao mieloma múltiplo e a tumores sólidos com metastização óssea (cancro da mama,
prostata e pulmão). Os bifosfonatos IV são eficazes na prevenção e redução da
hipercalcemia, na estabilização de patologia óssea e na prevenção de fracturas.
Apesar de não ter sido demonstrado um aumento da sobrevida, os bifosfonatos
melhoram significativamente a qualidade de vida em doentes com neoplasias
malignas avançadas com envolvimento no sistema esquelético (3). Os bifosfonatos
IV disponíveis no mercado são: o pamidronato e zoledronato.
Sintomatologia do tipo gripal, astenia, anemia, sintomatologia
gastrointestinal, dispneia, edema, elevação dos níveis de creatinina e úlceras
esofágicas são algumas das reacções adversas descritas para o tratamento com
bifosfonatos.
A Osteonecrose da Mandíbula Associada ao uso de Bifosfonatos (OMAB) é uma
entidade clínica relativamente recente. Em 2003, Marx descreveu pela primeira
vez esta patologia em doentes medicados com pamidronato e zoledronato (4). As
estimativas de incidência variam entre 0,8 e 12% (3,5), contudo, baseiam-se em
pequenos estudos retrospectivos e com amostras pouco significativas. Apesar de
menos frequente, esta patologia está também associada ao uso de bifosfonatos
orais (incidência 0,7/100.000 pessoas/ ano de exposição) (5). Esta patologia
secundária grave afecta gravemente a qualidade de vida, produzindo morbilidade
significativa. Em 2007, a American Association of Oral and Maxillofacial
Surgeons(AAOMS) definiu a Osteonecrose da Mandíbula Associada ao uso de
Bifosfonatos como a existência simultânea de três critérios: a) tratamento com
bifosfonatos actual ou prévio; b) necrose óssea na região maxilofacial que
persista por mais de 8 semanas e c) inexistência de história de radioterapia
local. Para o diagnóstico preciso de OMAB é necessário distingui-la de outras
entidades mais comuns, nomeadamente sinusite, gengivite/periodontite, cáries,
osteíte alveolar, patologia periapical, alterações da articulação
temporomandibular, tumor primário da mandíbula, metástase tumoral e
osteomielite da mandíbula.
A AAOMS identificou factores de risco estabelecidos e classificou-os em locais,
demográficos/sistémicos e relacionados com o fármaco para o desenvolvimento
desta patologia.
Factores de risco relacionados com o fármaco
-Potência do bifosfonato (zoledronato > pamidronato > bifosfonatos
orais). Quanto maior a potência maior o risco.
-Duração da terapêutica. Quanto maior a duração da terapêutica maior
o risco.
Factores de risco locais
-A cirurgia dento-alveolar (extracções dentárias, implantes
dentários, cirurgia periapical) aumenta o risco de OMAB em 7 vezes.
-Anatomia local: as lesões são mais frequentes na mandíbula
relativamente ao maxilar superior (ratio 2/1) e em regiões com mucosa
menos espessa sobre proeminências ósseas (tórus lingual, crista
milohioideia, tórus palatino).
-Doença oral concomitante: os doentes com doença inflamatória dentária
concomitante têm 7 vezes mais risco de desenvolverem OMAB.
Factores de risco sistémicos e demográficos
-Idade: aumento do risco em 9% por cada década de vida.
-Raça: risco maior nos caucasianos.-Tipo de neoplasia maligna: risco
maior nos doentes com mieloma múltiplo seguido do cancro da mama.
-Osteopenia/osteoporose diagnosticada concomitantemente com neoplasia
maligna.
Factores de risco considerados prováveis
-Corticoterapia, diabetes, consumo de tabaco, consumo de álcool,
higiene oral deficiente e quimioterapia.
CASO CLÍNICO
Paciente de sexo masculino, raça caucasiana, 64 anos de idade, sem história de
Diabetes. Sem hábitos tabágicos nem alcoólicos. Carcinoma da próstata com 4
anos de evolução, com constatação de metastização óssea aquando do diagnóstico.
Submetido a quimioterapia com docetaxel (75 mg/m2) + prednisolona (5 mg, 2xdia)
em ciclos de 21 dias, perfazendo na totalidade 6 ciclos de quimioterapia. Dada
a metastização óssea iniciou tratamento com bifosfonatos intravenosos (ácido
zoledrónico 4 mg; 1 toma por mês) que manteve até ao diagnóstico de OMAB. Nunca
foi submetido a Radioterapia.
História de exodontia de 3.8 por cárie dentária, sem cicatrização pós-
operatória. Manteve quadro de dor, drenagens episódicas purulentas, tumefação
local (Fig. 1) e exposição óssea mandibular na região do 3º quadrante durante 1
ano, durante o qual foi submetido a múltiplos ciclos de antibioterapia empírica
(que não soube especificar) e curetagem cirúrgica (Figs. 2 e 3). Foi então
referenciado para a consulta de Cirurgia Plástica, Reconstrutiva e Maxilofacial
do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia.
Fig. 1 - Tumefaccção na região mandibular esquerda.
Fig. 2 - Ortopantomografia após exodontia de 3.8.
Fig. 3 - Exposição óssea após exodontia de 3.8.
Neste hospital efectuou TAC 3D da mandíbula (Fig. 4) e cintigrafia óssea (Figs.
5 e 6) que revelaram uma lesão osteonecrótica extensa com atingimento do corpo
e ramo ascendente esquerdos da mandíbula. O resultado anatomopatológico do
material revelou múltiplos fragmentos irregulares de trabéculas ósseas
necróticas, sem osteócitos viáveis nas lacunas e com algumas células
inflamatórias.
Fig. 4 - TAC 3D da mandíbula.
Fig. 5 - Cintigrafia óssea.
Fig. 6 - Cintigrafia óssea.
Devido a uma relação risco/benefício desequilibrada e ao estadio avançado e
progressivo do carcinoma da próstata, optou-se por tratamento conservador com
controlo sintomático. Neste contexto, o doente suspendeu o bifosfonato
intravenoso e foi submetido a antibioterapia dirigida para Actinomyces israelii
(isolado por exame cultural), num período inicial recorrendo a antibioterapia
endovenosa com penicilina em altas doses (10 milhões de unidades por dia),
seguida de antibioterapia oral com amoxicilina 500 mg 3xdia, por um período de
6 meses. Associadamente, o doente foi submetido a 3 episódios de
curetagenslimitadas com sequestrectomia de fragmentos necróticos e encerramento
com retalhos locais. Com o tratamento referido, verificou-se evolução clínica
favorável, com melhoria funcional e das queixas álgicas.
DISCUSSÃO E CONCLUSÃO
A OMAB é uma entidade clínica recente e com indefinições significativas na sua
abordagem. As séries existentes na literatura são de pequena dimensão, o que
dificulta conclusões definitivas e torna necessários mais estudos prospectivos.
As opções de tratamento descritas na literatura variam consoante a área médica
de abordagem. Os cirurgiões preferem abordagens baseadas em procedimentos
cirúrgicos, enquanto nas áreas médicas os tratamentos advogados são mais
conservadores. Clark et al (6) concluíram, que não existe um tratamento único
que seja eficaz e sugere que a combinação de ciclos de antibioterapia com
tratamentos cirúrgicos simples oferece a melhor hipótese de cura.
Um aspecto importante na orientação de doentes com OMAB prende-se com a
descontinuidade ou não da terapêutica com bifosfonatos. Dada a semi-vida longa
dos bifosfonatos no organismo, a sua cessação pode não produzir efeitos
imediatos na melhoria do quadro clínico. Dimitrakopoulos et al (7), na análise
de uma série de 11 casos, reportam uma melhoria significativa na maioria dos
casos após a interrupção da terapia com bifosfonatos em combinação com
desbridamentos cirúrgicos. Numa série de 17 doentes descrita por Migliorati
(8), a maioria não respondeu à suspensão dos bifosfonatos. Actualmente, o que é
aceite é que a descontinuidade dos bifosfonatos deve ser ponderada caso a caso,
com discussão dos riscos e benefícios daí inerentes. Se as condições sistémicas
o permitirem, a descontinuidade da terapêutica com bifosfonatos intravenosos
por um período longo pode ser benéfica para a estabilização do quadro clínico.
Em 2007, a AAOMS (3) publicou uma posição de consenso sobre as medidas
preventivas e as linhas de acção para o tratamento da OMAB numa tentativa de
estabelecer e uniformizar conceitos e procedimentos. A AAOMS atribui
importância basilar à prevenção da OMAB, pela falta de estratégias terapêuticas
baseadas na evidência. Um diagnóstico precoce pode reduzir ou evitar a
morbilidade resultante das lesões destructivas da mandíbula.
Assim, antes de iniciar terapêutica com bifosfonatos intravenosos, o doente
deve ser submetido a um exame cuidado da cavidade oral, com realização de todos
os procedimentos dentários invasivos necessários e optimização da saúde
periodontal. Durante o tratamento com bifosfonatosintravenosos, deve ser
mantida uma boa saúde oral e todos os procedimentos invasivos devem ser
evitados. Em pacientes com diagnóstico de OMAB já estabelecido, os objectivos
principais são eliminar a dor, controlar a infecção e minimizar a ocorrência e
progressão da necrose óssea. A AAOMS classifica a OMAB em 3 estadios:
No estadio 1, o tratamento deve ser conservador com uso de uma solução de
lavagem oral antibiótica (p.e., clorohexidina). Estes doentes devem ter
acompanhamento clínico com avaliações regulares e a manutenção da terapêutica
com bifosfonatos deve ser ponderada. No estádio 2, uma terapêutica antibiótica
sistémica deve ser associada à solução de lavagem oral. A opção antibiótica
deverá ser orientada por culturas microbiológicas, tendo o tratamento empírico
com uma quinolona, o metronidazol, a clindamicina ou a eritromicina revelado
resultados favoráveis. Em alguns casos refractários, pode ser necessária a
manutenção prolongada de antibioterapia. O uso de analgésicos é frequente para
o controlo da dor. Os desbridamentos cirúrgicos devem ser apenas superficiais.
No estadio 3, são utilizadas todas as medidas referidas no estadio 2, embora os
desbridamentos cirúrgicos sejam obrigatoriamente mais agressivos, de modo a
conseguir-se um controlo mais prolongado da infecção e da dor, que é
caracteristicamente severa. Independentemente do estádio da doença, devem ser
extraídos os fragmentos ósseos móveis, desde que isto não implique a exposição
do osso saudável. A extracção de dentes em osso envolvido pode ser realizada
sem previsível exacerbação da doença (3).
Este caso clínico pretende apresentar a OMAB como patologia com frequência
crescente e de morbilidade muito significativa, nomeadamente no que diz respeito
a dor crónica, limitação do arco de movimento da articulação temporomandibular,
incapacidade para a alimentação oral e nas questões estéticas associadas. A
terapêutica com bifosfonatos está generalizada na sociedade actual, o que torna
provável o aparecimento desta patologia em variadas áreas da saúde. Assim, este
trabalho alerta o clínico para a prevenção, tratamento e orientação dos doentes
com OMAB.