Tuberculose Cutânea num Doente Imunocomprometido
Introdução
Com a emergência de situações associadas com o comprometimento do sistema
imunológico, como a epidemia pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH) e o
uso crescente de fármacos imunossupressores, tem-se verificado um aumento de
todas as formas de tuberculose (TB), nomeadamente das extrapulmonares,
incluindo a cutânea (1), e da doença disseminada resultante da disseminação
hematogénica do bacilo (2).
A TB cutânea compreende 1,5% de todas as formas da doença (3), sendo
responsável por 0,04 a 2% de todas as patologias dermatológicas (4-6).
Frequentemente, a TB de pele resulta da disseminação hematogénea ou por
continuidade da infecção, embora a inoculação primária também esteja
documentada. Encontram-se descritas diferentes formas de TB cutânea de acordo
como mecanismo de infecção, o estado imunológico do doente e a importância de
inoculum bacteriano (7, 8). Não obstante, o diagnóstico de TB cutânea requer um
índice elevado de suspeição, não só dada a sua raridade, mas também porque as
manifestações clínicas da doença são diversificadas e a micobactéria nem sempre
é identificada nos exames microbiológicos (1).
O caso descrito ilustra o envolvimento cutâneo na TB disseminada, nas formas de
escrofuloderma e abcesso metastático, num doente idoso e imunocomprometido por
corticoterapia sistémica.
Caso Clínico
Um doente do sexo masculino, de 77 anos, de raça branca, apresentou-se com um
quadro de febre persistente, com seis semanas de evolução, apesar de um curso
de antibioterapia empírica, acompanhado de emagrecimento de 6 Kg nos últimos
três meses.
A história pregressa incluía patologia discal lombar encontrando-se medicado
cronicamente com coesteróides sistémicos (metilprednisolona, 8 mg/dia), desde
há dez anos, embora sem seguimento clínico regular. O doente negava
antecedentes de doença infecciosa, nomeadamente TB, incluindo nos contactos.
Na admissão, apresentava um bom estado geral, evidenciando-se adenomegalias
móveis e indolores nas cadeias supraclavicular e do esternocleidomastoideo à
direita e na axila à esquerda.
O estudo analítico mostrou uma anemia de doença crónica (12.4 g/dl), uma
hiponatremia (133 mEq/L) e uma elevação tanto da proteína C-reactiva (62.7 mg/
L), como da velocidade de sedimentação (71 mm/h). A radiografia torácica era
normal. A pesquisa de bacilos álcool ácido resistentes (BAAR) no aspirado
gástrico, urina e sangue foi negativa, bem como as culturas para outras
bactérias e fungos. O estudo imunológico era normal e as serologias sanguíneas,
incluindo o rastreio da infecção VIH foram negativos. A tomografia
computadorizada mostrou nódulos com padrão em árvore botão e discretas
consolidações com broncograma aéreo nos lobos pulmonares superiores (Figura_1
A,_B). A biopsia aspirativa das adenomegalias cervicais revelou BAAR e a
pesquisa de ADN do Mycobacterium tuberculosis (Mt) no lavado broncoalveolar
(LBA) foi positiva.
Atendendo ao diagnóstico de TB disseminada, foi nas região metacarpofalângica
dos segundo e terceiro dedos, na palma da mão esquerda. Em ambas as lesões
constatou-se uma evolução semelhante, gradualmente para a flutuação e supuração
formando úlceras com drenagem de material caseoso (Figura_2_A,_B). Em ambos os
exsudados identificaram-se BAAR. No pescoço, iniciada terapêutica
antituberculosa com quatro fármacos (Isoniazida (H), Rifampicina (R),
Pirazinamida (Z) e Etambutol (E)), bem como redução da corticoterapia, dada a
ausência de critérios clínicos, imunológicos e radiológicos de outra patologia,
que não a degenerativa osteoarticular.
Duas semanas após o início do tratamento antibacilar, o doente apresentou
nódulos subcutâneos eritematosos, firmes e indolores no pescoço à direita. Uma
semana depois, surgiram outros nódulos subcutâneos os achados coadunaram-se com
os da escrofuloderma, resultantes da propagação por continuidade de focos
tuberculosos ganglionares. Quanto às lesões na mão, o estudo radiológico
excluiu envolvimento subjacente do osso e articulação, pelo que, clinicamente,
foram consideradas abcessos metastáticos tuberculosos, resultantes da
disseminação hematogénea/linfática de um foco sistémico da doença, achado
corroborado pela presença das adenopatias axilares à esquerda.
Após quatro semanas de tratamento antibacilar verificou-se melhoria clínica.
Mycobacterium tuberculosis complex,sensível aos fármacos de primeira linha, foi
isolado na cultura do LBA e nos exsudados da pele. A terapêutica
antituberculosa foi descontinuada para dois fármacos (H, R) e a corticoterapia
suspensa, ao fim de dois meses. Após os seis meses de tratamento constatou-se
resolução clínica e radiológica, incluindo das lesões cutâneas, o que ocorreu
sem a formação de cicatrizes. O seguimento do doente nos dois anos seguintes
não mostrou sinais de recidiva.
Discussão
A TB cutânea pode ser causada pelo Mt, Mycobacterium bovis, micobacterias
atípicas e, raramente, pelo bacilo Calmette Guerin (8).
Após a descrição de Laennec, em 1826, do seu prosector wart (9), foram
propostas várias classificações da TB cutânea.
ATB da pele é classificada em TB cutânea verdadeira e tuberculides (7, 8), a
primeira ocorrendo na sequência da proliferação dos bacilos na pele, e a última
na sequência de uma reacção de hipersensibilidade a lesões tuberculosas noutros
órgãos.
A classificação mais consensual da TB cutânea verdadeira baseia-se no modo de
infecção e no estado imunológico do hospedeiro (7, 8). As lesões causadas por
inoculação exógena podem manifestar-se como cancro tuberculoso venéreo, cutis
verrucosa e, ocasionalmente, lupus vulgaris. A infecção endógena pode surgir
como escrofuloderma e TB orificial, quando ocorre extensão por contiguidade;
lupus vulgaris, TB miliar aguda e abcessos metastáticos quando ocorre
disseminação hematogénea/ linfática. As últimas duas formas encontram-se usual-
mente associadas a situações de comprometimento imunitário do hospedeiro. Um
conceito adicional inclui a distinção baseada no inoculum bacteriano:
multibacilar no cancro tuberculoso venéreo, escrofuloderma, orificial, miliar
aguda e abcesso tuberculoso; paucibacilar na cutis verrucosa e lupus vulgaris.
O envolvimento de pele pode ocorrer de forma isolada ou acompanhando a doença
noutros órgãos, na TB disseminada (1). Contudo, a acrescentar à baixa
incidência da TB cutânea em geral, também a incidência desta forma de doença
associada à TB noutros órgãos é baixa. Uma revisão incluindo 370 doentes
demonstrou uma incidência de 3,5%, com os gânglios e o pulmão a serem os órgãos
mais frequentemente envolvidos e a escrofuloderma, a forma mais frequente de TB
cutânea associada (10).
Os autores descrevem um caso clínico de um doente sob corticoterapia sistémica
crónica, um factor predisponente conhecido para a imunossupressão e para a
reactivação da tuberculose latente, neste caso, de uma forma invulgar num
doente idoso (11).
O aparecimento de nódulos subcutâneos tanto no pescoço, como na mão,
secundariamente evoluindo para a fistulização e ulceração durante o tratamento
da TB disseminada, levantou a suspeita do envolvimento da pele pela doença.
Para além da necessidade de considerar outros diagnósticos diferenciais, como
as micobacterioses atípicas, sífilis, esporotricosis, actinomicosis e acne
conglobata, o diagnóstico definitivo da TB cutânea requer a correlação dos
achados clínicos com os resultados de testes diagnósticos como a PCR,
microbiologia e histologia (8). No entanto, como a rentabilidade da cultura e
da PCR é frequentemente baixa, o diagnóstico da TB cutânea pode depender da
correlação com a histologia (6). No caso apresentado, o diagnóstico definitivo
foi obtido após o isolamento do Mt na cultura dos exsudados de pele.
A identificação de um foco tuberculoso subjacente, como o osso, o epidídimo ou,
mais frequentemente, os nódulos linfáticos, como aconteceu na região cervical
no nosso doente, permitiu a diagnóstico da escrofuloderma. Por outro lado, a
lesão na mão esquerda assemelhou-se a um abcesso tuberculoso metastático, uma
forma mais rara que surge na ausência de envolvimento subjacente, resultando
portanto da disseminação hematogénea/linfática da micobactéria, usualmente para
o tronco, cabeça e extremidades em doentes imunocomprometidos.
Dado que a maioria dos casos de TB cutânea surgem na sequência do envolvimento
sistémico pela doença e o inoculumbacilar ser geralmente inferior ao da TB
pulmonar, os esquemas terapêuticos são semelhantes aos da TB em geral (8), o
que no caso em questão resultou numa evolução favorável e num excelente
prognóstico.