Procura de Cuidados e Acesso aos Serviços de Saúde em Comunidades Imigrantes:
Um estudo com imigrantes e profissionais de saúde
Introdução
O progressivo aumento dos fluxos migratórios tem conduzido a um processo
contínuo de transformação social nas sociedades europeias1. Em Portugal, os
dados oficiais mais recentes indicam que, em 2008, residiam ou permaneciam de
forma regular 443 102 cidadãos estrangeiros, maioritariamente oriundos do
Brasil, dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa e de países da Europa
de Leste2. O fenómeno da imigração tem representado um importante desafio na
área da saúde pública, com impacto ao nível das dinâmicas dos serviços de saúde
dos países de acolhimento.
A utilização dos serviços é reconhecidamente uma importante condição para a
obtenção de ganhos em saúde3. De acordo com vários estudos, a procura de
cuidados de saúde pelos imigrantes pode ser influenciada por factores socio-
demográficos e económicos como o sexo, a idade, o nível educacional, o estatuto
de imigração, os recursos financeiros e a situação laboral). Outros factores
individuais incluem o país de origem, o tempo de residência no país de
acolhimento, as crenças culturais e atitudes face à saúde e doença, a percepção
sobre a necessidade de utilização dos serviços de saúde, as experiências
anteriores, as expectativas e o conhecimento em relação aos mesmos4-6. Por
outro lado, diversos factores relacionados com os profissionais de saúde, como
as atitudes face aos imigrantes ou a ausência de competências culturais, e os
relacionados com os serviços também podem determinar a procura de cuidados7-9.
Em Portugal, a constituição estabelece que todos os cidadãos, incluindo
estrangeiros, têm direito à prestação de cuidados globais de saúde e por esse
motivo todos os meios de saúde existentes devem ser disponibilizados na medida
exacta das necessidades de cada indivíduo10. A legislação vigente define ainda
que qualquer imigrante que se encontre em território nacional e que precise de
cuidados de saúde tem o direito de ser assistido num centro de saúde ou
hospital, independentemente da sua situação socioeconómica, nacionalidade ou
estatuto de imigração10. No entanto, apesar das alterações legislativas
registadas na última década que garantem o direito universal ao acesso aos
serviços de saúde, vários estudos indicam que para alguns grupos de imigrantes
ainda persistem dificuldades no acesso e na utilização dos mesmos11-13.
Recentemente tem vindo a assistir-se a um acentuado desenvolvimento da
investigação na área. Contudo, existem lacunas no conhecimento, nomeadamente
sobre os comportamentos de procura de cuidados de saúde, os factores que os
influenciam e as dificuldades que persistem quando os imigrantes recorrem aos
serviços de saúde. Neste contexto, torna-se pertinente conhecer as experiências
e percepções, tanto das comunidades como dos profissionais, sobre os padrões de
procura de cuidados de saúde e as questões relacionadas com o acesso e
utilização dos serviços. Os estudos qualitativos contribuem para um
conhecimento mais aprofundado permitindo aceder a informação que pode ser
relevante para a definição de estratégias que visem a melhoria dos cuidados de
saúde a estas populações14.
Este estudo teve como objectivo descrever as percepções dos imigrantes e dos
profissionais de saúde sobre a procura de cuidados de saúde e os factores que
influenciam o acesso e utilização dos serviços pelas populações imigrantes em
Portugal.
Métodos
A recolha dos dados foi realizada através de grupos focais, uma técnica de
investigação qualitativa que consiste na realização de sessões de discussão em
grupo e que permite conhecer as opiniões do grupo sobre um tema proposto para
discussão pelo moderador15, 16.
Neste estudo foram utilizadas amostras intencionais constituídas por 20
imigrantes e 32 profissionais de saúde. Realizaram-se seis grupos focais, três
com imigrantes e três com profissionais de saúde. Dos grupos com imigrantes, um
foi constituído por oito participantes provenientes de Países Africanos de
Língua Oficial Portuguesa (Moçambique, Angola, Cabo Verde e Guiné-Bissau),
outro por cinco participantes de países da Europa de Leste (Roménia, Ucrânia e
Moldávia) e outro por sete participantes do Brasil. Dos grupos com
profissionais de saúde, um foi constituído por 12 médicos, outro por 10
enfermeiros e outro por 10 administrativos).
Para a organização dos grupos focais com imigrantes, em parceria com
organizações não governamentais e associações de imigrantes, foram
seleccionados informadores-chave de cada uma das comunidades em estudo que
posteriormente foram convidados a participar nas sessões. A escolha destes
participantes teve por base serem indivíduos que, pelo tempo de residência,
pela sua posição e pelas relações sociais que têm na comunidade, possuíam um
conhecimento detalhado sobre a mesma. Em colaboração com a Administração
Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo contactaram-se profissionais de
saúde no sentido de os convidar a participar. A escolha destes profissionais
teve como critério o facto de serem de serviços de cuidados de saúde primários
da região de Lisboa e vale do tejo com elevada proporção de utentes imigrantes.
Todos os elementos aceitaram participar no estudo, à excepção de dois
profissionais de saúde que recusaram por motivos de indisponibilidade de
horário.
Para a condução dos grupos focais foram elaborados dois guiões semi-
estruturados, um para os grupos com imigrantes e outro para os grupos com
profissionais de saúde. O guião para os grupos focais com imigrantes incluiu
questões sobre: crenças, atitudes e práticas relacionadas com saúde e doença,
percepção do estado de saúde dos imigrantes em geral, procura de cuidados de
saúde e factores que condicionam o acesso e a utilização do Serviço Nacional de
Saúde. O guião para os grupos focais com profissionais de saúde contemplou
questões relacionadas com: conhecimentos, competências e necessidades de
formação dos profissionais na área da saúde dos imigrantes, percepção do estado
de saúde das populações imigrantes, práticas de saúde e doença adoptadas por
estas populações, percepção do utente imigrante, padrões de procura de cuidados
de saúde destas populações e factores que condicionam o seu acesso e utilização
dos serviços. Neste artigo foram analisados apenas alguns dos temas abordados,
nomeadamente os padrões de procura de cuidados de saúde e os factores que
condicionam o acesso e a utilização dos serviços pelos imigrantes.
Os grupos focais realizaram-se entre março e Abril de 2010 no Instituto de
Higiene e medicina tropical. As sessões tiveram uma duração média de uma hora e
trinta minutos. No início de cada sessão foi apresentada informação sobre os
objectivos do estudo e a forma de condução das sessões. Cada sessão foi
registada em áudio, como consentimento prévio dos participantes, para optimizar
a recolha de dados e facilitar a transcrição das discussões para análise
posterior.
Os dados foram analisados através da análise de conteúdo15-17. As questões
teóricas previamente definidas foram analisadas em conjunto com os tópicos
gerais explícitos nas discussões de forma a elaborar os primeiros itens para
análise. Em seguida seleccionaram-se as questões de maior significado e
definiram-se categorias que foram sendo ajustadas à medida que prosseguia a
análise dos dados, procedendo-se depois à sua codificação. As categorias de
análise criadas foram: padrões de procura de cuidados de saúde e factores que
condicionam o acesso e utilização dos serviços pelos imigrantes. Na análise dos
dados foram consideradas as opiniões individuais, os consensos e as
divergências que emergiram nas discussões.
De forma a assegurar o anonimato, todos os participantes são identificados
neste trabalho como Africanos, Brasileiros, da Europa de Leste, médicos,
Enfermeiros ou Administrativos.
O consentimento informado escrito e voluntário dos participantes foi obtido com
garantia do seu anonimato e da confidencialidade dos dados. O estudo foi
aprovado pelo conselho de Ética do Instituto de Higiene e medicina tropical.
Resultados
Os resultados apresentados reflectem as percepções dos grupos de imigrantes e
de profissionais sobre as questões relacionadas com a procura de cuidados de
saúde e os factores que condicionam o acesso e utilização dos serviços pelos
imigrantes.
Padrões de procura de cuidados de saúde
Os participantes expressaram diferentes percepções sobre os padrões de procura
de cuidados de saúde pelas populações imigrantes. De acordo com alguns
imigrantes, bem como médicos e enfermeiros, estas populações utilizam os
serviços de saúde de forma preventiva e regular. Outros participantes
manifestaram a opinião de que os imigrantes, especialmente os indocumentados,
tendem a utilizar os serviços apenas em situação de urgência. Um grupo
salientou que, na sua perspectiva, os imigrantes tendem a não utilizar os
serviços: uma carrinha foi lá no bairro e apareceram lá pessoas que já estão
em Portugal há seis, sete anos e nunca tinham ido ao médico(Africano); esta
população não vai muito ao centro de saúde(Enfermeiro).
Alguns africanos referiram práticas de automedicação: é que temos a tendência
de auto-medicar-nos(Africano). Neste grupo também foi abordada a frequente
procura de curandeiros: noutras situações usando a medicina alternativa (...)
estou-me a referir a determinados curandeiros mais velhos.(Africano). Os
participantes da Europa de Leste reportaram utilizar frequentemente remédios
caseiros para o tratamento de certos problemas de saúde devido ao elevado custo
dos fármacos: A maioria faz estas coisas porque sempre que se entra numa
farmácia e se vê os preços de alguns medicamentos, o cabelo fica em pé.
Vários participantes referiram que os imigrantes tendem a dar continuidade aos
padrões de procura de cuidados de saúde que tinham no país de origem: quem nos
medica é a farmácia (...) é cultural. No Brasil, (...) é uma prática social
completamente diferente, isso pesa(Brasileiro); as pessoas muitas vezes têm o
centro de saúde perto ( ) mas para eles não é importante porque os meninos em
África andam dois, três, quatro anos sem ir ao médico(Enfermeiro). de acordo
com um grupo de médicos, os imigrantes da Europa de Leste tendem a seguir as
orientações médicas que obtêm no seu país: O que eu noto nos dos países de
Leste é ( ) eles seguem as orientações de lá e não aquelas que eu lhes dou e
quando vão de férias os exames são feitos lá, é tudo lá(médico). Os imigrantes
brasileiros e da Europa de Leste mencionaram que os seus congéneres utilizam os
serviços de saúde do país de origem quando se deslocam nos períodos de férias.
Os participantes consideraram que as questões culturais, nomeadamente as
diferentes concepções de saúde e doença, influenciam a procura de cuidados de
saúde, como mencionado por alguns médicos e enfermeiros: se calhar a percepção
que os imigrantes têm de saúde e de doença é que é diferente, e voltamos à
cultura (Enfermeiro).
Alguns participantes brasileiros e da Europa de Leste referiram ainda que,
devido à sua condição de imigrante, por vezes a saúde não é considerada uma
prioridade, não sendo adoptadas práticas preventivas: quando se está numa
situação de busca pela sobrevivência, a saúde fica em segundo plano porque é
mais importante chegar e ter um trabalho do que ver se nós estamos sentindo bem
ou não(Brasileiro).
Em suma foi perceptível que existem diversos padrões de procura de cuidados de
saúde e que estas práticas são influenciadas por múltiplos factores.
Factores que condicionam o acesso e utilização dos serviços de saúde
Nos grupos focais, os factores que podem funcionar como barreiras no acesso e
na utilização dos serviços foram amplamente discutidos.
Os brasileiros e africanos, bem como os profissionais, apontaram para a
existência de dificuldades económicas que se traduzem frequentemente na
incapacidade para suportar os custos associados aos cuidados de saúde: Quando
tentam ter acesso não conseguem porque não têm condições de pagar
(Brasileiro);e o dinheiro?! Quando se pede os 30 e não sei quantos euros,
começam os problemas logoali(Administrativo).
Na opinião de alguns participantes, a situação administrativa irregular do
imigrante é um obstáculo: uma das barreiras é o documento. Quando a pessoa
está indocumentada ( ) não tem direito à saúde(Africano); o próprio acesso é
vedado para os que estão em situação irregular (...) chegam e encontram a
barreira da inscrição(Enfermeiro). Os médicos e enfermeiros salientaram também
que o medo de recorrer aos serviços de saúde leva, muitas vezes, à sua não
utilização: Sei que há pessoas que estão em casa até morrerem porque têm medo
de se dirigirem às instituições de saúde(Enfermeiro).
Em todos os grupos focais foi apontado o desconhecimento, tanto dos imigrantes
como dos profissionais, sobre a legislação que regulamenta o acesso aos
serviços e sobre os procedimentos necessários para aceder aos mesmos.
Os participantes de todos os grupos, à excepção dos brasileiros, descreveram
dificuldades de comunicação devido a diferenças linguísticas entre o
profissional e o utente: eles querem comunicar e não conseguem, isso cria às
vezes revolta(Africano); o problema da língua (...) encontram-se com o médico
e ele fala rápido (...) e o resultado é nada porque não perceberam nada do que
ele disse(da Europa de Leste); o que acontece frequentemente é a barreira da
linguagem(médico).
Em todos os grupos focais foi apontado o desconhecimento dos profissionais
sobre práticas culturais e religiosas: as enfermeiras decidiram fazer um
folheto sobre hábitos alimentares e quando comecei a ler não estava lá nada do
que nós comemos.(Africano); Nós é que ficamos à nora porque não sabemos nada
das crenças, nem sabemos nada da cultura que eles têm(médico). Os
profissionais salientaram que este desconhecimento pode dificultar a prestação
de cuidados de saúde: o nosso desconhecimento da base cultural vai estar
sempre muito presente na avaliação que fazemos ( ) e não sei até que ponto é
que nós próprios não prejudicaremos os utentes(Enfermeiro). No decorrer das
discussões, participantes de todos os grupos realçaram a existência de
dificuldades no relacionamento entre profissionais de saúde e utentes
imigrantes: ... a formalidade ou a distância que se estabelece entre o médico
e o paciente(Brasileiro), o que na sua opinião está frequentemente associado à
falta de sensibilidade para as diferenças culturais: não querem perceber,
querem impor as regras deles. Não querem perceber que as culturas são
diferentes, é assim e pronto(Africano); do ponto de vista cultural há algumas
dificuldades de entender, de querer entender, de arranjar soluções para superar
dificuldades(médico); preocupa-me essencialmente a falta de sensibilidade dos
profissionais para as questões das diferenças culturais e da
multiculturalidade(Enfermeiro). Pelos discursos de alguns imigrantes constata-
se que, muitas vezes, estas dificuldades contribuem para uma menor utilização
dos serviços: é algo que a pessoa vive uma vez, depois pensa três vezes para
ir outra vez, só mesmo se estiver muito necessitado(Brasileiro).
As atitudes dos profissionais face ao imigrante foram descritas como um
obstáculo: O funcionário do balcão é muito pior porque ele é a porta de
entrada, é a primeira selecção e geralmente são de uma arrogância
(Brasileiro). Os participantes de todos os grupos consideraram que os
profissionais de saúde possuem um conjunto de preconceitos relativamente aos
imigrantes, tendo sido referida a existência de atitudes discriminatórias: O
facto de ser imigrante agrava porque existe um preconceito na sociedade contra
o imigrante (Brasileiro); Eu não sei se os imigrantes não serão tratados um
bocadinho como de segunda. Estão mais vulneráveis (médico).
Alguns africanos e médicos apontaram ainda a falta de prática no diagnóstico e
tratamento de doenças tropicais por parte dos profissionais: pode ser barreira
o não conhecimento dos médicos de doenças africanas, doenças tropicais porque
às vezes há coisas que nós temos, que aqui nunca viram(Africano).
A referência à falta de recursos humanos foi transversal a todos os grupos
focais. Os participantes consideraram que esta lacuna nos serviços condiciona a
capacidade de resposta às necessidades dos imigrantes: Outra coisa fundamental
tem a ver com os recursos humanos (...) é muito bonito nós falarmos na
disponibilidade, de ter tempo para saber de que etnia é aquela pessoa mas vamos
lá ver!..(Enfermeiro); ... É muito trabalho para muito pouca gente. Estão
muito pressionados(Africano).
Outro factor apontado como uma dificuldade foi o reduzido horário de
atendimento: Um dos constrangimentos da população imigrante é o horário de
funcionamento das unidades de saúde. Há muitas a fecharem às 18 horas ( ) não
estão abertas ao fim de semana nem aos feriados(Enfermeiro). Alguns
participantes referiram a impossibilidade dos imigrantes recorrerem aos
serviços devido às exigências das suas vidas profissionais: ... não vão ao
centro de saúde ah, eu trabalho o dia inteiro, mas o centro de saúde só
funciona x horas, a médica só me pode atender a tal hora'. Não vão porque não
podem mesmo(Brasileiro).
No decorrer das discussões foi ainda apontado o excesso de procedimentos
burocráticos e o longo tempo de espera para ser atendido: ... eu queria fazer
análises e o médico de família deu-me tantos papeis não fui mais, pronto(da
Europa de Leste); As Unidades de Saúde Familiar são uma burocracia intensa
para os imigrantes (...) Muitos deles nem sequer passam lá(médico).
Em síntese, nos grupos focais foram apontados vários factores que influenciam o
acesso e utilização dos serviços de saúde pelos imigrantes em Portugal, como os
relacionados com o indivíduo (situação económica e administrativa,
desconhecimento sobre a legislação do acesso aos serviços), com os
profissionais de saúde (desconhecimento sobre práticas culturais e religiosas,
atitudes face aos imigrantes, falta de prática no diagnóstico e tratamento de
doenças tropicais) e com os serviços (falta de recursos humanos, reduzido
horário de atendimento, procedimentos burocráticos).
Discussão
Este estudo permitiu conhecer as perspectivas de imigrantes e profissionais
sobre a procura de cuidados de saúde e os factores que influenciam o acesso e
utilização dos serviços pelos imigrantes em Portugal.
Os resultados revelam que, de acordo com as percepções dos participantes, os
imigrantes apresentam diferentes padrões de procura de cuidados de saúde, tendo
sido descrita a utilização dos serviços de forma preventiva e regular, para
além do uso apenas em situação de urgência ou da não utilização dos serviços.
Em parte, estes dados parecem apontar no sentido de uma evolução positiva nos
padrões de procura de cuidados de saúde dos imigrantes na medida em que
contrastam com estudos anteriores que descreviam que o recurso aos serviços
para obtenção de cuidados era maioritariamente realizado em situações de
emergência13, 18. Esta mudança pode ser reflexo dos esforços que têm sido
desenvolvidos na última década, nomeadamente ao nível das políticas que
promovem o acesso aos serviços de saúde e a melhoria da qualidade dos cuidados
prestados.
Nas discussões também foi mencionado que, face à necessidade de cuidados de
saúde, os grupos de imigrantes adoptam diferentes práticas, como o recurso à
farmácia, à auto-medicação, a tratamentos caseiros e a curandeiros. De acordo
com a maioria dos participantes, as práticas que os imigrantes adoptam para
obter cuidados de saúde nos países de acolhimento reflectem experiências e
especificidades culturais do país de origem. O contexto do país de origem e a
etnicidade produzem uma matriz de valores, crenças e concepções de saúde e
doença que influencia a interpretação dos sintomas e sua causalidade, bem como
a percepção da necessidade de cuidados de saúde e as práticas realizadas5, 19,
20. A interacção entre os factores culturais e as questões relacionadas com a
saúde e a procura de cuidados é complexa. Neste contexto, futuras investigações
sobre esta temática devem ser desenvolvidas.
Alguns imigrantes brasileiros e da Europa de Leste mencionaram que os seus
congéneres preferem obter cuidados de saúde nos serviços dos países de origem.
Num estudo anterior realizado com mulheres imigrantes residentes em Portugal
foi descrito o mesmo padrão entre participantes brasileiras21. Estas
participantes referiram que, muitas vezes, os cuidados de saúde recebidos geram
insatisfação pois não correspondem às expectativas que possuem, criadas com
base no sistema de valores e padrões de referência do seu país. No mesmo
sentido, a literatura tem sugerido que os níveis de desenvolvimento dos
sistemas de saúde nos países de origem contribuem para a criação de
expectativas e a percepção de satisfação com os serviços nos países de
acolhimento8, 22.
Os resultados do estudo indicam que a procura de cuidados nos serviços de saúde
resulta da interacção dinâmica de múltiplos factores, suportando outros
estudos21,23, 24. A um nível individual, as condições socio económicas
desfavoráveis e a precariedade laboral podem limitar a capacidade do imigrante
aceder aos serviços e de suportar os custos associados aos cuidados de saúde.
Efectivamente, nos grupos focais foi apontada a frequente dificuldade dos
imigrantes em realizar exames prescritos e em aderir à terapêutica em caso de
doença. Adicionalmente, tal como referido pelos participantes, num contexto de
vulnerabilidade social a saúde não é considerada prioritária, o que reduz a
adopção de práticas preventivas. Os resultados sugerem assim que potenciais
dificuldades no processo de imigração podem ter repercussões no estado de saúde
destas populações7,11,25,26.
Por outro lado, vários participantes relataram situações de recusa de
atendimento a imigrantes indocumentados, apesar de o actual enquadramento legal
estabelecer que todos os indivíduos podem aceder aos serviços de saúde. O fraco
conhecimento dos imigrantes e dos profissionais sobre a legislação em vigor foi
apontado, de forma consensual, como um factor que tem implicações na aplicação
da lei. A reduzida utilização dos serviços por imigrantes que se encontram em
situação irregular está muitas vezes também associada ao receio de denúncia às
autoridades. Estas situações levam a que estes imigrantes frequentemente
utilizem os serviços apenas em situação de urgência, tal como percepcionado por
alguns participantes e referido em estudos anteriores11, 27. Estes dados
reforçam a pertinência de desenvolver estratégias que melhorem o conhecimento
de todos os intervenientes sobre o direito ao acesso aos serviços, contribuindo
para uma maior e mais adequada utilização dos mesmos, principalmente pelos
grupos mais vulneráveis27, 28.
Outros factores mencionados nos grupos focais remetem para o contexto de
interacção entre imigrantes e profissionais de saúde. As dificuldades de
comunicação, relacionadas com diferenças linguísticas, foram expressas por
vários participantes. De facto, a barreira da língua dificulta a obtenção de
informação e a expressão de necessidades em saúde pelos imigrantes, bem como o
desempenho dos profissionais, nomeadamente ao nível do diagnóstico e da
prescrição7,12,29.
No decorrer dos grupos focais foi relatado que os profissionais têm, muitas
vezes, um fraco conhecimento sobre práticas culturais e religiosas, o que
dificulta a relação entre profissional e utente imigrante e a prática
clínica7,30. A dificuldade no diagnóstico e tratamento de doenças tropicais
também foi descrita como um obstáculo na prestação de cuidados. Estasituação
tem sido referida como um factor com consequências na continuidade da
utilização dos serviços30, 31.
Nos grupos focais foram ainda descritas dificuldades no relacionamento entre
profissionais e imigrantes devido à existência de estereótipos e preconceitos
dos profissionais em relação a estas populações. Na opinião de vários
participantes, e como sugerido em outros estudos, a atitude face aos imigrantes
pode ser reflexo da insuficiente capacidade dos profissionais para lidar com
populações culturalmente diversas5, 27. Neste contexto será importante melhorar
o conhecimento dos profissionais de saúde na área da saúde e imigração,
promover as suas competências culturais, bem como intervir ao nível da
desconstrução de estereótipos e da promoção de atitudes positivas face às
populações imigrantes32, 33. As funções singulares que os administrativos,
enfermeiros e médicos desempenham e as suas experiências e contacto específicos
com imigrantes traduzem-se em diferentes percepções sobre o acesso e utilização
dos serviços pelos imigrantes. De facto, os tópicos em discussão foram
explorados nos vários grupos de forma distinta: os administrativos realçaram as
questões relacionadas com os procedimentos de acesso aos cuidados, enquanto que
os médicos e enfermeiros salientaram o desconhecimento dos profissionais sobre
as práticas culturais e religiosas e a sua influência na prestação de cuidados.
Estes dados indicam que para a capacitação dos profissionais de saúde para
lidar como populações imigrantes será pertinente considerar as especificidades
e necessidades associadas aos seus perfis profissionais.
De uma forma consensual, os participantes apontaram diversos aspectos do
funcionamento dos serviços que dificultam a sua utilização, como sejam a falta
de recursos humanos, o reduzido horário de atendimento e o excesso de
procedimentos burocráticos8, 34. Resultados semelhantes têm sido documentados
em estudos anteriores desenvolvidos na mesma área com a população Portuguesa35,
36. As dificuldades socioeconómicas, o funcionamento e a organização dos
serviços de saúde condicionam o seu acesso e utilização por parte da população
em geral. No entanto, estas dificuldades tendem a afectar de forma diferente os
imigrantes uma vez que estas populações encontram-se, muitas vezes, em situação
de irregularidade administrativa, de precariedade laboral com elevada carga
horária e de menor protecção social8,21,34.
Os resultados obtidos devem ser interpretados tendo em conta as limitações do
estudo. A dinâmica de grupo, característica dos grupos focais, pode inibir a
expressão individual de opiniões e experiências que não são consistentes com as
da maioria do grupo. Dado o processo de selecção dos participantes, as
percepções expressas nas discussões podem não representaras das populações de
imigrantes e de profissionais. No entanto, os dados apresentados corroboram as
conclusões de estudos anteriores no que se refere aos padrões de procura de
cuidados de saúde e aos factores que condicionam o acesso e a utilização dos
serviços.
O acesso aos cuidados de saúde envolve múltiplos factores e não apenas o
direito legal. Entre outros aspectos, é essencial investir na formação dos
profissionais de saúde ao nível do seu conhecimento e competências para lidar
com a diversidade cultural, bem como na divulgação de informação sobre os
serviços e direitos em saúde nas populações imigrantes. A prestação de cuidados
deve garantir qualidade clínica, mas também ser sensível e culturalmente
adequada. A convergência de percepções dos imigrantes e dos profissionais
aponta para a existência de oportunidades de intervenção, em que ambos os
grupos poderão estar igualmente motivados para participar. O envolvimento de
todos os intervenientes no planeamento de estratégias de melhoria do acesso e
utilização dos serviços deve ser incentivado. No conjunto, estas estratégias
podem contribuir para a adequação da prestação de cuidados no contexto da
imigração e, consequentemente, para a obtenção de ganhos em saúde.