Síndrome de Fisher-Bickerstaff
Introdução
A síndrome de Fisher (SF) é uma doença caracterizada pela tríade clínica de
oftalmoplegia, ataxia e arreflexia de evolução aguda1,2,3, cujas
características clínicas se sobrepõem em muitos casos à encefalite de
Bickerstaff (EB), a qual se caracteriza por oftalmoplegia, ataxia e alterações
do estado de consciência1,2,4. Estas duas entidades clínicas parecem ter uma
fisiopatologia comum: auto-imune, com associação aos anticorpos anti-GQ1b e à
infecção precedente por Campylobacterjejuni1,2. É frequente haver sobreposição
de características clínicas das duas situações e tanto numa como noutra podem
surgir alterações sugestivas de síndrome de Guillain-Barré1,2,4, podendo haver
casos de classificação complexa. A SF e a EB parecem ser entidades auto-imunes,
de etiopatogenia comum,dentro do mesmo espectro clínico e que podem afectar de
forma variável o sistema nervoso central e periférico ' por estas razões tem
sido proposta uma designação global nosológica de síndrome de Fisher-
Bickerstaff situações sugestivas de SF, EB ou de classificação
indeterminada1,2,4.
Os autores descrevem um caso clínico de síndrome de Fisher-Bickerstaff e
discutem as suas características clínicas, evolução e tratamento.
Caso clínico
Doente do sexo masculino de 61 anos de idade. Antecedentes: doença vascular
cerebral (AVC hemorrágico em 2005, sem sequelas), enfarte agudo de miocárdio
(em 1995), hipertensão arterial, diabetes mellitustipo 2, dislipidemia e
tabagismo. Valor prévio na escala de Rankin modificada: 1.
Em Julho de 2010, iniciou, de modo súbito, disartria, sem outros sintomas. Foi
observado no serviço de Urgência, onde não se objectivaram outras alterações ao
exame neurológico e onde foi submetido a TAC cerebral, que revelou lacunas nos
núcleos da base, provável lesão sequelar de hemorragia na região lentículo-
capsular à esquerda, leucoencefalopatia isquémica de predomínio frontal e
atrofia córtico-subcortical. Foi internado com a suspeita de AVC isquémico
agudo. Subsequentemente, ao longo de uma semana, sofreu agravamento neurológico
progressivo com instalação de oftalmoparésia (limitação na abdução, supraversão
e infraversão; sem diplopia), parésia facial periférica bilateral, anartria,
disfagia, alterações na mobilidade da língua e do palato e ataxia. Não tinha
alterações dos reflexos ósteo-tendinosos nem défices sensitivos ou motores nos
membros.
Para esclarecimento etiológico deste quadro, realizou: -eco-doppler cervical e
transcraniano: placas ateroscleróticas junto à bifurcação das carótidas comuns
e início da interna direita, sem estenoses significativas (20-25% à esquerda e
25-30% à direita). Artérias vertebrais e basilar com fluxos sanguíneos
conservados. Sinais hemodinâmicos compatíveis com estenoses superiores a 50% na
cerebral posterior esquerda (porção P2) e na porção terminal da carótida
interna direita e inferior a 50% na cerebral média direita. -RMN cerebral
(Figura_1
): lesão isquémica recente na coroa radiada esquerda; lesões isquémicas não
recentes nos gânglios da base à direita e em ambas as coroas radiadas e
cápsulas externas; leucoencefalopatia isquémica. Em T2 e FLAIR, observou-se
hipersinal focal na ponte de isquemia crónica de pequenos vasos, mas sem
enfarte franco. As sequências de angio-RM do polígono de Willis mostraram
alterações consistentes com as demonstradas pelo eco-Doppler. -exame do LCR:
proteínas elevadas (0,86 g/l), 10 células µ/l, representando ligeira
dissociação albumino-citológica.
Perante estes exames auxiliares de diagnóstico, foi colocada a hipótese de
poder tratar-se de um statuspseudo bulbar precipitado pelo aparecimento de nova
lesão isquémica (coroa radiada esquerda). Foram ainda ponderados diagnósticos
alternativos: síndrome de Fisher-Bickerstaff, botulismo ou miastenia gravis
(embora estas duas últimas hipóteses de diagnóstico parecessem menos prováveis,
pelo enquadramento clínicoe epidemiológico).
Da investigação etiológica, adicionalmente efectuada, salientam-se:
• electromiografia, estudos de condução nervosa dos membros e estudo de
estimulação repetitiva 10 dias após início dos sintomas: sem evidência
electrofisiológica de neuropatia periférica ou sinais de disfunção da placa
motora;
• estudo imunológico: sem alterações; negativo para anticorpo anti-GQ1b;
• serologia de Campylobacter jejunino soro: igG negativa, igMpositiva. Foi
ainda repetida a RMN cerebral com contraste endovenoso, 20 dias após o início
dos sintomas, que não mostrou alterações de novo. especificamente, não foram
detectadas alterações morfológicas ou de sinal na região infratentorial e
pares cranianos baixos. tendo em conta estes resultados, a síndrome de
Fisher-Bickerstaff tornou-se a mais provável das hipóteses de diagnóstico
sugeridas. Entretanto, o doente iniciou um programa diário de Fisioterapia,
bem como de terapia da Fala. Dado o contexto de doença auto-imune, foi
introduzida terapêutica com imunoglobulinas intravenosas.
Gradualmente, o doente recuperou dos défices neurológicos (primeiro, movimentos
oculares; depois, sintomas bulbares e ataxia, por esta ordem). À data da alta
hospitalar (62 dias após início dos sintomas),o doente não tinha limitação dos
movimentos oculares, parésia facial ou disfagia. Apresentava disartria e
disfonia, assim como ataxia ligeira do tronco e da marcha, sendo capaz de
realizar marcha autónoma, sem auxiliares. Pontuava 3 na escala de Rankin
modificada.
Os diagnósticos finais foram: síndrome de Fisher-Bickerstaff, sem anticorpo
anti-GQ1b, provavelmente secundária a infecção por Campylobacter jejunie AVC
isquémico lacunar do território da artéria cerebralmédia esquerda coincidente.
Discussão
A síndrome de Fisher-Bickerstaff cursa tipicamente com dissociação albumino-
citológica2,3e positividade para o auto-anticorpo anti-GQ1b2(em 85% dos
casos5,6). Na maioria dos doentes, os estudos imagiológicos não revelam
alterações específicas2, tal como no doente que apresentámos. Porém, em alguns,
a RMN demonstra alterações no mesencéfalo, cerebelo ou pedúnculo cerebeloso
médio7, que geralmente surgem hiperintensas em T2 ou, mais comummente, como
áreas captantes de contraste em T12. O diagnóstico diferencial inclui uma lesão
aguda do tronco cerebral, principalmente encefalite do tronco3. Na síndrome de
Fisher-Bickerstaff, o sintoma inicial mais frequente é a diplopia, seguida de
perturbações da marcha7. Sintomas de apresentação menos comuns incluem parésia
facial, ptose palpebral, fraqueza muscular dos membros, disfagia, fotofobia,
hipovisão, tonturas e cefaleias2. Neste doente, os sintomas de apresentação
foram disartria e parésia facial. A oftalmoplegia é o achado mais prevalente e
consistente na fase aguda da doença19, sendo, na maioria dos doentes, bilateral
e relativamente simétrica2. A ataxia pode ser bastante severa, originando uma
perturbação da marcha; asua patogénese ainda não está completamente
estabelecida, acreditando-se que possam estar implicados mecanismos periféricos
(proprioceptivos) e centrais (cerebelosos)2. A maioria dos doentes recupera de
forma espontânea e completa dentro de 2 a 3 meses após o início da doença2. O
tempo médio desde o começo dos sintomas neurológicos até o início da
recuperação é 12 dias para a ataxia e 15 para a oftalmoplegia. O tempo médio
para a resolução completada a taxia é de 1 mês e de 3 meses para a
oftalmoplegia. Aos 6 meses após o início da doença, os doentes não apresentam
normalmente limitações significativas na actividade. A rapidez de recuperação é
independente da idade do doente, sexo, evidência de infecção precedente, grau
de incapacidade no pico da doença ou tempo de latência até ao pico8. O
tratamento com imunoglobulinas intravenosas não tem habitualmente efeito no
resultado global, provavelmente porque os doentes tipicamente têm uma boa
recuperação espontânea9. É difícil estabelecer uma relação directa entre a
recuperação neurológica deste doente e a aplicação da imunoglobulina, não se
podendo, contudo, excluir a sua contribuição. Um programa adequado de
reabilitação multidisciplinar é fundamental, sendo mais importante do que a
imunoterapia. O programa de reabilitação tem como objectivos auxiliar na
regressão dos sintomas, prevenir as complicações da doença e compensar os
défices funcionais e deve ser começado numa fase precoce da doença, assim que a
situação clínica o permita. Na fase aguda, a intervenção da Medicina Física e
de Reabilitação (seja através de Fisioterapia ou terapia da Fala) visa a
prevenção e o tratamento de complicações, muitas das quais associadas à
imobilidade: retracções músculo-tendinosas, fenómenos tromboembólicos,
complicações respiratórias (atelectasias, infecções respiratórias), úlceras de
pressão, úlceras de córnea (sequelares a não encerramento palpebral completo),
disfunção autonómica e problemas de deglutição. Posteriormente, visa o
tratamento do défice motor (parésia facial), ataxia, anartria e disfagia10. No
caso do doente descrito, o prognóstico funcional está agravado pela
concomitância de doença vascular cerebral marcada. O caso acima descrito realça
ainda a importância de uma colaboração estreita entre a Neurologia e a Medicina
Física e de Reabilitação.