A crise de confiança nos Cuidados de Saúde
COMENTÁRIO
A crise de confiança nos Cuidados de Saúde
Manuel Cardoso de Oliveira1
1Escola de Estudos Pós-Graduados e de Investigação, Universidade Fernando
Pessoa, Porto
Correspondência
A falta de confiança nos Cuidados de Saúde gera consequências preocupantes -
diminuição da qualidade dos desempenhos, aumento dos custos e dos conflitos e
ineficiências organizacionais. Estes problemas serão agravados se esses
cuidados forem submetidos a poderosos mecanismos de mercado, o que faz com que
os vários intervenientes se encarem com acrescidas suspeitas. A escassez de
confiança terá ainda mais consequências se continuarmos a manifestar
indiferença perante ela. No centro de todo este processo estão as pessoas e os
seus comportamentos.
A crise instalada nos sistemas de Saúde espera o contributo de todos para que
possa ser suavizada, compreendendo-se que a confiança é ganha e não dada, que é
difícil ser ganha, mas rapidamente pode ser perdida.
Os movimentos sociais iniciados nos anos 60 geraram uma profunda e permanente
desconfiança nas instituições em geral e na ciência em particular. Os erros
médicos ' sempre controversos e sempre assustadores ' são um enorme factor na
erosão da confiança nos Sistemas de Saúde. Não sendo conhecida a verdadeira
magnitude do problema, a verdade é que a sua repercussão social e institucional
nos obriga a mudar a nossa cultura do modo como os encaramos, passando-se da
culpa para a aprendizagem sem deixar de reconhecer as suas implicações médico-
legais, jurídicas e éticas, e esperandose que os media acompanhem o sentido
positivo destas intenções. É sabido que os elevados níveis de confiança
promovem melhores resultados, com menores custos.
Os doentes que confiam nos profissionais de Saúde tornam-se, assim, parceiros
activos da prestação de cuidados e mais facilmente se colocam no centro dos
Sistemas de Saúde. O entendimento entre os clínicos permite que trabalhem
harmoniosamente e percam menos tempo praticando uma Medicina defensiva. Uma das
tarefas mais importantes do Sistema de Saúde é ganhar a confiança daqueles a
quem se destina. Para isso, uma das prioridades é estabelecer e monitorizar
altos níveis de qualidade. Mas a qualidade em Saúde, como se disse, é uma
matéria muito complexa que inclui medições difíceis. As organizações que
procuram ter a confiança dos outros devem aprender com a experiência o modo
como ela se constrói e o modo como pode ser destruída. As organizações de Saúde
necessitam também de ter uma imagem de marca. Na perspectiva da confiança, a
gestão dos cuidados é talvez a área mais problemática dos Sistemas de Saúde.
Apesar do declínio na confiança que se tem registado em numerosos países, a
verdade é que a confiança nos médicos permanece relativamente alta.
A crise de falta de confiança abrange muitos sectores, além da Saúde. Parece
ser um problema geral da sociedade que afecta muitos aspectos da vida moderna.
Por isso as teorias culturais da modernização da sociedade talvez sejam uma
explicação mais satisfatória para este fenómeno, o que significa que não
podemos ter a visão redutora de que tudo se resume à necessidade de uma
reorganização da Medicina. No entanto, os modelos paternalistas do exercício da
Medicina têm sido esvaziados de conteúdo pelas mudanças sociais que se têm
registado. Os doentes são mais cépticos e mais instruídos em termos de
Medicina, sendo necessário encarar isso, não como uma ameaça, mas como uma
oportunidade para melhorar. No entender de Donald Berwick qualidade e confiança
são primos directos. Com o crescente recurso às novas tecnologias de informação
e o uso de medições em Saúde o público está cada vez mais exigente e a
necessidade de mudança nas unidades de Saúde é mais premente. Mas para mudar é
necessário encarar a realidade, estar interessado em criar novas estruturas e
dispor da colaboração de todos. Por todas estas razões torna-se indispensável
ter um modelo para melhorar. Como temos vindo a destacar, em termos de
Qualidade em Unidades de Saúde é necessário monitorizá-la mas ter sempre
presente a importância da sua melhoria e sustentabilidade. Para isso devemos
saber o que estamos a tentar realizar, como é que reconhecemos que a mudança é
uma melhoria e quais as mudanças praticadas que resultaram em melhoria.
Os números disponíveis sobre os erros em Saúde são alarmantes, havendo vários
mitos sobre o modo de os encarar. Um deles é que são números errados, outro é
que ninguém sabe como os resolver e finalmente é o de que não há suficientes
recursos para implementar medidas de segurança. Na realidade, sabe-se hoje que
para melhorar a Segurança não são necessários grandes recursos adicionais. O
que é importante é dispor de lideranças esclarecidas que saibam criar uma
cultura de segurança, sabendo-se que investir na qualidade e na segurança é um
investimento com retorno. Há até experiências vividas em certas Unidades de
Saúde que demonstram ser possível obter melhores resultados com contenção de
custos. É, pois, aconselhável estar atento a estas realidades, fazer da
Segurança uma prioridade, criar uma organização da aprendizagem, pensar em
termos de Sistemas, reconhecer que a Segurança é uma responsabilidade de todos
e adoptar uma política de total transparência. Devem ainda ser estabelecidos
padrões de desempenho, sendo indispensável monitorizar o grau de adesão dos
diversos grupos profissionais. Realmente parece-nos necessária uma verdadeira
revolução. Para melhorar a segurança e aumentar a confiança nos Sistemas de
Saúde estes devem evoluir para estruturas em cujo centro está o doente. Estes
serão, assim, decision makers, participantes nos seus próprios cuidados e
avaliadores destes.
Ao criar-se a confiança ganha-se uma vantagem competitiva no mercado da
saúde. Ter uma marca de qualidade, boa reputação, relevância, reconhecimento,
consistência, credibilidade, boa posição no mercado e sustentabilidade são
atributos que Devil Shore considera muito importantes. A confiança é
interactiva e auto-reforça-se, tendo a marca de confiança de uma organização
vários domínios: como interage com o público, integridade, desempenho e modelo.
Para que estes blocos se construam não é aconselhável que seja impostos de
cima, ainda que o suporte dos mais altamente colocados seja importante. A
complexidade dos doentes e a proliferação de decisões e actividades médicas
altamente variáveis condicionam a prática médica e tornam os profissionais
ainda mais esforçados para não limitarem a sua autonomia. Tudo isto torna muito
difícil medir e monitorizar a qualidade clínica a nível individual. Só em áreas
seleccionadas há volumes de doentes que permitem contornar estas dificuldades,
conceito que inevitavelmente terá no futuro ainda mais implicações na definição
de políticas de Saúde actualizadas.
Espera-se assim contribuir para que os Hospitais e outras Unidades de Saúde
sejam lugares mais seguros e menos frustrantes, onde se possa trabalhar com
gosto e eficiência e se demonstre que os recursos humanos e materiais neles
investidos têm indiscutíveis retornos.
Correspondencia:
Prof. Dr. Manuel Cardoso de Oliveira
Escola de Estudos Pós-Graduados e de Investigação, Universidade Fernando
Pessoa, Praça 9 de Abril, 349, 4249-004 Porto. Email: manuelco@ufp.edu.pt;
maco0410@gmail.pt