Aspectos Psiquiátricos na Transplantação Cardíaca e Pulmonar
Introdução
O transplante de órgãos sólidos é uma modalidade terapêutica reservada para os
casos graves de doença dos órgãos envolvidos, surgindo por isso como a hipótese
de ultrapassar o obscuro prognóstico de uma doença terminal. Para além de terem
de lidar com a morbilidade associada à sua condição médica de base, todo o
processo de transplantação é extraordinariamente exigente para os candidatos,
não apenas do ponto de vista físico mas também psicológico e emocional. A
maioria dos doentes ultrapassa com êxito os desafios colocados pela
transplantação mas, para uma substancial minoria, o esforço necessário
associase a níveis elevados de ansiedade, depressão e outras dificuldades de
copingcom esta situação.1,2
Não obstante o aumento do número de órgãos recolhidos para transplante, o
crescimento contínuo do número de doentes com condições médicas graves que
chegam até estadios terminais, e por isso potenciais candidatos a transplante,
determina uma escassez de órgãos em face das necessidades. Adicionalmente a
esta consideração geral, há que ponderar para cada caso em particular os
elevados riscos potenciais do procedimento, bem como os onerosos custos
associados. Isto obriga a uma criteriosa selecção dos doentes de modo a que
sejam transplantados os que potencialmente mais beneficiem deste procedimento.
O reconhecimento da influência das características psicossociais e dos factores
comportamentais no prognóstico do transplante conduziu à inclusão de critérios
psicossociais na selecção dos candidatos e na recomendação da integração da
Psiquiatria entre as especialidades médicas envolvidas nas equipas
multidisciplinares de transplantação. A participação da Psiquiatria tem sido
apontada como uma importante vantagem para atingir os objectivos clínicos bem
como na melhoria dos cuidados ao doente no póstransplante, dada a elevada
prevalência de perturbações psiquiátricas nesta população.3
Áreas de intervenção da psiquiatria
Têm sido identificadas como áreas de intervenção da Psiquiatria na
transplantação a selecção de doentes e o consentimento informado, o diagnóstico
e tratamento das perturbações psiquiátricas pré-transplantação, nomeadamente o
abuso ou dependência de substâncias nos candidatos, a avaliação das condições
de adesão ao tratamento bem como a sua promoção, e a abordagem das perturbações
psiquiátricas pós-transplante, com particular ênfase para a potencial
necessidade de intervenção psicofarmacológica em doentes que, em regra, são
polimedicados.
Elevados níveis de stress estão presentes nos vários estadios do processo de
transplante cardíaco.4uma das primeiras preocupações dos candidatos a
transplante está relacionada com a incerteza em relação ao tempo de espera e à
sua capacidade de sobrevivência até à disponibilidade do órgão necessário. O
alívio finalmente trazido pelo transplante é, no entanto, acompanhado de novas
preocupações, como o risco da rejeição, de infecções oportunistas e outros
efeitos laterais das medicações. O stress relacionado com estas preocupações
bem como o longo período de restabelecimento após o transplante podem levar a
quadros de ansiedade, depressão e outras dificuldades de coping.1
Pré-transplante
O período pré-transplante é uma fase de enorme mal-estar psicológico geral para
a quase totalidade dos doentes, sendo os primeiros agentes desencadeadores de
stresso reconhecimento de uma doença ameaçadora da vida e a necessidade de
transplante.5Outra potencial causa de mal-estar psicológico é a própria
complexidade do processo de transplantação. Estima-se que cerca de 20% dos
doentes desenvolvam uma perturbação psiquiátrica enquanto aguardam o
transplante e que a presença de sintomas ansiosos possa atingir os 80%.6
Após a selecção para transplante e colocação em lista de transplantação, o
período de espera por um dador compatível é muitas vezes caracterizado por
angústia marcada. Alguns doentes descrevem sentimentos de ambivalência,
vergonha e culpa, receando que ambicionar o transplante possa ser entendido
como desejo da morte de alguém.7Por outro lado, é também comum que o doente
viva este período num estado de hiper-alerta, porque pode ser chamado para o
procedimento a qualquer hora do dia ou da noite. Paralelamente, tem de lidar
com as consequências, muitas vezes incapacitantes, da doença de base. Estima-se
que cerca de metade dos doentes morrem enquanto aguardam o transplante. Para os
próprios e para os seus familiares, o período da espera caracteriza-se, assim,
por uma oscilação entre a preparação para a morte e a tentativa de manter a
esperança.1,5
O processo de selecção dos candidatos é feito com base em critérios médicos,
cirúrgicos e psicossociais. Estes critérios têm variado ao longo do tempo, de
acordo com os recursos terapêuticos disponíveis.
Integrando as equipas de transplantação, os psiquiatras contribuem para a
selecção criteriosa dos doentes candidatos a transplante. A selecção é
essencial, não apenas pela escassez de órgãos em face das necessidades, mas
também de modo a adequar a intervenção mais eficaz a cada doente em particular.
O objectivo é seleccionar os que mais beneficiarão com o procedimento,
contribuindo assim para melhorar a sobrevida e qualidade de vida dos
candidatos. Os pareceres para selecção são um exercício clínico e são, por
isso, sempre individualizados, considerando o benefício do doente em primeiro
lugar. A conclusão por um parecer desfavorável ao transplante resulta da
existência de uma relação risco-benefício adversa. Não obstante poder ser
entendido como um obstáculo à realização de um procedimento no qual se deposita
a esperança de recuperação de uma doença grave, o parecer negativo opõe-se à
realização de um procedimento que pode resultar em agravamento da qualidade de
vida ou mesmo em morte precoce.
Não existe uniformização quanto à consideração dos aspectos psicossociais nos
diferentes centros de transplantação, o que sublinha a necessidade de pesquisas
sobre a validade e fiabilidade dos critérios de selecção psicossocial. 8A
grande maioria dos programas utiliza alguma forma de avaliação psicossocial
pré-transplante e muitos deles incluem testes psicológicos formais na
avaliação. A participação de um Psiquiatra nas equipas de transplantação pode
ajudar a estabelecer linhas de orientação que dão consistência e suporte éticoà
selecção dos candidatos.3
De entre os factores psicossociais, a ansiedade e a depressão, a presença de
perturbações de personalidade ou a disfunção neurocognitiva e o suporte social,
têm sido identificados como importantes na avaliação prétransplante. A adesão,
entendida num sentido estrito como o cumprimento das prescrições farmacológicas
e num sentido mais lato como a adesão a outras recomendações médicas, como a
abstinência de tabaco, de álcool e de outras drogas e a adesão a um regime
alimentar adequado, tem sido identificada como um dos principais factores
comportamentais a avaliar no pré-transplante.3
Os factores associados a pior prognóstico do transplante são: o fraco suporte
social, a presença de perturbações psiquiátricas que comprometam a adesão no
pós-operatório, comportamentos auto-destrutivos, incluindo o abuso de nicotina,
álcool e drogas, má adesão ao tratamento médico e a presença de traços de
personalidade mal-adaptativos.9
A susceptibilidade ao stress, o comportamento mal adaptativo e a presença de
psicopatologia podem correlacionar-se com o sucesso do transplante, embora
associações directas com a mortalidade pós-transplante tenham mostrado
resultados controversos ou inconsistentes. No entanto, a presença de
perturbações psiquiátricas associa-se muitas vezes a prejuízo da adesão ao
tratamento, o que compromete o resultado do transplante.6
Triagem pré-transplante
A triagem psicossocial pré-transplante é parte integrante dos procedimentos de
selecção dos candidatos a transplante, assim como um importante meio para
conhecer o paciente como uma pessoa para prestar melhor atendimento. Uma
avaliação global permitirá, estabelecer uma apreciação inicial do funcionamento
mental e monitorizar eventuais mudanças no pós-operatório, predizer a
capacidade do destinatário em lidar com as tensões geradas pela cirurgia,
identificar doenças mentais co-mórbidas e conhecer as necessidades
psicossociais do paciente e da família. Deste modo, será possível delinear um
plano de intervenção durante as fases de espera, recuperação e reabilitação do
processo de transplante.
As características psicossociais e comportamentais a considerar no pré-
transplante são semelhantes entre candidatos a transplantes de diferentes
órgãos sólidos, pelo que, em regra, os protocolos de triagem psicossocial pré-
transplante não são específicos de órgão.10A abordagem dos factores
psicossociais deverá percorrer vários domínios, nomeadamente: funcionamento
físico, ajustamento psicológico, aspectos comportamentais, suporte social e
qualidade de vida (Figura_1).11
Mehrae colaboradores definiram quatro áreas centrais no processo de triagem
pré-transplante:
• Compreensão:capacidade para compreender as explicações dos procedimentos e
as instruções em relação ao tratamento pré-e pós-transplante, bem como a
capacidade para dar o consentimento informado.
• Adesão:capacidade de adesão a um regime complexo de terapêutica
farmacológica ao longo da vida, alteração em termos de estilos de vida e
seguimento clínico regular.
• Avaliação Social:identificar se a família ou os amigos irão providenciar o
suporte ao longo do processo e se estarão dispostos a comprometerem-se com o
bem-estar psicossocial futuro do doente.
• Qualidade deVida:percepção do doente sobre o seu próprio bem-estar
psicossocial e o desejo de sobrevida a longo prazo.12
O processo de selecção poderá incluir avaliações formais escritas, nomeadamente
com testes psicométricos, mas que não substituem a entrevista clínica face-a-
face.
A escala de Avaliação para Transplante (Transplant Evaluation Rating Scale-
TerS) e a Avaliação Psicossocial de candidatos a Transplante (Psychosocial
Assessment of Candidates for Transplantation-PAcT) são duas das escalas
específicas de avaliação de candidatos a transplante.13,14Consideram factores
como suporte social, saúde psicológica, abuso de substâncias, factores de
estilo de vida, coping com a doença, compreensão do processo de transplante e
seguimento clínico. Existe tradução destes instrumentos para Português mas
ainda não existe validação.15
Portanto, uma avaliação psiquiátrica pré-transplante completa deve incluir:
• Antecedentes psiquiátricos
• Sintomas/doença psiquiátricos actuais (ansiedade, depressão, traços/
perturbação de personalidade)
• Uso de psicofármacos
• História de abuso de substâncias (álcool, tabaco, outras)
• Suporte social
• Avaliação cognitiva
• Capacidade de conhecer, consentir e decidir sobre actos médicos
• Factores preditivos da adesão ao tratamento.3,16
Adesão
A adesão designa o grau em que o comportamento do indivíduo coincide com a
prescrição médica e é entendida como um dos determinantes do sucesso do
transplante. O processo de transplantação implica não apenas o cumprimento de
regimes farmacológicos complexos mas também a adopção de alterações ao nível do
estilo de vida, como recomendações nutricionais, controlo do peso, cessação
tabágica e actividade física.3,6,17
Prever a adesão de modo seguro é uma tarefa difícil. No entanto, ela pode ser
estimada de forma directa (através do doseamento dos fármacos) e indirecta
(através de questionários de adesão como o Instrumento de Adesão à Terapia
Imunossupressora [Immunosuppressant Therapy Adherence Instrument-ITAS]).18
A não adesão aos regimes terapêuticos é um problema reconhecidamente relevante
na prestação de cuidados médicos em geral. Entre pacientes com doenças crónicas
estima-se metade não cumpra o tratamento um ano após a sua prescrição, o que se
traduz por deficiente controlo da condição-alvo e impacto económico
substancial.19,20
A não-adesão ao tratamento imunossupressor é comum nos transplantados,
especialmente após o primeiro ano. A adesão encontra-se melhor estudada nos
transplantados renais, população em que se estima uma prevalência de não-adesão
de 22,3%20. Dos transplantados cardíacos, 34,4% não adere a pelo menos uma das
áreas do tratamento e 16,8 a 20% não aderem à terapêutica imunossupressora após
o primeiro ano. 20
No período imediatamente após o transplante, os doentes apresentam geralmente
uma boa adesão, encontrando-se esta, sobretudo, dependente da informação
prestada quanto ao tipo de medicamentos e à sua posologia. Após o primeiro mês,
os doentes podem começar a apresentar uma não adesão ocasional, falhando uma ou
duas tomas por semana, ou não respeitando o horário das tomas. Nos meses
seguintes alguns doentes podem apresentar uma não adesão intermitente que se
pode tornar, a médio ou longo prazo, em persistente e total. O abandono da
medicação tem sido relacionado, sobretudo, com os efeitos secundários dos
fármacos, como os resultantes do uso prolongado de corticóides (hirsutismo,
acne, alopecia, fácies cushingóide), bem como com a sensação de imortalidade
reforçada por um longo período sem problemas de saúde. 20
O impacto da não adesão no resultado do transplante é enorme, encontrando-se
associada a elevada morbilidade e mortalidade, redução da qualidade de vida
(QDV), aumento dos custos com cuidados médico se maior recurso aos serviços.
21Segundo Nashe Cooper, 26% dos casos de perda de função do enxerto ou morte
após transplante cardíaco devem-se, pelo menos em parte, à não adesão. 22
Os estudos sobre a adesão ao tratamento após transplante têm mostrado
resultados contraditórios no que respeita ao valor predictor do género e da
classe sócio-económica. Os factores mais frequentemente associados a não adesão
encontram-se sumariados na Tabela_1. 3,6,17,21
Intervenções psicoterapêuticas (nomeadamente do tipo cognitivo-comportamental)
e/ou psico-educativas podem ser importantes na modificação de crenças e
atitudes disfuncionais do doente sobre a eficácia e/ou necessidade do
tratamento.3As intervenções descritas na literatura são baseadas em vários
modelos e com conteúdo e duração muito variáveis mas com idêntico benefício,
sendo consistente que a duração e dose influenciam positivamente
osresultados.23
Enquanto a presença de perturbações psiquiátricas major activas tem sido
consistentemente associada a pior adesão ao tratamento, ainda não há estudos
conclusivos sobre a relação dos mecanismos de coping, traços de personalidade e
relação médico-doente na adesão pós-transplante.3,6,17,21
Dobbels e colaboradores conduziram um estudo recente sobre a adesão pós-
transplante, concluindo que são predictores independentes de não-adesão à
terapêutica imunosupressora pós-transplante: a não adesão a medicações pré-
transplante (OR=2,7), o mau suporte social (OR=7,9), um nível de escolaridade
elevado (OR= 2,7) e baixa consciencialização (OR=0,8), sendo apenas o
primeiro predictor de rejeição aguda tardia do enxerto.24
Perturbações pré-transplante
Nos candidatos a transplante cardíaco tem sido verificada uma elevada
prevalência de psicopatologia, estimando-se que 41% apresentem um diagnóstico
do eixo I, 18% um diagnóstico do eixo II e 9% diagnósticos de ambos os eixos
descritos no manual de diagnóstico e estatística das Perturbações mentais IV-TR
(DSM-IV-TR).9
Maricle e colaboradores verificaram que 54% dos candidatos a transplante
cardíaco apresentam síndrome depressivo.25Dos candidatos a transplante
pulmonar, 25-50% apresentam critérios para, pelo menos, uma perturbação
psiquiátrica, sendo as Perturbações de Ansiedade e do humor as mais
frequentes.6Segundo Fusar-Poli e colaboradores, existem elevadas taxas de
depressão nos candidatos a transplante pulmonar mas cerca de 36% desses doentes
não recebem qualquer tratamento psiquiátrico.26
A presença de sintomas ansiosos e depressivos no pré-transplante pulmonar tem
sido correlacionada com maior mal-estar psicológico geral no pós-transplante e
é um factor predictor de pior ajustamento e QDV no pós-operatório.6contudo, não
foi encontrada associação entre a presença destes sintomas e a sobrevida ao fim
do primeiro anopós-transplante.27
Pós-transplante
Numa fase aguda, as perturbações resultantes de alterações fisiológicas,
metabólicas ou induzidas por fármacos, como os estados de deliriume aspsicoses,
são as que mais frequentemente requerem a intervenção do psiquiatra. Mais
tardiamente no decurso da hospitalização, que é muitas vezes prolongada, ou no
período pós-alta hospitalar as perturbações mentais mais frequentes são os
estados de ansiedade e a depressão.3A médio e longo prazo, o psiquiatra deve
estar atento ao aparecimento de perturbações psiquiátricas de novo, ao
agravamento de condições prévias e na promoção da adesão ao tratamento.
No doente transplantado, uma área especialmente sensível são as interacções
farmacológicas, já que os doentes estão frequentemente sujeitos a múltiplas
medicações. A corticoterapia deve ser considerada como um factor potencialmente
confundidor, aumentando o risco de perturbações psiquiátricas. Adicionalmente,
o psiquiatra deve manter um elevado nível de suspeição em relação à
etiopatogenia das alterações do humor ou comportamento que frequentemente
surgem como sinais precoces de um problema médico, especialmente quando
súbitas. Os sintomas depressivos surgem muitas vezes no período pós-cirúrgico
independentemente do desfecho clínico, podendo representar um processo
adaptativo após um esforço prolongado para manter esperança e evitar o
desespero.3
Perturbações psiquiátricas no pós-transplante cardíaco
Muitas perturbações psiquiátricas são entendidas como normais ou uma reacção à
doença física compreensível na situação pós-transplante, o que pode conduzir ao
seu sub-diagnóstico e sub-tratamento.28No entanto, quando diagnosticadas, 75%
das perturbações respondembem ao tratamento.25
Quadros de depressão clinicamente significativa ocorrem em cerca de um quarto
dos transplantados cardíacos nos três primeiros anos após a cirurgia, sendo os
sintomas precoces os que mais se relacionam com o processo de transplante
propriamente dito. Um quinto destes pacientes apresenta Perturbação de
StressPós-Traumático (PTSD) relacionada com o transplante e numa proporção
semelhante são diagnosticadas Perturbações de Adaptação.6
Segundo Dew e colaboradores, a prevalência de perturbações psiquiátricas nos
transplantados cardíacos aumenta do primeiro para o terceiro ano
póstransplante, com 17,3% de depressão major, 13,7% de PTSD relacionada como
transplante e 10,0% de Perturbação de Adaptação após o primeiro ano29e 25,5%
Perturbação depressiva majore 17% PTSD três anos depois.30Entre os familiares
cuidadores destes doentes, 7,7% preencheram critérios para PTSD e 11,0%
adicionais apresentaram alguns critérios para esta perturbação.31Outros autores
encontraram uma melhoria dos scoresde ansiedade, depressão, imagem corporal e
QDV até quatro anos após o transplante.32,33
Os factores associados a perturbações depressivas ou ansiosas após transplante
cardíaco são: história de perturbação psiquiátrica pré-transplante, mau suporte
social, uso de estratégias de evitamento na abordagem dos problemas de saúde,
baixa auto-estima, efeitos laterais na imagem corporal secundários ao uso de
altas doses de corticóides e tratamento com bloqueadores-beta.29
Perturbações psiquiátricas no pós-transplante pulmonar
No curto prazo após transplante pulmonar, os sintomas depressivos são mínimos,
o que deverá estar relacionado com o aumento da QDV que é inicialmente muito
significativo nestes doentes. No longo prazo (aos três anos), o declínio do
estado funcional tem sido associado a um aumento significativo da
sintomatologia depressiva.26O bem-estar psicológico dos transplantados de
pulmão é semelhante à população saudável ao fim do primeiro ano.34
Também no transplante pulmonar existe um conjunto de factores associados ao
aparecimento de perturbações depressivas ou ansiosas, como o tipo de doença
terminal, a presença de Perturbação de Personalidade, uso de estratégias de
coping disfuncionais, acontecimentos de vida, complicações físicas, medicações
imunossupressoras, limitações na capacidade de trabalho, disfunções sexuais e
falta de suporte psicossocial.26
Qualidade de vida
O transplante de órgãos melhora substancialmente a QDV e a situação
psicossocial dos receptores.35A QDV melhora significativamente após a cirurgia
e mantém-se elevada.28Há, contudo, um grupo significativo de doentes em que não
ocorre melhoria do bem-estar psicossocial, desconhecendo-se inteiramente os
determinantes deste desfecho.36A insatisfação quanto à vida social e à situação
financeira, apesar da melhoria da condição física e bem-estar geral, são
referidas por muitos doentes no pós-transplante cardíaco.7Alguns dos principais
problemas sociais nos receptores de transplante cardíaco são o regresso à
actividade laboral, bem como a retoma de outras actividades quotidianas.7Entre
os transplantados cardíacos, a QDV melhora após o transplante e mantém-se
estável aos três e cinco anos pós-transplante37. Enquanto nestes doentes a QDV
aumenta rapidamente logo após o transplante, nos transplantados pulmonares a
melhoria parece ser mais lenta, atingindo equivalência ao transplante cardíaco
ao fim do primeiro ano.38
Variáveis psicossociais e prognóstico
A relação entre as variáveis psicossociais e o prognóstico tem sido alvo de
controvérsia e mostrado resultados discrepantes entre os diferentes estudos.
Segundo Turjanski e Lloyd, a influência dos factores psicossociais no
prognóstico clínico e na adesão ao tratamento não se encontra claramente
provada; no entanto, relaciona-se com as taxas de complicações e algumas
dificuldades no período pós-transplante.6
Um estudo com uma coorte de pacientes submetidos a ventriculectomia parcial
esquerda por contraindicação para transplante cardíaco, mostrou que a presença
de contra-indicações psicológicas resultou num impacto negativo no tempo de
sobrevida pós operatório, sendo que o prognóstico adverso se deveu, sobretudo,
à má adesão ao tratamento que se impunha após a cirurgia.39
Owen e colaboradores, estudaram a associação entre a avaliação psiquiátrica
pré-transplante cardíaco e vários outcomes, como o número de hospitalizações
pós-transplante, o número de episódios de rejeição e a sobrevida, avaliando os
casos, em média, 970 dias após o procedimento. Esta investigação permitiu
verificar que a existência de tentativas de suicídio prévias se associa a um
aumento das taxas de infecção após o transplante. Adicionalmente, o mesmo
trabalho mostrou que antecedentes de tentativas de suicídio, má adesão às
recomendações médicas, história de tratamento prévio por dependência de
substâncias e depressão são factores que se encontram associados a diminuição
da sobrevida nos doentes transplantados. A avaliação e tratamento precoce
destes factores de risco pode potencialmente reduzir a morbilidade e a
mortalidade pós-transplante. A depressão surge como um dos factores mais
significativos pois, apesar da sua robusta associação com pior prognóstico nos
doentes cardíacos, é uma condição passível de tratamento.40
Também Brandwin e colaboradores verificaram a influência das variáveis
psicossociais no prognóstico, tendo concluído que a existência de elevado mal-
estar psicológico geral se associa a maior mortalidade no primeiro e quinto ano
após o transplante.41
Um outro estudo destaca o facto da história de doença psiquiátrica per seser
pouco relevante no desfecho clínico do transplante, já que os indivíduos com
alguma perturbação mental mas com boa adesão ao tratamento médico não têm
resultados diferentes dos restantes no que se refere ao resultado do
transplante ou em termos de sobrevida.42
Em relação à personalidade, existem alguns estudos em transplantados cardíacos
que a correlacionam com o prognóstico do transplante. O padrão de personalidade
Tipo D (escala DS-14) associou-se de forma independente a maior mortalidade e
rejeição precoce do enxerto em doentes submetidos a transplantação cardíaca43e
a três a seis vezes maior risco de diminuição da QDV sete anos após o
transplante cardíaco.44
Tratamento da depressão no pós-transplante
Não existem recomendações estabelecidas sobre intervenções psicológicas ou
farmacológicas especificamente aprovadas para estas situações. Também não se
encontram disponíveis, tanto quanto seja do nosso conhecimento, estudos
randomizados sobre a eficácia e a segurança de medicações anti-depressivas
nesta população, sendo as recomendações existentes baseadas em estudos de caso
ou opiniões de peritos.28,45
No entanto, a depressão e mesmo a presença de sintomas depressivos abaixo do
limiar diagnóstico de perturbação mental parecem estar associadas a maior
morbilidade e mortalidade em doentes com patologia cardiovascular. O humor está
também relacionado com a QDV e, por isso, o tratamento antidepressivo deverá
melhorar a QDV e aumentar a sobrevida dos doentes transplantados.28
A escolha de tratamento antidepressivo e ansolítico deve, como habitualmente,
ter em consideração as características do doente e o perfil de efeitos
laterais.26Os fármacos inibidores da recaptação da serotonina (SSRIs) são
considerados a primeira escolha e, destes, a sertralina e o citalopram são os
mais aconselhados. A sertralina apresenta um efeito de vasodilatação das
artérias coronárias, protecção do endotélio e um possível efeito sinérgico com
a terapêutica imunossupressora. A mirtazapina é também considerada uma
abordagem de primeira linha, sobretudo nos casos em que os seus efeitos
ansiolítico, sedativo e estimulador do apetite sejam vantajosos.
Os antidepressivos tricíclicos (TCAs) encontram-se associados a toxicidade
cardiovascular importante, potencialmente provocando atraso na condução
intraventricular (aumentando o intervalos PR, QRS E QT), hipotensão ortostática
e efeitos anti-colinérgicos.28No entanto, o coração transplantado, pela sua
desnervação autonómica, parece ser menos sensível a estes efeitos, pelo que
este grupo farmacológico surge como uma alternativa segura e eficaz.46O seu uso
deve ser cauteloso nos doentes com disfunção hepática, dada a sua metabolização
hepática; a nortriptilina é a que requer menor metabolização hepática, devendo
ser preferida nestes casos. Outro problema dos TCAs é o seu potencial para
baixar o limiar convulsivo, o que pode ser relevante em doentes com outros
factores de risco, como encefalopatia e neurotoxicidade devido ao tratamento
com inibidores da calcineurina.28
A electroconvulsivoterapia encontra-se descrita em apenas cinco casos de
doentes transplantados e é, como para as demais situações, uma intervenção
reservada para casos refractários.28
O uso de benzodiazepinas é seguro nos doentes com patologia cardíaca mas deve
ser cuidadoso nos transplantados pulmonares pela redução do tónus das vias
aéreas superiores e atenuação da resposta do centro respiratório à hipercapnia,
o que pode ocorrer mesmo em doses terapêuticas em alguns doentes ou ser
potenciado pelo efeito de outras medicações.26deve, ainda, preferir-se as
benzodiazepinas de acção curta, como o oxazepam e o lorazepam.28
No manuseamento de psicofármacos devem ser consideradas as potenciais
interacções farmacológicas, especialmente aquelas com o citocromo CYP3A4. Os
SSRIs são, em regra inibidores desta enzima, o que pode resultar em aumento dos
níveis de ciclosporina, já que a metabolização deste fármaco, comummente usado
nos esquemas de imunossupressão póstransplante, pode ficar prejudicada, até
atingir níveis tóxicos. As menores interacções são verificadas como citalopram,
que deve ser por isso preferido. Pelo contrário, a fluoxetina, apesar de
apresentar uma potência inibidora do citocromo CYP3A4 moderada, pela sua longa
semi-vida, compromete potencialmente a estabilidade dos níveis de
ciclosporina.28Vella J. e colaboradores defendem o doseamento da ciclosporina
sete a dez dias após o início do tratamento antidepressivo para assegurara
ausência de interacções.47
Existem poucos estudos publicados sobre intervenções psicoterapêuticas nestes
doentes. A maior parte delas consistem em abordagens para manuseamento do
impacto do stress, psico-educação e aconselhamento sobre estilos de vida.
Algumas das questões mais frequentemente focadas são as dificuldades de passar
de um estado de doença de órgão terminal para um estilo de vida mais activo
(novos papéis sociais e familiares), a presença de ruminações sobre o dador do
órgão e o medo de não voltar a sentir emoções nos transplantados cardíacos.28
Critérios de selecção para transplante
Os factores psicossociais desempenham um papel importante no sucesso do
transplante. A sua inclusão na selecção dos candidatos é uma medida de extrema
utilidade, contribuindo para a adequação do paciente ao procedimento e
fornecendo à equipa de transplante um conhecimento global de potenciais
problemas nos períodos pré e pós-transplante. As principais razões de ordem
psicossocial para rejeitar um candidato a transplante são baseadas na sua
incapacidade para dar cumprimento à medicação e ao tratamento, dado o elevado
risco de rejeição do órgãotransplantado.Os riscos significativos e os elevados
custos do transplante tornam essencial o reconhecimento dos factores que
afectam negativamente os resultados, devendo ser recusada a intervenção até que
essas questões sejam abordadas e resolvidas.48No entanto, não existem contra-
indicações absolutas baseadas nestes critérios. Estes são úteis, sobretudo,
para sinalizar situações em que estes factores concorram para um pior desfecho
do transplante. A presença de algumas perturbações psiquiátricas está associada
a pior adesão ao tratamento imunossupressor e pior QDV.6 No que se refere ao
transplante cardíaco, as recomendações para a avaliação psicossocial dos
candidatos e abordagem das situações de abuso de substâncias estão bem
estabelecidas pela Sociedade Internacional para a Transplantação cardíaca e
Pulmonar, através das Guidelines for the Care of Cardiac Transplant Candidates.
As recomendações são de várias categorias, desde I (existe evidência e/ou
acordo geral sobre eficácia/beneficio e utilidade) até III (não é útil/eficaz e
em alguns casos pode ser lesivo) (Tabela_2).12 Com base nestas recomendações,
as contra-indicações relativas para transplante cardíaco são:
• Perturbação de Personalidade Anti-social
• Não adesão à medicação
• Abuso de álcool ou outras drogas
• Tabagismo
• Ausência de cuidadores no caso de incapacidade do doente. Não existem linhas
de orientação claras para o transplante do pulmão mas os critérios usados nos
diferentes centros são semelhantes às recomendações existentes para o
transplante cardíaco.16
Conclusão
A compreensão da forma como os receptores vivenciam o processo de transplante é
essencial para o desenvolvimento de intervenções que assegurem o máximo
benefício a cada transplantado. Aos profissionais de saúde cabe actuar como
suporte em relação às enormes exigências do transplante, promovendo no
transplantado a consciencialização sobre as suas reais capacidades físicas,
estimulando a adesão ao tratamento e a adopção das mudanças de estilo de vida
fundamentais, bem como auxiliar o doente e os seus familiares em todo o
processo. A presença do psiquiatra nas equipas de transplantação permite aos
profissionais envolvidos ter um conhecimento holístico do doente e das suas
circunstâncias. A intervenção psiquiátrica pode:
• aumentar substancialmente a adesão às terapêuticas imunossupressoras e,
assim, a sobrevivência dos doentes.
• reduzir a taxa de complicações e melhorar a sua qualidade de vida.
• promover o acompanhamento dos doentes transplantados e das suas famílias na
fase pré- e pós-transplante, diagnosticando, atempadamente, as situações de
forma a planear o seu tratamento e a evitar futuras complicações.12 O
psiquiatra desempenha também um importante contributo na selecção dos
candidatos. existe, no entanto, uma enorme controvérsia sobre a validade dos
critérios psicossociais e sobre a sua capacidade para prever o resultado da
intervenção. O argumento ético para o uso de factores psicossociais é
semelhante ao dos factores médicos, isto é, doar órgãos àqueles que mais
provavelmente irão beneficiar deles em termos de qualidade de vida e de
sobrevida. Existem poucos dados sobre a fiabilidade e validade dos critérios
psicossociais e sobre consensual que todos os candidatos a transplante a
capacidade destas avaliações predizerem o des-cardíaco e pulmonar devem
passar por uma avafecho clínico do transplante. No entanto, parece liação
psicossocial.