Anafilaxia induzida por fármacos: Registo Nacional 2007-2010
INTRODUÇÃO
As reacções adversas a fármacos (RAF) constituem um problema de saúde pública
preocupante quer a nível hospitalar quer no ambulatório, pela signifi cativa
morbilidade, mortalidade e consequentes custos socioeconómicos. Em doentes
hospitalizados a incidência de mortalidade atribuída a RAF situa-se entre 0,05
e 0,19%1.
Dentro das reacções graves potencialmente fatais destaca-se a anafilaxia.
Considera -se reacção anafiláctica uma reacção de hipersensibilidade sistémica
aguda grave com envolvimento simultâneo de vários órgãos, particularmente a
pele, as vias respiratórias, o aparelho gastrintestinal e/ou o sistema
cardiovascular. A gravidade da reacção anafiláctica é variável e pode ser
classificada de grau I a IV segundo a escala de gravidade de Ring e Messmer2.
No sentido de uniformizar os conceitos foram mais recentemente revistos os
critérios clínicos de diagnóstico e tratamento de anafilaxia3-6.
A maioria das reacções anafilácticas são reacções imunológicas mediadas por
anticorpos IgE contra o agente farmacológico, o metabolito ou o excipiente. No
entanto, reacções com sintomatologia semelhante, podem ser mediadas por
mecanismos não imunológicos anteriormente designadas reacções anafilactóides
ou, de acordo com o consenso recentemente publicado pela World Allergy
Organization(WAO), por anafilaxia não imunológica6.
Num estudo baseado nos dados de cuidados de saúde primários do Reino Unido,
estimou-se uma incidência de anafilaxia de 8,4 por 100 000 indivíduos/ano na
população geral, sendo as etiologias mais frequentes os venenos (32%), os
fármacos (30%) e os alimentos (22%)7. Dos estudos nacionais publicados destaca
-se o de Botelho e colaboradores que efectuaram a análise retrospectiva dos
doentes internados no período de 10 anos num serviço de Imunoalergologia e
obtiveram uma frequência de anafilaxia de 0,012%. Os principais agentes
indutores de reacção anafiláctica foram fármacos (66%), meios de contraste
(19%), alimentos (13%) e veneno de himenópteros (2%)8. Morais-Almeida e
colaboradores encontraram uma prevalência de anafilaxia de 1,34% no ambulatório
de Imunoalergologia num período de 12 meses, metade dos doentes em idade
pediátrica. A maioria apresentava anafilaxia induzida por alimentos (59%),
seguida dos fármacos em 17% e do látex em 13%9.
Os fármacos consideram-se os principais desencadeantes de anafilaxia na idade
adulta, particularmente em idades superiores a 65 anos6,10,11. Há factores
geográficos que influenciam a incidência da anafilaxia a diferentes classes de
fármacos relacionados com o padrão de prescrição.
Numa meta-análise recente foram analisados 18 estudos epidemiológicos
internacionais de anafilaxia a fármacos em adultos e crianças, publicados entre
1994 a 200912. Os autores referem impossibilidade na quantificação da
incidência e mortalidade por anafilaxia a fármacos devido a diferentes
definições de anafilaxia usadas e a variantes metodológicas.
O diagnóstico foi baseado, na maioria dos casos, na clínica e em estudos
epidemiológicos e não na verificação de uma causa-efeito ou da existência de um
mecanismo imunológico subjacente. Observou-se um predomínio do género masculino
em idades inferiores a 15 anos e uma maior incidência entre os 55 e 84 anos
(3,8/100 000 indivíduos)12, sendo a hipersensibilidade a fármacos a causa mais
frequente de morte por anafilaxia neste grupo etário em estudos realizados no
Reino Unido, Nova Zelândia e Austrália12.
Esta análise permitiu ainda concluir que a penicilina e os anestésicos gerais
foram os agentes mais frequentes implicados nas reacções anafilácticas mediadas
por IgE; enquanto os anti-inflamatórios não esteróides (AINEs) e os produtos de
contraste iodados (PCI) foram as causas mais frequentes de anafilaxia não
imunológica12. Por outro lado, o risco de anafilaxia em doentes hospitalizados
parece ser mais elevado para a estreptoquinase, plasma e derivados e menor para
os AINEs e antibióticos13.
A dificuldade na confirmação do diagnóstico de anafilaxia prende-se com a falta
de testes normalizados para o estudo das reacções com a maioria dos fármacos e
com as limitações dos testes de provocação a fármacos nos casos de reacções
potencialmente fatais.
Na anafilaxia as manifestações mucocutâneas são extremamente prevalentes, mas a
sua ausência não exclui o diagnóstico. A anafilaxia induzida por fármacos é
caracterizada pela elevada frequência de sintomas cardiovasculares com início
súbito, especialmente em idosos10.
A gravidade da reacção anafiláctica não é apenas influenciada pelo tipo de
fármaco envolvido e pelo grau de sensibilização do indivíduo, mas também pela
coexistência
de outros factores, como idade, genética, exposição simultânea a outros
alergénios, infecção ou doença inflamatória concomitante, exercício físico,
stress psicológico e terapêuticas concomitantes6. A coexistência de asma ou de
outra doença respiratória crónica, doenças cardiovasculares, mastocitose ou a
administração concomitante de bloqueadores beta-adrenérgicos ou inibidores da
enzima de conversão da angiotensina parece constituirem factores de risco
acrescido para reacção grave ou fatal4,14,15.
A real incidência de anafilaxia a fármacos em Portugal é desconhecida, pela
ausência do registo sistemático destes casos, nomeadamente de um registo de
notificação obrigatória nacional; no entanto, é consensual o aumento crescente
de casos observados nos últimos anos.
Com esta iniciativa, pretendeu-se contribuir para o melhor conhecimento
epidemiológico da anafilaxia induzida por fármacos no nosso país, focalizado na
notificação de quadros de anafilaxia observados em consultas de
Imunoalergologia.
MATERIAL E MÉTODOS
Durante um período de quatro anos (Janeiro de 2007 a Dezembro de 2010) foi
implementado pela Sociedade Portuguesa de Alergologia e Imunologia Clínica
(SPAIC) um sistema de notificação de anafilaxia de âmbito nacional.
O diagnóstico de anafilaxia foi definido segundo os critérios publicados pela
American Academy of Allergy, Asthma & Immunology(AAAAI)3,4 indicados no
Anexo_1
. Estes critérios foram posteriormente recomendados pela European Academy of
Allergy and Clinical Immunology(EAACI) e pela WAO6.
Todos os médicos com diferenciação em Imunoalergologia, sócios da SPAIC, foram
convidados a participar neste projecto, tendo sido solicitada a notificação
voluntária de todos os casos observados de anafilaxia a fármacos (pelo menos
um episódio de reacção sistémica grave) através do preenchimento de um
questionário.
A notificação foi disponibilizada por carta, fax, e-mail e on-line no website
da SPAIC (www.spaic.pt). Todas as notificações recebidas foram avaliadas e
validadas por elementos do Grupo de Interesse de Alergia a Fármacos (GIAF) da
SPAIC, e após a análise preliminar dos dados decidiu-se complementar este
questionário com dados adicionais. Em caso de necessidade foram solicitados
esclarecimentos aos notificadores. A confirmação do diagnóstico de alergia a
fármacos foi baseada nos consensos publicados pelo European Network for Drug
Allergy(ENDA)/EAACI16.
População
Foram obtidos os questionários correspondentes a 313 doentes com história de
anafilaxia induzida por fármacos,notificados por 41 médicos sócios da SPAIC,
provenientesde serviços/unidades de Imunoalergologia nacionais
Questionário
A todos os doentes foi efectuado um questionário para caracterização clínica da
situação, avaliando os seguintes parâmetros:
dados demográficos, incluindo idade, género e concelho de residência;
antecedentes pessoais de asma ou outra patologia alérgica;
caracterização do factor causal implicado;
data da primeira reacção anafiláctica e descrição pormenorizada das
manifestações clínicas, mucocutâ neas, respiratórias, gastrintestinais e
cardiovasculares;
número de episódios de anafilaxia ocorridos e agentes envolvidos;
descrição da terapêutica efectuada, incluindo informação sobre o uso de
adrenalina, necessidade de recurso a urgência hospitalar ou internamento
hospitalar;
posse e utilização de dispositivo para auto'administração de adrenalina. Numa
subamostra de 282 casos (90%) foi possível complementar este questionário com
dados adicionais, incluindo os seguintes parâmetros:
via de administração do fármaco, oral, parentérica ou outra;
tempo decorrido entre o fármaco causal e o aparecimento dos sintomas;
local onde ocorreu a reacção anafiláctica, a nível hospitalar ou em
ambulatório;
presença de atopia, definida pela presença de pelo menos um teste cutâneo por
picada positivo para aeroalergénios comuns.
Análise estatística
Os resultados são apresentados como a frequência de respostas positivas
relativamente ao número total de respostas validadas.
Foi utilizada a análise de regressão logística múltipla para avaliar a
significância (p<0,05) e para obtenção de coeficientes de regressão e efeitos
marginais. Foi ainda avaliada a significância através de testes de distribuição
qui-quadrado.
RESULTADOS
Durante o período referido foram reportados 313 doentes com anafilaxia induzida
por fármacos. Nove doentes apresentaram mais de uma causa de anafilaxia,
correspondendo a um total de 322 notificações de vários grupos de fármacos
envolvidos.
Relativamente ao concelho de residência, a distribuição foi: 126 (40%) na
região Norte; 60 (19%) na região Centro; 119 (38%) na região Sul; 8 (3%) nas
regiões autónomas dos Açores e da Madeira.
Os doentes apresentavam uma média de idade de 43,8±17,4 anos, com uma idade
mínima de 2 anos e uma idade máxima de 89 anos. Vinte e seis doentes (8%)
tinham idade inferior a 18 anos e 287 (92%) eram adultos. A distribuição por
grupo etário dos doentes foi: 4 com < 6 anos (1%); 22 entre 6 e 18 anos (7%);
67 entre 18 e 35 anos (21%); 183 entre 35 e 65 anos (59%); 37 com ≥ 65 anos
(12%). Verificou -se um predomínio do género feminino, 207 (66%) para 106 (34%)
do género masculino, com uma relação feminino/masculino de 2/1. Nos casos de
idade inferior a 18 anos, pelo contrário, observou-se um predomínio do género
masculino, com uma relação masculino/feminino de 1,9/1. Nos adultos, acentuou -
se o predomínio do género feminino, com uma relação feminino/masculino de 2,2/
1.
Tinham antecedentes pessoais de doença alérgica 43% e 43% eram atópicos. Tinham
asma como co-morbilidade 19%, rinite alérgica 32% e doença respiratória
exacerbada pela aspirina (DREA) 10 doentes. Outros antecedentes de alergia
referidos foram: alergia alimentar em 14 (2 crianças e 12 adultos),
conjuntivite alérgica em 12, eczema atópico em 9, urticária crónica em 4 e uma
doente com angioedema hereditário tipo 3.
A média de idade do primeiro episódio de anafilaxia foi de 39 ±18,2 anos, com
uma idade mínima de 6 meses e uma idade máxima de 87 anos, respectivamente em
uma lactente com anafilaxia por antibiótico beta-lactâmico (ampicilina) e um
adulto com anafilaxia ao ácido acetilsalicílico (AAS).
A frequência relativa das várias etiologias associadas a anafilaxia induzida
por fármacos segundo o grupo etário, em idade pediátrica, adultos e idosos,
está representada no Quadro 1.
Quadro 1. Etiologia nos episódios de anafilaxia induzida por fármacos nos 313
doentes, correspondendo a um total de 322 notificações de diferentes grupos de
fármacos envolvidos. Distribuição por grupo etário, em idade pediátrica,
adultos e idosos
A causa mais frequente de anafilaxia, presente em 150 doentes (48%), foram os
AINEs. A maioria destes doentes tinha antecedentes pessoais de alergia (53%) e
quase metade (48%) eram atópicos. Tinham asma como co-morbilidade 27% e rinite
alérgica 40%, com diagnóstico de DREA em 10 doentes. Tinham urticária crónica
como co-morbilidade 2 doentes.
Os 165 AINEs implicados nos 150 doentes com anafilaxia induzida por AINEs,
encontram -se discriminados no Quadro 2, sendo referida a sua distribuição
relativa no grupo etário pediátrico e adultos. Os AINEs inibidores
preferenciais da ciclooxigenase (COX) -1 foram os principais implicados, com
destaque para o AAS, o diclofenac, o ibuprofeno e o metamizol. Os AINEs
inibidores preferenciais da COX -2 foram os implicados em 6 doentes, em todos
os casos nimesulide, e os inibidores selectivos da COX-2 em 2 casos. Em 2
adolescentes a anafilaxia foi induzida pelo paracetamol.
Quadro 2.Fármaco implicado nos 150 doentes com anafilaxia induzida por AINEs,
correspondendo a um total de 165 notificações de diferentes AINEs implicados.
Distribuição por grupo etário, em idade pediátrica e adultos
Cento e onze doentes tinham anafilaxia induzida por antibióticos (36%), dos
quais 12 eram crianças. Os antibióticos implicados encontram-se discriminados
no Quadro 3, sendo referida a sua distribuição relativa no grupo etário
pediátrico e nos adultos. Na maioria dos casos, correspondendo a 90 doentes, os
antibióticos implicados foram os beta-lactâmicos. Os outros antibióticos
encontrados, todos em adultos, foram por ordem decrescente as quinolonas, os
macrólidos, as sulfonamidas, e dois casos, respectivamente, com uma
tetraciclina e com vancomicina.
Quadro 3.Fármaco implicado nos 111 doentes com anafilaxia induzida por
antibióticos, correspondendo a um total de 112 notificações de diferentes
grupos de antibióticos implicados. Distribuição por grupo etário, em idade
pediátrica e adultos
As penicilinas e derivados foram os principais implicados, sendo a causa de
anafilaxia em 67 doentes, com destaque para a amoxicilina, o antibiótico
implicado em 50 doentes, dos quais 16 em associação com o ácido clavulânico. As
cefalosporinas foram a segunda causa de anafilaxia a antibióticos, sendo
implicados em 23 doentes, com destaque para a cefazolina, o antibiótico
implicado em 13 doentes.
Os fármacos implicados nos 19 casos de anafilaxia induzida por agentes
anestésicos foram todos reportados em adultos. Em 17 doentes, todos no contexto
de anafilaxia intra-operatória, foram implicados os anestésicos gerais: 10
(52,6%) a relaxantes neuromusculares (atracúrio ' 5; rocurónio ' 3; vecurónio '
2); 2 (10,5%) ao propofol e 2 (10,5%) ao midazolam; em 3 doentes o agente
anestésico não foi identificado. Em apenas 2 doentes (10,5%) os agentes
implicados foram os anestésicos locais (lidocaína ' 2; bupivacaína ' 1;
ropivacaína ' 1).
No Quadro 4 encontram-se descriminadas as três principais causas de anafilaxia
induzida por fármacos, com caracterização quanto à distribuição etária, género,
associação a asma e atopia e tempo de reacção.
Quadro 4.Caracterização da anafilaxia induzida pelos três principais grupos de
fármacos quanto a distribuição etária, género, asma, atopia e tempo de reacção
Não se encontraram diferenças estatisticamente significativas da associação
entre idade, atopia ou presença de asma entre os diferentes grupos de fármacos,
mas encontrámos uma prevalência muito superior das reacções aos anestésicos
gerais no género feminino, com uma relação feminino/masculino de 4,7/1. A
atopia estava presente numa grande percentagem de casos (43%), não constituindo
factor de risco significativo para a anafilaxia a estes três distintos grupos
de fármacos, nem para a recorrência de anafilaxia.
Relativamente às manifestações clínicas, 92% dos doentes apresentaram sintomas
mucocutâneos, 81% respiratórios, 49% cardiovasculares e 15% referiam queixas
gastrintestinais. A perda de consciência ocorreu em 14% dos doentes, no entanto
destaca-se que este item não pode ser aplicado nos casos de procedimentos intra
-operatórios efectuados sob anestesia geral.
Houve um predomínio da associação de sintomatologia mucocutânea e respiratória.
O envolvimento simultâneo de 3, 4 ou 5 sistemas ocorreu em 105, 45 e 9 doentes,
respectivamente.
Relativamente ao intervalo de tempo entre o factor causal e o aparecimento das
manifestações clínicas, na maioria dos doentes os sintomas apareceram nos
primeiros 15 minutos (53%), variando entre os primeiros 5 minutos até 8 horas.
A destacar que em 88% os sintomas ocorreram na primeira hora e em 6% após 2
horas, correspondendo estes casos a anafilaxia induzida por AINEs, com destaque
para 2 casos que ocorreram 4 horas após nimesulide e AAS e 2 casos 8 horas após
paracetamol e etoricoxib.
Em cerca de metade dos casos (45%) as reacções anafilácticas ocorreram em
ambiente hospitalar. A via de administração do fármaco foi na maioria dos casos
oral (64%), 23% por via endovenosa, 11% por via intramuscular e 1% por via
subcutânea; um caso foi associado a administração por via rectal e um caso a
realização de teste intradérmico à amoxicilina.
A anafilaxia induzida por fármacos motivou recurso a serviço de urgência
hospitalar em 78% dos doentes e, em 35% dos casos, justificou internamento
hospitalar. Nenhuma destas reacções foi fatal, tendo regredido com a
terapêutica instituída.
Relativamente ao tipo de tratamento efectuado para resolução da reacção
anafiláctica, apenas 48% dos doentes receberam tratamento com adrenalina. Em 9%
dos doentes foi prescrito para o ambulatório dispositivo para auto-
administração de adrenalina; a prescrição foi significativamente mais elevada
nas crianças (p=0,007).
Nesta série, a recorrência de anafilaxia foi de 26%: 2 episódios em 59 doentes
(18,9%), 3 episódios em 12 (3,8%), 4 episódios em 6 (1,9%) e 5 episódios em 3
(1%). Não se encontraram diferenças de recorrência de anafilaxia com o género
ou a idade. Em 58% (47 doentes) destes casos houve recorrência de anafilaxia
exclusivamente a AINEs: 62% a diferentes inibidores da COX -1 e 38% ao mesmo
AINE (diclofenac em 12, metamizol em 2 e paracetamol em 2). Em 22% (19 doentes)
houve dois ou mais episódios de anafilaxia a antibióticos (14 casos a
aminopenicilinas, 3 a quinolonas, 1 ao cotrimoxazol e 1 a penicilina e a
claritromicina), 12% (10 doentes) a outros fármacos (3 a carboplatina, 2 a
inibidores da bomba de protões, 2 a corticosteróides sistémicos, 1 a lidocaína,
1 a diosmina e 1 a calcitonina) e 8% (7 doentes) a antibióticos beta -
lactâmicos e a AINEs (Figura 1).
Figura 1. Ocorrência de dois ou mais episódios de anafilaxia nos principais
grupos de fármacos
Encontrámos um aumento significativo de recorrência de anafilaxia para os AINEs
(p=0,036), em que a toma de um AINE tem uma probabilidade 13,5% superior de 2
ou mais episódios comparativamente aos outros fármacos.
Os doentes com anafilaxia a AINEs apresentaram uma menor probabilidade de
hospitalização após anafilaxia (p<0,001), com um risco acrescido de associação
de sintomas respiratórios e mucocutâneos de 24,6% e uma probabilidade de
sintomas cardiovasculares que diminui em 16,6%. Pelo contrário, o risco de
sintomas cardiovasculares na anafilaxia a anestésicos gerais aumenta 37,6%
(Quadro 5).
Quadro 5.Análise de regressão variável, para estudo da probabilidade das
variáveis AINEs, anestésicos gerais e antibióticos beta-lactâmicos apresentarem
manifestações mucocutâneas, respiratórias, cardiovasculares e recorrência de
anafilaxia
Se considerarmos as reacções mais graves, aquelas em que existe envolvimento de
três ou mais sistemas, não se encontraram diferenças significativas com atopia,
idade e anafilaxia a AINEs, antibióticos beta-lactâmicos e anestésicos gerais,
nem entre o número de episódios e a gravidade da reacção.
DISCUSSÃO
Neste estudo a uniformização prévia dos critérios de diagnóstico de anafilaxia
a fármacos e a sua realização por médicos com diferenciação em Imunoalergologia
permitiu a aplicação de uma metodologia sobreponível em diferentes serviços /
unidades de Imunoalergologia a nível nacional.
A dificuldade e limitação da análise comparativa com outros estudos
epidemiológicos relaciona-se com diferenças nas populações estudadas e na
metodologia de notificação e de diagnóstico, sendo escassos os estudos
epidemiológicos focalizados apenas no estudo da anafilaxia a fármacos.
À semelhança do observado por outros autores encontrámos um predomínio de
anafilaxia a fármacos reportada em adultos e no género feminino, enquanto nas
crianças predominou o género masculino12.
Nesta série observou-se uma baixa percentagem de anafilaxia a fármacos em
crianças e adolescentes (8%). A menor prevalência de reacções de
hipersensibilidade a fármacos observada em idade pediátrica, comparativamente
ao adulto, é explicada pela menor exposição e por mecanismos de resposta
imunológica distintos do adulto. Rubio e colaboradores encontraram um risco 1,5
vezes mais elevado de reacções de hipersensibilidade a fármacos em adultos, mas
percentagens de anafilaxia, sobreponíveis nos dois grupos etários17.
Os AINEs foram a principal causa de anafilaxia a fármacos, à semelhança do
encontrado em outras séries em doentes não hospitalizados18 -20e ao contrário
do observado por Cianferoni e colaboradores, em que os AINEs ocupam o segundo
lugar, sendo precedidos pelos antibióticos11.
Em vários estudos os antibióticos são a primeira etiologia de anafilaxia por
fármacos; estima-se um risco elevado de anafilaxia à penicilina na população
geral nos Estados Unidos, entre 0,7 e 10%21,22. Nas crianças o número de casos
de anafilaxia a antibióticos foi ligeiramente superior ao dos AINEs, sendo
inferior ao reportado noutras séries23,24.
É consensual que os AINEs inibidores preferenciais da COX -1 são os principais
AINEs implicados na anafilaxia.
Neste estudo destacou-se o AAS, o diclofenac e o ibuprofeno, que constituíram
88% do total de casos. Quiralte e colaboradores, num estudo de 223 doentes,
constataram que os AINEs naproxeno, diclofenac e ibuprofeno apresentaram um
risco de reacção anafiláctica superior aos outros AINEs25.
Os derivados pirazolínicos, particularmente o metamizol, são considerados os
principais AINEs responsáveis por reacções de hipersensibilidade imediata,
estimando-se a ocorrência de anafilaxia entre 18 e 30% dos casos de
hipersensibilidade ao metamizol19. No nosso país o metamizol é um fármaco
actualmente menos utilizado e nesta série foi o responsável pela anafilaxia em
8,7% dos casos a AINEs. Não encontrámos aumento significativo de atopia, nem
reacções mais graves nos doentes que reagiram ao metamizol, comparativamente
aos que reagiram a outros AINEs, ao contrário do observado por Sanches-Borges e
colaboradores, em que 69,2% eram atópicos e 72,7% com reacções mais graves26.
São excepcionais as reacções adversas descritas aos AINEs inibidores selectivos
ou preferenciais da COX-2 e ao paracetamol, sendo considerados fármacos
alternativos nos casos de anafilaxia aos AINEs inibidores preferenciais da COX-
119,25. O aumento de consumo poderá explicar o número de casos de anafilaxia
reportados ao nimesulide, aos inibidores selectivos da COX -2 (parecoxib e
etoricoxib) e ao paracetamol, que constituíram nesta série 6% do total de casos
de anafilaxia a AINEs.
Segundo alguns autores, as reacções anafilácticas atribuídas a AINEs seriam, na
sua maioria, específicas de fármaco ou de grupo25,26, ao contrário do observado
neste estudo, em que a maioria dos doentes (62%) apresentou recorrência de
anafilaxia a AINEs de grupos farmacológicos distintos, não parecendo haver um
mecanismo imunológico específico justificativo. O diclofenac destacou-se pelo
elevado número de casos de recorrência ao mesmo AINE. No entanto, não dispomos
de informação relativa à realização de prova de provocação com o AAS, de modo a
definir os casos de hipersensibilidade selectiva a um único AINE como o
preconizado por Asero27.
À semelhança do descrito, a anafilaxia atribuída aos antibióticos da classe dos
beta -lactâmicos (81%) foi mais elevada do que aos não beta-lactâmicos; estes
últimos considerados em geral causas raras de anafilaxia5.
Encontrou-se maior incidência de anafilaxia a penicilinas e derivados (60%),
particularmente às aminopenicilinas, e a cefalosporinas, em detrimento das
benzilpenicilinas, à semelhança do observado por Blanca e colaboradores28.
Destaca -se a anafilaxia à cefazolina, implicada em 56,5% dos doentes alérgicos
às cefalosporinas. A alteração profunda no padrão de prescrição aos beta-
lactâmicos na Europa poderá explicar o aumento das reacções anafilácticas à
amoxicilina e às cefalosporinas e a diminuição dos casos relacionados com a
penicilina, observada ao longo dos últimos anos, sendo no entanto escassos os
estudos epidemiológicos que o confirmem28.
Salienta-se nesta série o número significativo de casos de anafilaxia atribuída
às quinolonas (11,7%), também observado por Moneret-Vautrin e colaboradores14.
Estudos realizados em diferentes países têm revelado como importante causa de
anafilaxia os relaxantes neuromusculares (RNM) no contexto de anafilaxia intra-
operatória, que ocupa o terceiro lugar nesta série12,29. Num estudo realizado
por Faria e colaboradores, os RNM foram os agentes identificados como indutores
de anafilaxia em 62,5% dos casos e os autores salientam a elevada frequência de
anafilaxia moderada e grave30.
As reacções graves atribuídas aos produtos de contraste iodados (PCI) têm vindo
a diminuir devido ao uso menos frequente das formulações iónicas de alta
osmolaridade.
Num estudo realizado por Brockow e colaboradores na Europa a 220 doentes com
reacção de hipersensibilidade a PCI, 8,5% apresentavam grau II e III de
anafilaxia31. Em estudos realizados na população geral nos Estados Unidos
estima-se uma prevalência de anafilaxia a PCI entre 0,22 e 1%22, próximo do
obtido nesta população (0,96%).
Dos restantes grupos de fármacos salienta-se as reacções anafilácticas
atribuídas aos corticosteróides sistémicos e aos citostáticos, particularmente
às platinas; por serem fármacos fundamentais e por vezes insubstituíveis torna
-se necessário considerar a possibilidade de dessensibilização.
Não foi reportado nenhum caso de anafilaxia a novas terapêuticas, como os
modificadores biológicos e anticorpos monoclonais, de que é exemplo o
omalizumab e o cetuximab, que têm vindo a ser reportados nos últimos anos por
outros autores5. É característico da anafilaxia existir em geral predomínio de
sintomatologia cutânea com uma incidência que ronda os 80% em crianças e 94% em
adultos, mas a ausência de sintomas mucocutâneos observada em 8% dos casos
nesta série não exclui anafilaxia e deve ser salientada a importância da
valorização precoce de outros sintomas extra-cutâneos no diagnóstico
clínico3,5.
Ao compararmos o envolvimento de três ou mais sistemas entre os três principais
grupos de fármacos: AINEs, antibióticos beta-lactâmicos e RNM, os casos de
anafilaxia a AINEs apresentam um risco acrescido de sintomas respiratórios e
mucocutâneos e menor probabilidade de sintomas cardiovasculares. Pelo
contrário, o risco de sintomas cardiovasculares na anafilaxia a anestésicos
gerais é mais elevado, comparativamente a outros fármacos. Ao contrário do
observado por Pumphrey15, não encontrámos uma alta percentagem de colapso
cardiovascular em idosos.
A atopia não constituiu factor de risco significativo para a anafilaxia nestes
três grupos de fármacos, o que está de acordo com o observado por outros
autores 5,18.
Está descrito que os indivíduos com asma têm alto risco de anafilaxia,
particularmente elevado na asma grave, a que se associa um risco acrescido de
fatalidade4,15. Estudos realizados no Reino Unido e nos Estados Unidos
encontraram um risco de 5,3% mais elevado de incidência de anafilaxia em
asmáticos32. Nesta série 19% eram asmáticos e a maioria destes com anafilaxia a
AINEs.
São escassos os estudos que avaliam a incidência e factores de risco para
recorrência de anafilaxia a fármacos. Nesta série a recorrência de anafilaxia
foi de 26%, mais baixa do que a encontrada nos anos 80 e 90 nos Estados
Unidos20. Salientamos a significativa recorrência de anafilaxia a AINEs,
superior em 13,5%, comparativamente aos outros fármacos.
Isto poderá dever -se a não valorização pelo clínico e/ou pelo doente dos
episódios iniciais de anafilaxia a AINEs, em muitos casos sem recurso ao
serviço de urgência e consequente ausência de identificação do agente causal,
com risco acrescido de posterior administração do mesmo fármaco ou outro do
mesmo grupo farmacológico.
Mullins, num estudo australiano, refere como maior factor preditivo de
recorrência de anafilaxia a presença de sintomas graves no episódio inicial18,
facto não observado neste estudo.
A não avaliação neste trabalho da medicação concomitante, patologia que motivou
a administração de medicação e circunstâncias em que ocorreu o quadro não
permitem avaliar outros factores considerados potenciadores de anafilaxia12.
Apesar de a anafilaxia ser uma situação clínica potencialmente fatal, cerca de
um quarto dos doentes com a anafilaxia induzida por fármacos não recorreu ao
serviço de urgência hospitalar e apenas um terço destes foi submetido a
internamento hospitalar.
A adrenalina é o tratamento de primeira linha na reacção anafiláctica, estando
comprovada a associação entre o aumento da mortalidade e o aumento da
anafilaxia bifásica na ausência ou no atraso da sua administração5,6.
Observamos que menos de metade dos doentes receberam tratamento com adrenalina,
próximo do referido por outros autores33, mas inferior ao reportado mais
recentemente por Brown e colaboradores (57%)34 e por Pumphrey (62%)15.
A prescrição do dispositivo para auto-administração de adrenalina foi muito
baixa, mas significativamente maior nas crianças e adolescentes,
particularmente em idade mais precoce.
Isto poderá dever-se ao facto de existir por parte dos clínicos maior
preocupação na prevenção dos quadros de anafilaxia em crianças e adolescentes
do que nos adultos.
É bem conhecida a sub-prescrição de adrenalina pelos clínicos nos casos de
anafilaxia, também uma realidade em Portugal, como o demonstrado em estudo
realizado por Branco Ferreira e colaboradores35.
No caso da anafilaxia a fármacos, e uma vez identificado o risco, poderá, em
casos pontuais, ser discutível a prescrição de adrenalina para o domicílio,
nomeadamente nos casos de anafilaxia a agentes de diagnóstico ou terapêutica de
utilização exclusivamente intra-hospitalar, como é o caso da anafilaxia a
anestésicos gerais, citostáticos ou produtos de contraste. A prescrição de
adrenalina deverá ser prescrita em casos de anafilaxia grave, podendo também
transmitir segurança e minimizar o receio com a administração posterior de
fármacos, frequentemente observado nestes doentes e consequência da sensação de
morte eminente eventualmente sofrida.
CONCLUSÕES
As diferenças no padrão de prescrição, factores genéticos e ambientais ou co -
factores não identificados poderão justificar diferenças na frequência das
reacções a diferentes fármacos em diferentes populações. Parece no entanto
consensual a importância dos AINEs, antibióticos, relaxantes neuromusculares e
citostáticos, como principais fármacos indutores de anafilaxia.
Por a anafilaxia ser o protótipo de uma reacção adversa imprevisível e
potencialmente fatal, a prevenção é fundamental.
A administração precoce de adrenalina no início do quadro clínico é de extrema
importância e a necessidade de referenciação urgente para consulta de
Imunoalergologia para o correcto diagnóstico após o primeiro episódio é
salientada pela grande frequência de recidivas.
É imprescindível o papel do Imunoalergologista na correcta identificação do
fármaco indutor da anafilaxia, no aconselhamento dos fármacos alternativos
seguros e na transmissão dessa informação por escrito ao médico assistente /
equipa de saúde e ao doente.