Nefrite intersticial aguda induzida pela piperacilina-tazobactam?
INTRODUÇÃO
A nefrite intersticial aguda (NIA) representa uma causa frequente de lesão
renal, geralmente associada a deterioração abrupta da função renal.
Histologicamente caracteriza-se por um infi ltrado celular intersticial
(incluindo células TCD4+, macrófagos, eosinófilos e células plasmáticas)
acompanhado de edema intersticial sem lesão capilar ou glomerular associada1.
As doenças auto-imunes, as infecções e os fármacos destacam-se como principais
causas de NIA2. Dada a sua crescente utilização, os fármacos são actualmente os
agentes etiológicos mais frequentes, dos quais são exemplo penicilinas,
cefalosporinas, rifampicina, ciprofloxacina, sulfonamidas, anti-inflamatórios
não esteróides, cimetidina, omeprazol e indinavir3.
A NIA provocada por fármacos é considerada uma reacção de hipersensibilidade
tardia mediada por células T4,5, não dependente de dose2 e que pode tornar-se
clinicamente evidente em média duas semanas após o início do tratamento6. Neste
modelo de reacção presume-se que os fármacos desencadeiem reacções específicas
contra os antigénios endógenos renais pela formação de reacções tipo-hapteno ou
por imitação das proteínas renais nativas4,5.
O diagnóstico baseia-se numa história clínica completa tendo em conta a relação
temporal entre a toma do fármaco suspeito e o início da NIA. Existem
actualmente diversos algoritmos/escalas de avaliação de causalidade, sendo o
algoritmo de Naranjo7, baseado na avaliação clínica, um dos mais utilizados.
A apresentação clínica da NIA caracteriza-se por febre, exantema e eosinofilia
periférica num doente com evidente deterioração da função renal sem outra causa
aparente de insuficiência pré e pós -renal. Contudo, a biopsia renal é o único
método de diagnóstico definitivo2.
Deve-se considerar a possibilidade de biopsia renal nos casos em que não ocorre
melhoria da função renal após a retirada da medicação, em que o doente está
estável para suportar o procedimento e concorda com o mesmo.
As indicações de biopsia renal são a presença de proteinúria >2g/24h ou
síndrome nefrótica, hematoproteinúria persistente, insuficiência renal aguda
que não resolve em 3-4 semanas, insuficiência renal aguda de origem não óbvia
ou com cilindros hemáticos e insuficiência renal crónica com rins de dimensões
conservadas2. Caso a biopsia seja contra -indicada, o doente poderá fazer um
teste terapêutico com corticóides se a suspeita clínica for forte.
As contra-indicações para a realização de biopsia são a presença de diátese
hemorrágica, rim único, incapacidade de o doente cooperar no procedimento
percutâneo, rins de dimensões reduzidas, hipertensão não controlada, recusa do
doente e infecção urinária activa2.
Apesar de estarem bem documentadas reacções de NIA com a utilização de
antibióticos beta -lactâmicos2, raros são os casos associados à administração
de piperacilina-tazobactam8,9,10, uma penicilina semi-sintética de largo
espectro, activa contra muitas bactérias aeróbias Gram-positivas e Gram -
negativas e bactérias anaeróbias e que exerce a sua actividade bactericida pela
inibição da síntese da parede celular.
A relevância deste caso clínico prende-se com o facto de a NIA representar uma
causa importante de insuficiência renal aguda e colocar problemas diagnósticos
fundamentalmente nos doentes polimedicados. Pretendemos igualmente alertar para
a possibilidade de reacções menos frequentes relacionadas com este antibiótico
em particular, cuja utilização é cada vez mais frequente em meio hospitalar.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, 61 anos, caucasiana, não fumadora, com antecedentes
pessoais de obesidade (IMC= 31,6 kg/m2), doença arterial periférica grave,
submetida a bypassfemoral bilateral (em 2006 e 2007), diabetes mellitustipo 2
não insulino-tratada, hipertensão arterial (ambos com cerca de 21 anos de
evolução), insuficiência renal crónica e cardiopatia isquémica. Medicada
diariamente com omeprazol, metformina, glimepirida, vildagliptina, gabapentina,
clopidogrel, pravastatina, amitriptilina e amlodipina. Sem queixas sugestivas
de alergia respiratória, alergia alimentar ou hipersensibilidade a fármacos
conhecida.
Internada no serviço de Cirurgia Vascular por isquemia crítica do membro
inferior esquerdo, tendo sido submetida a arteriografia e tentativa de
angioplastia, à qual sucedeu amputação da perna esquerda, por agravamento
clínico.
Foi medicada desde o segundo dia de internamento com piperacilina -tazobactam
2,25g de 6/6h EV, metamizol 2g de 8/8h EV SOS e enoxaparina, para além da sua
terapêutica habitual (omeprazol, metformina, glimepirida, vildagliptina,
gabapentina, clopidogrel, pravastatina e amlodipina). Após três semanas de
internamento iniciou quadro de exantema morbiliforme muito pruriginoso no
tronco e membros, sem outras queixas associadas, nomeadamente queixas
digestivas, urinárias ou cardiovasculares, a que se associou agravamento franco
da função renal (aumento da creatinina de 2,0 mg/dL para 6,6 mg/dL) com
concomitante acidemia metabólica e posterior eosinofilia periférica (valor
máximo:1.94x109/L). O exame de urina apresentava leucocitúria, proteinúria e
eritrocitúria. A ecografia renal revelou rins em topografia habitual, medindo
cerca de 10,9 cm à direita e cerca de 10 cm à esquerda, com contornos
bosselados, estando a espessura parenquimatosa e a diferenciação parênquimo-
sinusal globalmente preservadas. Árvores excretoras renais não ectasiadas.
O antibiótico foi interrompido, a doente medicada com anti -histamínico e
manteve a restante terapêutica nomeadamente o metamizol. Passada uma semana sem
melhoria das queixas cutâneas e persistindo a eosinofilia periférica, foi
pedida observação por Imunoalergologia. Na mesma altura iniciou febre com picos
superiores a 40ºC, com fraca resposta aos antipiréticos e sem foco de infecção
evidente.
Ao exame objectivo foi possível objectivar lesões descamativas,
maculopapulares, de predomínio no tronco, abdómen e coxas. Apresentou -se
sempre hemodinamicamente estável e com débitos urinários dentro da normalidade.
Analiticamente apresentava creatinina sérica de 5,0 mg/dL, leucocitose
(18,8x10/L) e proteína C reactiva elevada (12,8mg/dL).
A associação entre lesões cutâneas, eosinofilia periférica e degradação da
função renal levou a considerar o diagnóstico de nefrite intersticial alérgica,
pelo que iniciou corticoterapia per oscom prednisolona 20 mg toma única durante
cinco dias, seguida de diminuição progressiva da dose. Obteve-se resposta muito
favorável, com desaparecimento da eosinofilia em três dias, resolução completa
do quadro cutâneo ao fim de seis dias e melhoria progressiva dos valores
laboratoriais com recuperação da função renal ao fim de 10 dias.
Apesar da urocultura e das hemoculturas serem negativas, a elevação dos
parâmetros laboratoriais de inflamação associada a febre motivou
simultaneamente o início de antibioterapia empírica com ceftriaxona, que
cumpriu durante 10 dias sem reacção adversa. Ainda durante o internamento, que
se prolongou por bacteriemia a Staphylococcus aureus e pneumonia nosocomial sem
agente isolado, foi medicada com meropenem e linezolide sem reacção.
A Figura_1 ilustra as alterações apresentadas durante o internamento.
Após a alta, na avaliação subsequente por Imunoalergologia, não foi feita
qualquer investigação a piperacilina-tazobactam, uma vez que neste tipo de
reacções há sempre indicação para evicção do fármaco suspeito. Contudo, foi
realizada prova de provocação oral controlada com placebo com beta -lactâmico
alternativo ' amoxicilina-ácido clavulânico ' que manteve durante uma semana na
dose de 875 mg + 125 mg de 8/8h, sem qualquer tipo de reacção adversa,
nomeadamente agravamento da função renal.
A doente recebeu indicação para manter evicção completa de piperacilina -
tazobactam (cartão identificativo) com base no critério clínico de provável NIA
a piperacilina-tazobactam (Quadro_1), podendo ser prescritos todos os outros
beta-lactâmicos. Desde então não voltou a ter qualquer outro episódio
semelhante.
DISCUSSÃO
A NIA desencadeada por fármacos representa uma causa crescente de insuficiência
renal aguda na prática clínica5. É particularmente difícil determinar a causa
específica de insuficiência renal aguda em doentes com múltiplas patologias de
base, especialmente quando sob diversos tipos de tratamentos. No presente caso
clínico, a introdução de piperacilina-tazobactam veio, provavelmente,
desencadear uma reacção sugestiva de NIA numa doente polimedicada e com
múltipla patologia.
Outro agente nefrotóxico, o contraste utilizado durante a arteriografia,
poderia estar envolvido na NIA, mas devido à relação temporal entre a
administração da piperacilina -tazobactam e o agravamento clínico, bem como a
sua resolução com a sua interrupção, tornam difícil esta hipótese. Outras
causas de eosinofilia periférica e exantema cutâneo foram excluídas,
nomeadamente a síndrome de DRESS (drug rash with eosinophilia and systemic
symptoms)devido a ausência de nódulos palpáveis, envolvimento de outro órgão,
resolução em <15 dias e serologias negativas associadas a um exantema
maculopapular com extensão <50% da área corporal, pouco sugestivo de DRESS. A
biopsia renal, que consolidaria o diagnóstico, não foi realizada, uma vez que a
doente apresentou melhoria da função renal após a retirada da medicação e não
podíamos excluir a hipótese de infecção urinária activa. Contudo, a clínica
provável segundo o algoritmo de Naranjo7, associada a uma gradual melhoria da
função renal após interrupção do fármaco e instituição de corticoterapia,
reforçam o diagnóstico de NIA.
Poucos casos de NIA à piperacilina-tazobactam estão documentados até à
data8,9,10e apenas no primeiro caso descrito foi realizada biopsia renal8. Nos
restantes casos o diagnóstico foi estabelecido tendo em conta a clínica
apresentada, não seguindo nenhum algoritmo de decisão.
Num dos casos a NIA foi interpretada como resultante de reactividade cruzada
entre a piperacilina e o meropenem10.
Contudo, no presente caso clínico, a doente não sofreu reagravamento da função
renal após início quer do meropenem quer do linezolide.
Sempre que surja suspeita de NIA secundária a fármacos, as medidas fundamentais
passam pela identificação do fármaco suspeito e a sua suspensão. Os doentes que
interrompem o tratamento antes das duas semanas do início da NIA (avaliado pelo
aumento de creatinina sérica) são mais propensos a recuperar os valores basais
da função renal do que os que permanecem com a terapêutica com o fármaco
suspeito durante três ou mais semanas2.
No presente caso este facto torna -se particularmente relevante, uma vez que a
doente já apresentava insuficiência renal crónica e um agravamento da função
renal poderia condicionar o início de diálise.
A utilização de corticoterapia mantém-se controversa, com estudos a
apresentarem resultados contraditórios1. No presente caso, apenas com
introdução de prednisolona se alcançou melhoria clínica e analítica
significativa.
Neste tipo de reacção de hipersensibilidade, não são de esperar fenómenos de
reactividade cruzada, pelo que os outros fármacos beta-lactâmicos são
alternativas terapêuticas viáveis. Contudo, decidiu-se realizar prova de
provocação oral controlada com placebo com amoxicilina-ácido clavulânico, de
modo a tranquilizar a doente e cuidadores.
CONCLUSÃO
O diagnóstico de nefrite intersticial alérgica é muitas vezes difícil, sendo
que a lesão renal pode surgir semanas após a introdução de um fármaco.
Tendo em conta o envelhecimento populacional, o número crescente de doentes
polimedicados e com múltipla patologia, torna -se cada vez mais importante a
alta suspeição diagnóstica. No presente caso clínico esta hipótese foi colocada
pela existência de exantema cutâneo associado a um aumento de eosinofilia
periférica e agravamento da função renal três semanas após o inicio de
antibioterapia com piperacilina-tazobactam.
A interrupção imediata do fármaco e a introdução de corticoterapia numa fase
inicial do processo patológico possibilitaram a evolução clínica favorável
apresentada pela doente.