Caracterização das admissões por asma ao serviço de urgência de um hospital
central
INTRODUÇÃO
A asma é uma patologia crónica, com gravidade variável e um curso fl utuante. A
falta de controlo da doença resulta em exacerbações frequentes e imprevisíveis,
que podem constituir motivo de recurso ao serviço de urgência (SU) e
necessidade de internamento, o que aumenta a morbilidade relacionada com a
asma1-3. Diversos factores, como infecções, exposição a alergénios, exercício e
factores ocupacionais, entre outros, podem desencadear uma crise.
Estas exacerbações constituem uma emergência médica comum que, apesar de
inúmeras revisões, publicações e guidelines, permanece, em muitos casos, mal
orientada4.
Vários estudos mostraram variações significativas na abordagem e orientação das
agudizações de asma, quer na avaliação do doente asmático, quer no tratamento e
seguimento após a alta3-7.
O SU é um importante ponto de contacto entre os doentes asmáticos e os
profissionais de saúde, constituindo uma oportunidade para educar o doente no
sentido de um melhor controlo da sua patologia8,9.
Pouco se sabe sobre a realidade das urgências em Portugal, dos recursos por
asma e sua orientação.
O presente estudo teve como objectivo caracterizar os recursos por agudização
de asma que ocorreram durante um ano ao SU de um hospital central (Hospital de
São João ' HSJ).
MATERIAL E MÉTODOS
Foi efectuada uma análise retrospectiva dos recursos ao SU do Hospital de São
João, no Porto, durante o ano de 2008. Foram incluídos no estudo todos os
doentes adultos em que a asma (e todos os diagnósticos ICD9 relacionados com
este) constituíram o diagnóstico principal de alta.
Foram analisadas as características demográficas dos doentes; o mês em que
ocorreu o episódio; a classificação pelo sistema de triagem de Manchester e a
queixa principal, à entrada no SU; a medicação prévia, o tratamento no SU e a
terapêutica prescrita na altura da alta. O seguimento prévio por especialidade,
os pedidos de colaboração à urgência e a orientação pós-alta foram revistos.
Uma análise mais pormenorizada foi efectuada em relação às exacerbações graves,
que exigiram tratamento emergente, e às doentes grávidas.
RESULTADOS
De 178 335 recursos ao SU de adultos do Hospital de São João durante o ano de
2008, 306 episódios (1,7 em cada 1000 doentes) tiveram como diagnóstico
principal de alta asma. Estes episódios corresponderam a 260 doentes, dos
quais 156 (60%) do género feminino, com uma média de idades de 41,1 ± 20,1 anos
(17 -95 anos) (Quadro_1). Trinta e seis doentes (14%) recorreram em mais do que
um episódio ao SU durante esse ano.
Ao longo do ano de 2008, os meses que apresentaram maior afluência de asmáticos
ao SU foram Abril e Junho, com 34 e 32 episódios, respectivamente, seguidos de
Setembro e Dezembro, com 31 admissões (Figura_1).
De acordo com a triagem de Manchester (classificação da prioridade à entrada no
SU), 2,3% dos doentes foram classificados como vermelhos (emergentes), 43,5%
laranjas (muito urgentes), 53,3% amarelos (urgentes) e 0,9% verdes ou brancos
(pouco ou não urgentes). Pelo fluxograma, em 58,2% dos casos os doentes
apresentavam como queixa inicial dispneia, 31% asma, 5,2% dor torácica,
3,9% indisposição e os restantes queixas diversas.
A maioria dos doentes era seguida apenas pelo Médico de Família (76,5%),
enquanto 23,5% eram orientados por especialistas (Imunoalergologista ou
Pneumologista).
Quanto à medicação prévia (medicação habitual do doente), 21,2% tinham
prescrita uma associação fixa de agonista β2 de longa acção e corticóide
inalado (β2LA/CCI); 16,7% estavam medicados apenas com um agonista β2 de curta
acção para utilizar em SOS; 12,4% não fazia qualquer medicação específica para
a asma; 9,2% tinha associados anti -leucotrienos a outros fármacos; 7% dos
doentes fazia aminofilina e uma associação β2LA/CCI; 6% dos asmáticos fazia
nebulizações diárias com agonista β2 e anti -colinérgico (brometo de
ipratrópio); 5,6% tinha prescrito um corticóide inalado; 4% fazia corticoide
sistémico diariamente; 3% estava medicados com aminofilina isoladamente e 3%
com β2 de longa acção isolado. Dois doentes, para além da medicação prescrita
para o domicílio, estavam sob tratamento com anti-IgE (omalizumab) (Quadro_2).
Durante a permanência no SU, 14 doentes não fizeram qualquer medicação,
enquanto 27 foram tratados apenas com nebulizações com broncodilatadores
(agonistas β2 ± ± anti -colinérgico). Em 256 casos, o tratamento incluiu
nebulizações e a toma de corticóide sistémico; destes doentes 18 necessitaram
também de aminofilina endovenosa (ev) e 15 de sulfato de magnésio ev. Foi ainda
necessário usar adrenalina em 8 casos e ventilação não invasiva em 3.
Dos 306 episódios, apenas em 28 (9,2%) foi pedida a colaboração de uma
especialidade ao serviço de urgência.
Onze pedidos foram dirigidos a Imunoalergologia, 8 a Pneumologia, 5 a Medicina
Interna e 4 a Otorrinolaringologia
Nos 11 doentes observados por Imunoalergologia, a colaboração foi dada em
termos de medicação no SU e, na altura da alta, a terapêutica foi ajustada e
todos os doentes ficaram orientados para consulta externa da especialidade. Dos
restantes, apenas 3 ficaram com seguimento por Pneumologia.
Na alta, a medicação prévia do doente foi mantida em 61 casos e o tratamento
foi reforçado em 136. Quarenta e nove por cento destes últimos doentes foi
medicado com um curso de corticóide sistémico para o domicilio. A medicação
habitual foi reduzida num doente. Nos registos analisados, havia referência a
presença de infecção respiratória associada à exacerbação de asma em 96 casos
(31%). Em 86% destes doentes foi prescrita antibioterapia para o domicílio.
Na altura da alta, 213 doentes (69,6%) foram orientados para o Médico de
Família, enquanto 33 (10,8%) foram encaminhados para uma consulta de
especialidade. Entre estes últimos, 17 casos foram orientados para
Imunoalergologia, 14 para Pneumologia e 2 para Medicina Interna.
Cinquenta e cinco doentes (18%) tiveram necessidade de internamento. A maioria
(25 casos) foi internada no serviço de Medicina Interna (Quadro_3).
De salientar doze casos particulares que foram observados, durante o ano de
2008, no SU. Sete doentes, entre os 28 e os 70 anos, apresentaram uma
agudização muito grave de asma, pelo que tiveram de ser encaminhados para a
sala de emergência, 4 dos quais posteriormente internados em unidade de
cuidados intensivos. A medicação habitual dos doentes em que há registos era
escassa e três doentes eram seguidos anteriormente numa consulta de
especialidade (Quadro_4). Cinco outras doentes encontravam -se grávidas na
altura em que recorreram ao SU por agudização da sua doença ' uma no primeiro
trimestre de gestação, duas no segundo e 2 no terceiro trimestre.
Duas grávidas estavam medicadas com inalador β2 de curta acção para utilizar em
crise e outra tinha prescrito corticóide inalado diário, desconhecendo se
cumpriam o plano terapêutico. Todas necessitaram de terapêutica inalada no SU e
a 4 foi prescrito corticóide sistémico. Em pelo menos dois casos a medicação
foi umentada na altura da alta, não havendo registo sobre 2 doentes. Duas
grávidas asmáticas eram seguidas em consulta de Imunoalergologia, enquanto 3
doentes não tinham seguimento por especialista e assim se mantiveram na altura
da alta, pois não foram orientadas para nenhuma especialidade.
DISCUSSÃO
Apesar de a asma ter, geralmente, um curso benigno, podem ocorrer, com alguma
frequência, agudizações que motivam a procura de atendimento não programado por
parte dos doentes4,10. Foi o que ocorreu a pelo menos 260 doentes que, pela
exacerbação da sua asma, recorreram ao SU do Hospital São João durante o
período de um ano.
Havendo um inadequado controlo da doença, as crises de asma podem condicionar
recidivas e vários recursos ao SU, o que se verificou num número significativo
de doentes (14%).
O agravamento sazonal da asma é também um fenómeno reconhecido9. A maior
afluência ao SU foi constatada nos meses de Abril e Junho. Nesta época algumas
exacerbações poderiam ser explicadas pela exposição a alergénios ambientais,
como no caso de doentes sensibilizados a pólenes. Os picos de Setembro e
Dezembro poderão dever-se à exposição aos ácaros do pó, assim como ao aumento
do número de infecções, também desencadeantes comuns de crises de asma1,4.
As agudizações, para além de frequentes, podem ter gravidade muito variável.
Tendo em conta a prioridade atribuída à entrada na urgência, a maioria dos
doentes apresentava-se com uma crise moderada a grave, com necessidade de
atendimento urgente ou muito urgente.
A maioria apresentava dispneia como queixa principal, o que está de acordo
com sintomatologia presente numa agudização.
Num elevado número de doentes a terapêutica prévia não era adequada,
nomeadamente naqueles que estavam medicados com aminofilina isoladamente, um
fármaco actualmente considerado de terceira linha no tratamento da asma, bem
como nos doentes cujo tratamento diário prescrito era apenas um β2 de longa
acção, fármaco que deve ser sempre utilizado em associação com um corticóide
inalado1.
Enquanto alguns doentes, tendo em conta a análise da sua medicação habitual,
pareciam ter uma asma ligeira (os que não faziam qualquer medicação ou que
tinham apenas β2 de curta acção SOS), outros teriam uma asma moderada a grave,
com necessidade de múltiplos fármacos, corticóides sistémicos ou mesmo
terapêutica anti-IgE.
De realçar que apenas cerca de um quarto destes doentes era seguido previamente
em consulta de especialidade, o que parece inadequado dada a gravidade da
doença que estes casos apresentavam. Um acompanhamento por um especialista da
área poderia trazer benefício, através de uma orientação mais correcta da
situação clínica, quer a nível das terapêuticas instituídas, quer de medidas de
reforço às mesmas, o que poderia proporcionar um melhor controlo da doença.
O tratamento das exacerbações de asma na urgência parece ter respeitado, em
termos gerais, as orientações (guidelines) nalguns aspectos importantes. Sendo
os agonistas β2 o tratamento de primeira linha para uma crise de asma tratada
no SU1,4,5,8,11, podendo a estes adicionar-se anti-colinérgicos, a sua ampla
utilização parece adequada à situação clínica. No entanto, apesar da evidência
de eficácia e benefício dos inaladores utilizados com câmara expansora8, estes
não estão disponíveis a nível de SU, sendo o tratamento inalado feito por
nebulização.
Num número significativo de casos (256 em 306), foi prescrito corticóide
sistémico ainda durante a permanência no SU, fármaco que deve ser administrado
durante a primeira hora de tratamento nos doentes com crises moderadas a
graves4. Terapêuticas mais intensas, não recomendadas por rotina, como
aminofilina, sulfato de magnésio ou adrenalina, foram adicionadas a um
tratamento de base (broncodilatadores e corticóides sistémicos), aos quais os
doentes pareciam não estar a responder, o que pode constituir uma opção válida
nestas situações4,10.
A gravidade da limitação do fluxo aéreo de uma exacerbação deve ser
determinada, antes e depois do tratamento e na altura da alta, através, se
possível, de uma espirometria (avaliação do FEV1) ou da simples medição do
débito expiratório máximo instantâneo (DEMI)8. Nos registos do SU não há
referência a qualquer avaliação da função pulmonar nestes doentes, o que pode
ser explicado pela falta de meios técnicos (inexistência de espirómetro ou
peak-flow meter no SU).
Num número muito escasso de casos (9,8%) foi pedida a colaboração de uma
especialidade (Imunoalergologia/Pneumologia) ao SU. Um contributo importante em
termos de diagnóstico, tratamento e orientação do doente pode ser dado por
profissionais com um maior conhecimento e experiência nestas situações.
Na altura da alta de uma agudização por asma, todos os doentes devem ser
considerados candidatos a corticoterapia oral durante um curto período (mínimo
de 3 a 7 dias), o que diminui a probabilidade de recidiva. O tratamento de
controlo (que deverá incluir o uso de corticoides inalados) deve ser
reiniciado, continuado ou aumentado e a técnica inalatória deve ser
revista1,4,8,11. De 136 doentes em que a medicação prévia foi reforçada na
alta, aproximadamente metade recebeu corticóide sistémico, o que parece ainda
um valor insuficiente para conferir uma maior protecção aos doentes e diminuir
as recidivas. A medicação foi reduzida num caso, medida inadequada para uma
observação única e transversal do doente, em contexto de urgência e sem
seguimento posterior do mesmo.
Os factores desencadeantes da crise devem ser identificados e, se possível,
evitados ou minimizados1,4. Os mais comuns são as infecções e os alergénios
ambientais.
Em cerca de um terço dos casos foi diagnosticada infecção respiratória
concomitante, que motivou a prescrição de antibioterapia num número
significativo de doentes.
Um plano de acção escrito, isto é, um sumário de orientações envolvendo a
prescrição e propósito de cada medicação, deve ser fornecido ao doente e
explicado como actuar precocemente em exacerbações futuras1,4,5,11.
Se a abordagem for baseada em guidelines<,um melhor controlo e uma diminuição
de recidivas podem ser alcançados1,4.
A maioria das exacerbações tratadas na urgência resolve em menos de 2 horas.
Apenas 6 a 13% dos doentes requer hospitalização e ainda menos necessitam de
admissão numa unidade de cuidados intensivos4. No ano de 2008 constatou -se
haver um maior número de doentes (18%) com necessidade de internamento por
asma.
A reavaliação de um doente que tem alta é um elemento crucial para se atingir e
manter o controlo da asma.
A referenciação de um asmático para um especialista é de suma
importância4,8,9,11. Um estudo prospectivo demonstrou que o acesso facilitado a
especialistas (imunoalergologistas) de doentes asmáticos de risco, após a alta
da urgência, reduz as recidivas e melhora a qualidade do tratamento12. No SU
apenas pouco mais de 10% dos doentes foram encaminhados para uma consulta de
especialidade (nomeadamente casos graves com necessidade de internamento na
unidade de cuidados intensivos), o que fica muito aquém do desejável.
Dos casos particulares observados, naqueles que necessitaram de tratamento na
sala de emergência, são de realçar a medicação prévia escassa ' ou se tratava
de asmas ligeiras ou défice de prescrição ou de adesão do doente ' e a falta de
orientação por especialidade. Pelos escassos registos do SU torna -se difícil
perceber se algum factor poderia explicar uma crise de tal gravidade e como
seria a adesão dos doentes ao tratamento.
Uma crise de asma na grávida, pelo risco que apresenta para o feto, maior do
que os efeitos adversos da medicação, deve ser tratada como nas outras doentes.
Por receio das doentes, mas também de médicos não especialistas na área, a
medicação é frequentemente diminuída ou mesmo suspensa nesta fase, aumentando o
risco de agudizações. Nestes casos, uma terapêutica e seguimento mais apertado
são ainda mais importantes, pelo que a orientação para uma especialidade está
particularmente indicada4.
Como limitações a este estudo poder-se-ão questionar os diagnósticos que terão
escapado à análise efectuada, para os quais também poderá ter contribuído uma
codificação nem sempre correcta na alta e por situações como a doença pulmonar
obstrutiva crónica poder ter sido referenciada como asma. Por falta de registo
informático no SU pediátrico, o estudo teve de se limitar à análise dos doentes
adultos. Inúmeros casos de doentes asmáticos, já seguidos em consulta de
Imunoalergologia, não foram igualmente analisados, pois o recurso por
agudização da doença terá sido efectuado directamente à consulta de atendimento
não programado do Serviço de Imunoalergologia do Hospital de São João.
CONCLUSÕES
Uma correcta abordagem do doente com exacerbação de asma no SU pode contribuir
para um controlo mais adequado da doença. O uso de guidelines, medidas
agressivas no SU e uma abordagem optimizada na altura da alta, pode diminuir o
número de internamentos desnecessários e o risco de recidivas.
Recomenda-se a existência de um peak< -flow meter(debitómetro) no SU que
permita a avaliação inicial do DEMI a todos os doentes asmáticos em crise, útil
na avaliação da gravidade da crise, da resposta à terapêutica e na decisão de
dar alta ao doente; assim como de câmaras expansoras, para administração da
terapêutica inalada, com vantagens práticas e maior eficácia em relação aos
nebulizadores.
Seria importante aumentar a prescrição de corticoterapia sistémica, quer
durante a permanência na urgência, quer na altura da alta; reforçar o papel da
educação do doente e dos planos de acção; e ter especial atenção aos casos mais
graves e às grávidas asmáticas.
A visita ao SU constitui assim uma oportunidade para melhor orientar estes
doentes e aumentar a referenciação às especialidades.