A anafilaxia em Portugal: Primeiros registos do Catálogo Português de Alergias
e outras Reacções Adversas
INTRODUÇÃO
A anafilaxia é uma reacção de hipersensibilidade aguda, sistémica e grave, com
início rápido e potencialmente fatal1,2. É usualmente sub-diagnosticada devido
aos múltiplos factores de risco e doenças concomitantes associadas, conduzindo
a um sub‑reconhecimento por parte dos doentes e, igualmente, dos seus
prestadores de cuidados de saúde3,4.
Os critérios para definição de anafilaxia foram inicialmente publicados pela
American Academy of Allergy, Asthma and Immunology2, sendo posteriormente
recomendados pela World Allergy Organization4,permitindo globalizar a sua
abordagem e tratamento, assim como a comparação de estudos que estimam a
incidência e prevalência desta reacção em diferentes países5-9.
A prevalência de anafilaxia durante a vida será de 0,05 a 2%8, sendo estimado
que, no Reino Unido, uma em cada 1333 pessoas sofreram um episódio, durante a
sua vida10.
A incidência de anafilaxia será de 4 a 50 por 100 000 indivíduos/ano na
população em geral3,11-13, com uma mortalidade de 1 a 3 casos por milhão de
habitantes/ano14.
Em Portugal, foi encontrada uma prevalência de anafilaxia de 1,34% em
ambulatório de Imunoalergologia15, em que as causas mais frequentes na
população estudada foram os alimentos (59%), os fármacos (17%) e o látex (13%).
Na literatura, os alergénios mais frequentemente descritos como causa das
reacções de anafilaxia são: os alimentos, os fármacos e os venenos de
insectos2,7,8,11,15-17, sendo que o primeiro grupo tem sido demonstrado como a
causa mais frequente dos episódios na infância e na adolescência15,18-21,
estando os restantes grupos mais associados à idade adulta7,22.
Apesar das reacções de anafilaxia ocorrerem em todos os grupos etários, tem
sido observado que a distribuição do género difere consoante idade pediátrica,
mais frequente no género masculino19-21, em comparação com idade adulta, em que
é mais frequente no género feminino7,22,23.
A expressão to avoid is to identify utilizada pelos autores Makinen-Kiljunen
e Haahtela23 evidencia a importância da identificação imediata e do
conhecimento prévio de episódios alérgicos na evicção do potencial alergénio.
Assim como o acesso facilitado e partilhado é necessário para o conhecimento
epidemiológico da anafilaxia, que muitas vezes é erradamente percepcionada como
sendo uma doença rara1.
Visto que a potencial falha no registo e na partilha da informação sobre
alergias e reacções adversas comporta um risco grave para a segurança dos
utentes dos serviços de saúde, cada vez mais surgem estudos sobre análise dos
registos de reacções de anafilaxia. No entanto, a maioria é baseada em
entrevistas telefónicas ou questionários sobre um alergénio específico e o seu
registo é feito de forma voluntária7,16,23,24.
Recentemente, foi proposto um registo pan-europeu sobre as reacções alérgicas
graves para permitir aumentar o conhecimento sobre a anafilaxia25. A Sociedade
Portuguesa de Alergologia e Imunologia Clínica (SPAIC) tem vindo a promover
junto dos seus sócios a notificação voluntária, anónima, dos casos de
anafilaxia observados (www.spaic.pt), o qual já permitiu a caracterização de
cerca de setecentos doentes com clínica grave de anafilaxia, em que as causas
mais frequentes identificadas foram os fármacos, os alimentos, os venenos de
insectos e o látex (dados não publicados).
No âmbito das actividades da Sociedade Latino‑Americana de Asma, Alergia e
Imunologia, Portugal está ainda integrado no inquérito OLASA (Online Latin
American Survey of Anaphylaxis) que recolhe informações sobre as manifestações
clínicas, desencadeantes e tratamentos destas reacções em doentes seguidos por
Alergologistas de 15 países latino-americanos e Portugal7.
No intuito de ultrapassar a ausência ou insuficiente informação clínica de cada
doente em Portugal, foi desenvolvida o Resumo Clínico Único do Utente (RCU2),
baseado no projecto epSOS (European Patient Smart Open Service) (www.epsos.eu)
e acessível no Portal do Utente, inserido na Plataforma de Dados da Saúde (PDS-
PU).
O RCU2 permite a partilha dos dados clínicos essenciais à prestação de cuidados
de saúde, nomeadamente alergias, medicação, diagnósticos, cirurgias e
vacinações, sempre que exista a necessidade de um atendimento urgente, ou
programado, numa entidade de saúde nacional (disponibilizada no Portal do
Profissional ' PDS-PP) ou estrangeira (Portal Internacional ' PDS-epSOS).
As informações podem ser adicionadas pelo profissional de saúde e pelo próprio
utente, requerendo validação clínica posterior.
Integrado na Plataforma de Dados da Saúde, a Comissão para a Informatização
Clínica de Portugal propôs e implementou, em 2012, o Catálogo Português de
Alergias e outras Reacções Adversas (CPARA), elaborado em conjunto pelos
Serviços Partilhados do Ministério da Saúde e pela SPAIC, que permite aos
profissionais de saúde registarem qualquer episódio de alergia ou outra reacção
adversa observada ou prévia. A publicação das Normas n.º 002/2012, n.º 004/2012
e n.º 014/2012 da Direccao-Geral de Saúde (DGS)26-28, tornou obrigatório o
registo dos quadros de anafilaxia observados e prévios, independentemente do
grupo etário do doente ou da identificação do agente causal, com uma estrutura
de registo comum para todas as aplicações informáticas no sector da saúde, quer
do sector público, quer do sector privado.
Visto que este catálogo está assente no RCU2, a sua finalidade é recolher e
permitir a partilha de informações sobre as reacções alérgicas / adversas em
Portugal. Como referido, esta informação está já acessível em território
nacional e, futuramente, a nível internacional.
Com base nestes pressupostos, este estudo teve como objectivo caracterizar
clínica e demograficamente todos os casos de reacções de anafilaxia inseridos
no CPARA durante os primeiros 10 meses da sua implementação.
MÉTODOS
Participantes
A população-alvo foi a população portuguesa, em geral, que refere ou referiu
alergias ou outras reacções adversas, tendo sido documentadas no CPARA numa
consulta, internamento, emergência ou noutros episódios de prestação de
cuidados de saúde. Foram analisados todos os registos inseridos por
profissionais de saúde, desde a sua implementação ( Julho 2012) até Maio 2013.
Foram incluídos no estudo somente os registos notificados como Anafilaxia, na
variável Tipo de reacção.
CPARA
Para a recolha de dados foi utilizado o CPARA, publicado e implementado em
Portugal de acordo com a Norma 002/2012 de 04/07/2012 da DGS28.
Os registos têm tipologia definida e referem episódios de alergias ou outras
reacções adversas documentados, por profissionais de saúde, numa consulta,
internamento, emergência ou noutros episódios de cuidados de saúde.
Cada registo contém a informação dos elementos identificativos da alergia /
intolerância, de preenchimento obrigatório:
' Origem da informação (provém do médico, do imunoalergologista, de outros
profissionais de saúde ou do próprio utente);
' Data da reacção;
' Categoria da reacção adversa (identifica se a reacção está relacionada com
fármacos, alimentos ou outra substância / agente);
' Alergénio (identifica o alergénio / agente contra o qual a pessoa desenvolveu
uma reacção adversa);
' Tipo de reacção;
' Gravidade;
' Estado (quando existe confirmação de uma determinada reacção alérgica,
indicar se se confirma o estado do registo como activo/inactivo).
Os grupos de alergénios são identificados de acordo com o tipo de reacção
adversa, i.e., quando são alergénios medicamentosos, é utilizada a codificação
Anatomical Therapeutic Chemical Code(www.whocc.no); quando são alergénios
alimentares e/ou outras substâncias / agentes é utilizada a codificação
descrita no CPARA28.
O ratiode registo por 100 000 habitantes em cada região foi calculado a partir
da população residente em cada região de Portugal continental, em 2012,
dividida segundo a Nomenclatura de Unidades Territoriais para fins Estatísticos
II (NUTSII) 29.
ANÁLISE ESTATÍSTICA
Foram analisados separadamente os grupos de indivíduos em idade pediátrica (<
18 anos) e adulta (≥ 18 anos). Foi garantida a confidencialidade dos dados pela
atribuição de um número aleatório a cada utente. As variáveis foram analisadas
utilizando métodos de estatística descritiva: frequência absoluta e relativa
para as variáveis qualitativas e média, desvio-padrao (DP) para as variáveis
quantitativas. Para comparação dos grupos etários foi utilizado o teste t-
studentpara amostras independentes, na variável idade e o teste de qui-quadrado
ou teste exacto de Fisher, nas variáveis categóricas. A análise estatística foi
realizada utilizando IBM SPSS Statistics v. 20 (Chicago, Estados Unidos da
América) sendo considerado estatisticamente significativo um valor p <0,05.
RESULTADOS
Caracterização geral dos registos do CPARA
Após 10 meses de funcionamento, no CPARA foram registados 20 389 casos de
alergias ou outras reacções adversas, correspondendo a 16 253 utentes do
Sistema
Nacional de Saúde português. Os registos semanais aumentaram 3,5 vezes desde a
implementação do CPARA até Maio 2013 (188 registos/semana aproximadamente),
tendo sido feitos, maioritariamente, nos cuidados primários (74%). O ratiomédio
de registos por 100 000 habitantes foi de 163 em cada região continental
NUTSII. A origem da informação proveio principalmente da história clínica
transmitida ao médico pelo utente (57%), seguida do médico (28%),
imunoalergologista especificamente (11%) e por outros profissionais de saúde
(3%).
Caracterização dos registos de anafilaxia
Durante o período referido, foram registados 1209 casos de reacções de
anafilaxia, correspondendo a 6% da totalidade das reacções adversas notificadas
no CPARA. Aqueles casos são relativos a 1045 utentes residentes em todo o
território nacional. De acordo com a região NUTSII, a distribuição das reacções
e o respectivo ratiomédio de registos de anafilaxia por 100 000 habitantes em
cada região continental está descrito no Quadro_1 . Observou-se uma semelhança
nos ratiosde registos de anafilaxia em todas as regiões, com um ratiomédio de
registos de 11,2/100 000 habitantes em cada região continental NUTS II.
Nestes registos, também o principal notificador foi o médico, com a informação
clínica do utente (54%), seguido pelo médico, imunoalergologista e outros
profissionais de saúde (29%, 16% e 2%, respectivamente).
Os utentes apresentavam uma idade média (±DP) de 51,8 (±20,2) anos, com idade
mínima de 2 meses e idade máxima de 95 anos, em que 77 (7%) tinham idade
inferior a 18 anos. A distribuição por grupos etários, agrupados em 10 anos, e
por género está descrita na Figura_1. Em geral, observou-se um predomínio do
género feminino (71%), com uma relação feminino/masculino de 2,4/1, acentuada
nos casos em idade adulta (2,6/1). Nos casos de idade inferior a 18 anos, pelo
contrário, observou-se um discreto predomínio do género masculino (1,1/1), com
esta relação acentuada no grupo etário 0 a 10 anos, em que existe uma relação
masculino/feminino de 1,6/1.
A frequência relativa das várias etiologias associadas às causas de anafilaxia,
de acordo com o grupo etário, está representada no Quadro_2.
Globalmente, observou-se que a principal causa de anafilaxia foi a desencadeada
por fármacos (n = 1008; 83%), sendo o grupo dos antibióticos beta‑lactamicos o
predominante (46%), seguido dos anti‑inflamatorios não esteróides (AINEs) (22%)
(Quadro_2). A segunda causa foi a desencadeada por alimentos (n = 87; 7%), com
destaque para o marisco (23%), seguido dos frutos secos (17%) e leite e
lacticínios (13%). Os venenos de insectos foram a terceira causa de reacções
de anafilaxia (n = 40; 3%) e, por último, com frequência inferior a 1%, os
grupos dos alergénios de contacto e dos aeroalergénios. Em apenas cerca de
5% das reacções o alergénio que desencadeou o episódio não foi identificado.
Comparando os grupos etários abaixo e acima dos 18 anos, observamos que há
diferenças estatisticamente significativas entre as reacções de anafilaxia
causadas por fármacos (p <0,001) e por alimentos (p <0,001).
No grupo de idade pediátrica (< 18 anos), a idade média (±DP) foi de 10,3
(±5,72) anos, com predomínio do género masculino, estatisticamente não
significativo (57%; p=0,239) (Quadro_3). A taxa de anafilaxia mais elevada foi
a desencadeada por alimentos (43%), com predomínio significativo do género
masculino (71%; p=0,019). O grupo leite e lacticínios foi o principal indutor
(24%), seguido de frutos secos (21%). A segunda causa foi devida ao alergénio
fármacos (41%), sem diferenças significativas entre os sexos e sendo os
antibióticos beta‑lactamicos os predominantes (48%).
No grupo dos adultos (≥ 18 anos), a idade média (±DP) foi de 54,8 (±17,0) anos,
com predomínio estatisticamente não significativo do género feminino (p=0,461).
A causa mais frequente foi a anafilaxia induzida por fármacos (87%),
principalmente, e de forma significativa, no género feminino (74%; p=0,002) e
devida aos antibióticos beta‑lactâmicos (46%). A segunda causa de anafilaxia
neste grupo foi provocada por alimentos (4%), sem diferenças entre os sexos
(p=0,672), tendo como principal agente causal o grupo do marisco (31%).
Relativamente à classificação das reacções anafilácticas, a maioria foi
considerada Grave/Moderada (83%), não havendo diferenças estatisticamente
significativas entre o grau de gravidade da reacção e cada grupo de alergénio.
Cerca de 72% das reacções tinham o estado do registo nao‑confirmado e da
totalidade das reacções confirmadas, 26% estavam activas e 2% inactivas.
A maioria das reacções de anafilaxia foi causada por 1 alergénio (89%);
enquanto 9% entre 2 a 4 alergénios e os restantes 2% referindo mais de 5
alergénios, com o máximo de 9, sendo neste caso predominante o grupo dos
fármacos.
DISCUSSÃO
Este estudo descreve as reacções de anafilaxia registadas nos primeiros 10
meses de disponibilidade do Catálogo Português de Alergias e outras Reacções
Adversas em todo o território português. Este está assente numa norma da DGS
que obriga a notificação destas reacções a nível dos cuidados de saúde. Do
nosso conhecimento, é a primeira análise de registos obrigatórios de episódios
de anafilaxia em unidades de cuidados de saúde (primários e secundários,
públicos e privados) de um serviço nacional de saúde.
Estes resultados corroboram, de uma maneira geral, os estudos epidemiológicos
publicados nacional e internacionalmente relativos à distribuição da amostra e
aos 3 grupos de alergénios mais associados às reacções de anafilaxia (fármacos,
alimentos e venenos de insectos).
Cerca de 83% da amostra do estudo tinha idade igual ou superior a 18 anos, o
que explica a predominância dos fármacos como causa da anafilaxia e a maioria
de reacções ocorrer no género feminino7,22,23.
Tal como observado em diversos estudos5,7,8,11,14,21,22, os alergénios mais
frequentes foram diferentes consoante o grupo etário e, dentro de cada grupo,
também se eram do género feminino ou masculino.
No grupo das crianças (< 18 anos), o género masculino prevaleceu, tal como os
alergénios alimentares, em particular o leite e lacticínios e os frutos
secos como causas principais da anafilaxia, corroborando os resultados de
estudos portugueses15,19,30 e de outros países13,14,17,18,20,31.
Os dados da notificação de anafilaxia da SPAIC identificam também o leite de
vaca como a principal causa de anafilaxia alimentar no grupo pediátrico (dados
não publicados).
A segunda causa mais frequente da anafilaxia nas crianças foram os fármacos,
particularmente devido aos antibióticos beta‑lactamicos, em concordância com os
dados da SPAIC, relativos à anafilaxia induzida por fármacos, publicados
recentemente9,32.
Nos adultos, os principais alergénios medicamentosos foram os antibióticos
beta‑lactamicos e os AINEs, semelhantes aos dados encontrados pela
farmacovigilância portuguesa, que em 10 anos de notificação dos casos de
anafilaxia causados por fármacos, os antibióticos e os AINEs foram os grupos
mais predominantes33, mas contrastando com dados da SPAIC9,32, que reportaram
os AINEs como causa principal e em segundo lugar os antibióticos
beta‑lactamicos. O segundo grupo de alergénios que mais desencadeou episódios
de anafilaxia nos adultos foi o dos alimentos, com o marisco como principal
causa, tal como nos estudos de Solé e colaboradores7, de Ben‑Shoshan e
colaboradores31e em Portugal, confirmando o estudo de Morais‑Almeida e
colaboradores15, assim como os dados da notificação de anafilaxia promovida
pela SPAIC.
A notificação das alergias e outras reacções adversas através do CPARA, por
abranger toda a população, tem o potencial para aumentar a segurança dos
doentes nos cuidados de saúde, tal como foi documentado em vários
estudos7,16,23‑25.
A principal limitação deste estudo foi partir do pressuposto de que os registos
das reacções são todos credíveis, visto que a falta de formação sobre o
preenchimento de cada uma das variáveis do CPARA pode ter conduzido a erros de
categorização dos fármacos e até das próprias reacções alérgicas. De facto, ao
fazer uma análise na base de dados do CPARA, de 1017 reacções classificadas
como Outros alergénios, 637 (62%) foram reclassificadas (dados não
apresentados), importando continuar a divulgar quer o CPARA quer a forma
correcta de o utilizar.
Foi abrangido todo o território nacional, de uma forma uniforme, com taxas de
notificação semelhantes em todas as regiões de Portugal continental. No
entanto, como descrito na literatura34, estima‑se que exista uma
sub‑notificação das reacções de anafilaxia, em que somente cerca de 6% das
reacções adversas a fármacos são notificadas, atingindo um valor ainda mais
baixo no que se refere a outros alergénios.
A identificação da falta de conhecimento e das atitudes relativas à
sub‑notificação da anafilaxia no CPARA poderá proporcionar o desenvolvimento de
medidas de divulgação e de formação para os profissionais de saúde,
contribuindo assim para melhorar a qualidade dos registos no CPARA e,
consequentemente, melhorar a prestação dos cuidados de saúde em Portugal.
Em conclusão, o CPARA é uma ferramenta extremamente útil na identificação e
referenciação dos casos de anafilaxia na população portuguesa, tendo por isso
elevado valor para o estudo desta importante patologia, com potencial para
influenciar o seu prognóstico.