Hipersensibilidade selectiva a cefazolina: Revisão de casos
INTRODUÇÃO
A prevalência de hipersensibilidade a cefalosporinas tem vindo a aumentar
devido ao número crescente de prescrições desta classe de antibióticos para
quadros infecciosos rotineiros1,2.
Os doentes podem desenvolver anticorpos IgE contra determinantes antigénicos
específicos das cefalosporinas ou determinantes partilhados com outros beta-
lactamicos.
A estrutura central das penicilinas e cefalosporinas é formada pelo anel beta-
lactamico, sendo que a sensibilização pode ocorrer a produtos resultantes do
metabolismo deste anel, ou a uma das duas cadeias laterais antigénicas (R1 e
R2) que são diferentes nas cefalosporinas. Em relação às cefalosporinas em
particular, a sensibilização mais comum parece ser da cadeia lateral R1, sendo
as restantes menos frequentes.
No entanto, a estrutura química dos determinantes antigénicos das
cefalosporinas não está completamente esclarecida. A cadeia lateral R1 parece
desempenhar o papel mais importante, o que explica a reactividade cruzada mais
frequente entre cefalosporinas de primeira geração e penicilina, uma vez que
algumas cefalosporinas de primeira geração apresentam cadeias R1 semelhantes às
da penicilina. No caso particular da cefalozina, esta semelhança química não se
constata, pelo que a reactividade cruzada é mais rara.
Está documentado nos estudos de grandes séries que até cerca de 40% dos doentes
com hipersensibilidade a uma cefalosporina vão reagir a outra cefalosporina. De
acordo com a literatura, sabe -se também que a maioria dos doentes com reacções
imediatas às cefalosporinas é alérgica apenas a cefalosporinas e não a
penicilinas3,4.
Aproximadamente 40% das reacções de anafilaxia perioperatória relacionadas com
fármacos são atribuídas à antibioterapia com cefalosporinas, sendo igualmente
responsáveis por 30% das reacções graves a beta-lactamicos5. Vários protocolos
cirúrgicos incluem como profilaxia antibiótica uma cefalosporina de primeira
geração, a cefazolina e, nesse sentido, torna-se importante diagnosticar e
notificar possíveis hipersensibilidades e explorar eventuais reactividades
cruzadas.
No caso da cefazolina a hipersensibilidade selectiva parece ser a forma de
apresentação mais frequente e, pela sua administração parentérica, as reacções
são habitualmente imediatas e graves6-9.
Os autores apresentam um estudo retrospectivo dos casos de hipersensibilidade à
cefazolina diagnosticados no serviço nos últimos 2 anos.
Caso 1:Mulher de 49 anos, com antecedentes de obesidade mórbida e vários
internamentos por cirurgia neste contexto. Trata-se de uma mulher que, em 2008,
após colocação de banda gástrica, cerca de 3 horas após o procedimento
desenvolveu um quadro de urticária generalizada. Em 2009, foi submetida a
recolocação de banda, não estando descrita qualquer intercorrência neste
procedimento. Em 2012, cerca de 15 minutos após indução anestésica para ser
submetida a sleevegástrico, desenvolveu um quadro de anafilaxia grau IV com
necessidade de terapêutica endovenosa com soros, adrenalina, hidrocortisona e
também ventilação mecânica em unidade de cuidados intensivos durante 8 dias. Os
fármacos comuns nas duas cirurgias com reacção alérgica foram: rocurónio,
propofol e cefazolina. Da investigação, os testes cutâneos em picada e
intradérmicos foram negativos para todos os fármacos administrados, excepto o
intradérmico, que foi positivo imediato para a cefazolina na concentração 0,1
mg/mL. Os restantes testes a beta-lactamicos foram negativos. Foram efectuadas
provas de provocação com penicilina, amoxicilina, cefuroxima e ceftriaxona, que
foram negativas.
Caso 2:Mulher de 36 anos, grávida de 38 semanas, foi submetida a bloqueio
epidural com ropivacaína e sufentanil para cesariana. Após administração quase
simultânea de cefazolina, ocitocina e efedrina, iniciou quadro de eritema
facial, com angioedema da face e lábios, e hipotensão marcada. Efectuou
medicação endovenosa com soros, hidrocortisona e clemastina. Da investigação
alergológica, os testes cutâneos em picada e intradérmicos foram negativos para
todos os fármacos usados durante a reacção, excepto o intradérmico, que foi
positivo imediato para a cefazolina na concentração 10 mg/mL. Os restantes
testes foram negativos. Foram efectuadas provas de provocação com amoxicilina,
penicilina, cefuroxima e ceftriaxona, que foram negativas. Posteriormente já
tolerou múltiplos tratamentos com cefuroxime.
Caso 3:Mulher de 66 anos, com antecedentes de gonartrose bilateral com
indicação cirúrgica para colocação de prótese. Após bloqueio epidural com
bupivacaína e profilaxia antibiótica com cefazolina endovenosa, constatou-se
choque anafiláctico com necessidade de suporte hemodinâmico com aminas
vasoactivas e ventilação invasiva. A investigação foi positiva para a
cefazolina no teste intradérmico imediato na concentração de 1 mg/mL. Os
restantes testes foram negativos para os outros beta-lactamicos. A doente foi
submetida a provas de provocação com bupivacaína e outros beta-lactâmicos
(amoxicilina, penicilina, cefuroxima e ceftriaxona), que tolerou sem reacção.
DISCUSSÃO
A investigação alergológica efectuada nestes três casos de alergia à cefazolina
revelou uma alergia selectiva para esta cefalosporina, com tolerância aos
outros antibióticos beta-lactamicos.
Este padrão de reactividade clínica está provavelmente associado à cadeia
lateral em R1, que na cefazolina é diferente de todas as outras cefalosporinas.
Um estudo de Bousquet et al.10 pretendeu avaliar doentes com suspeita de
hipersensibilidade à cefazolina no período perioperatório, tendo sido estes
selecionados a partir de uma base de dados de hipersensibilidade a fármacos
(Drug Allergy and Hypersensitivity Database, DAHD). Neste trabalho, de 4200
notificações, a cefazolina foi o fármaco suspeito em 25 dos casos. Em 10
doentes houve confirmação de alergia e as relações foram classificadas como
graves e imediatas: choque anafiláctico em 6 doentes, anafilaxia em 2 e
urticária com angioedema nos 2 restantes. Apenas um doente com
hipersensibilidade à cefazolina teve testes cutâneos positivos para outros
beta-lactamicos.
Nesta série a prevalência de alergia encontrada foi aproximadamente 0,2%,
ligeiramente inferior à encontrada em outros estudos7,11. As reacções são
geralmente descritas como imediatas e graves, o que se deve à sua administração
em bólus, e os testes cutâneos parecem ter valor preditivo elevado, embora
possam existir falsos negativos. O estudo canadiano de Weber11 documenta,
todavia, que a hipersensibilidade selectiva à cefazolina é muito rara, uma vez
que a maioria dos doentes estudados apresentava hipersensibilidade a outros
beta-lactamicos.
Pode concluir-se que a hipersensibilidade a este beta-lactamico é rara. Apesar
de os determinantes hapténicos das cefalosporinas não serem bem conhecidos,
presume-se que a cadeia lateral R1 seja a principal e esteja na base da
reactividade cruzada. Na cefazolina, esta cadeia consiste num heterociclo
ligado a uma função amida através de um grupo metileno (CH2). Apesar de os
casos notificados serem escassos e insuficientes para extrair conclusões ou
predizer a existência de reactividade cruzada, é possível definir três perfis
de sensibilização distintos por ordem decrescente de prevalência:
' doentes com alergia selectiva à cefazolina;
' doentes com alergia a outras cefalosporinas mas que toleram amoxicilina;
' doentes que reagem a vários beta-lactamicos, em provável relação com o anel
beta-lactamico.
No entanto, nem todos os estudos são concordantes, provavelmente porque o
padrão de sensibilização varia de acordo com a população estudada e com a
altura em que os dados são recolhidos. É importante o alerta para possíveis
casos não notificados e, igualmente, a necessidade do estudo completo dos beta-
lactamicos, tendo em conta o predomínio relativo da hiperensibilidade
selectiva, uma vez que a maioria dos doentes poderá tolerar outros beta-
lactamicos.