As mães nem sempre têm boas intenções
As mães nem sempre têm boas intenções
Manuel Salgado1
1 Consulta de Reumatologia Pediátrica, HPCoimbra
Desde que começámos a especialidade ouvimos repetidamente a frase As mães
quase sempre têm razão. Quase
Em Julho de 2009 o Zacarias (chamemos-lhe assim), de 9 anos de idade, foi
enviado à Consulta de Reumatologia Pediátrica (CRP) do Hospital Pediátrico de
Coimbra por olho vermelho crónico, bilateral, refractário à medicação tópica
ocular (colírios e pomadas de corticóides e antibióticos) e à medicação oral
com prednisolona.
As queixas tinham-se iniciado em Abril de 2007, com blefarite e chalázio
bilaterais, resistentes à terapêutica convencional, que exigiu abordagem
cirúrgica em ambas as pálpebras superiores. Recidivaram pouco tempo depois. Em
Junho de 2007, às manifestações anteriores associou-se hiperémia conjuntival
crónica, bilateral, acompanhada de intensa fotofobia. Estas manifestações
revelaram-se também refractárias às terapêuticas tópicas.
Em Fevereiro de 2009, numa fase de agravamento, foi-lhe diagnosticada
queratoconjuntivite bilateral complicada de precipitados subepiteliais com
neovascularização corneana. A biópsia da conjuntiva, realizada em Junho de
2009, revelou conjuntivite crónica com exuberância de plasmócitos. No mesmo
tempo operatório, foram realizadas injecção subconjuntival com corticóide, em
ambos os olhos, que viria a revelar-se também ineficazes. Posteriormente iniciou
medicação tópica com ciclosporina que viria a ser interrompida dias depois por
intolerância local (intensa fotofobia). A corticoterapia sistémica entretanto
iniciada foi igualmente ineficaz.
Em Julho de 2009, numa abordagem conjunta de Oftalmologia e de Reumatologia
Pediátricas, e na presunção de se poder tratar de pênfigo ocular, associou
ciclosporina oral na dose de 3,5 mg/kg/dia. Finalmente assistiu-se a uma
progressiva melhoria clínica, mantendo contudo a blefarite crónica e algum grau
de hiperémia ocular e de fotofobia.
Estávamos neste impasse, sem um diagnóstico preciso e sem uma melhoria
sustentada
Em Janeiro de 2010, um dos novos doentes enviados à CRP apresentou
manifestações clínicas em tudo sobreponíveis às do Zacarias.
A Epifânia (nome igualmente suposto), também com 9 anos de idade, foi
referenciada à CRP por queratoconjuntivite crónica, com 15 meses de evolução,
com uma evolução crónica com agudizações frequentes e refractária à medicações
tópicas instituídas. Nas fases de agravamento apresentava hiperémia ocular,
geralmente sem exsudado, intensa fotofobia e já compromisso da acuidade visual
(visão a 20% no olho direito). A hiperémia ocular e a fotofobia melhoravam
sob corticoterapia tópica, para recorrerem de imediato após a sua suspensão.
Desde o segundo ano de vida que sofria de hordeólos e chalázios recorrentes.
Pela cronicidade e gravidade das queixas, a criança foi sujeita a uma extensa
peregrinação médica, com recurso a múltiplas urgências, múltiplas e
diferentes consultas em oftalmologistas - 13 diferentes (sic) -, pediatras
(vários), clínicos gerais e um reumatologista, num total de mais de trinta
médicos diferentes (sic).
Em Janeiro de 2010, na observação conjunta (Reumatologia e Oftalmologia)
constatámos blefarite bilateral, hiperémia conjuntival bilateral, bulbar e
tarsal, telangiectasias na margem palpebral, queratite com leucoma e
neovascularização inferior da córnea direita.
Glooglámos. O que não fizemos com o Zacarias.
Dois dias depois assumimos o diagnóstico de rosácea ocular complicada de
queratoconjuntivite flictenular. Iniciou eritromicina oral (para ser
administrada durante muitos meses) (1) associado ao tratamento tópico dirigido.
A boa evolução veio a confirmar o diagnóstico. Mantém as sequelas da queratite
crónica com leucoma no olho direito. Actualmente é seguida exclusivamente em
consultas de Oftalmologia Pediátrica.
As manifestações clínicas do Zacarias eram semelhantes às da Epifânia. Em
Fevereiro de 2010 assumiu-se o mesmo diagnóstico para o Zacarias. Suspendeu-
se a ciclosporina oral e iniciou eritromicina (para ser administrada durante
vários meses, quiçá anos) (1).
Inicialmente a resposta parecia ser favorável. Mas eis que volta tudo ao mesmo:
agravamento, melhoria, agravamento, vários contactos telefónicos, antecipação e
multiplicação de consultas. Os avanços e recuos levaram, em Junho de 2010, a
reiniciar a prednisolona sistémica e, poucos dias depois, também a ciclosporina
sistémica. Os controlos analíticos apertados, com doseamento sérico da
ciclosporina, foram os requisitos subsequentes pela potencial iatrogenia
resultante da associação cicloporina e eritromicina (ambos antibióticos
macrólidos). Também sem sucesso.
Nos primeiros dias de Julho, no imediato a um novo contacto telefónico da mãe
para o Oftalmologista assistente, referindo Está outra vez pior, foi
considerado paradoxal.
Estávamos na pausa matinal do café, num local público. Este momento de relaxe
mental deu a inspiração que faltava: a Epifânia fora sujeita a uma
peregrinação médica; pelo contrário Zacarias mantinha-se fiel ao seu
Oftalmologista. Outros doentes, já teriam pedido outra(s) opinião(ões).
Qual a razão para uma confiança acrítica tão prolongada? Não bate certo.
Interna-se e vamos ver o que acontece.
Já com o plano instituído, nesse mesmo dia, o Oftalmologista confessou que,
desde há várias semanas, recebia mensagens românticas da mãe do Zacarias no
telemóvel.
A boa evolução no internamento proporcionou que fosse suspensa a corticoterapia
e a ciclosporina sistémicas. O Zacarias teve alta 14 dias depois, apenas
medicado com eritromicina oral e tópicos oculares. Passou a ter um novo médico
oftalmologista assistente, agora do sexo feminino.
Em Outubro de 2010 estava assintomático e já quase sem tópicos. Para Dezembro
de 2010 está programada uma redução na dose diária de eritromicina.
A descrição da orientação e da evolução deste sindroma de Munchausen-like para
a pedopsiquiatria e pediatria social fogem ao âmbito desta descrição.
Admitimos hoje que a melhoria parcial pelo uso da ciclosporina sistémica se
deveu à sua actividade como antibiótico macrólido.
Na sequência da troca de Oftalmologista, as mensagens recebidas pelo
especialista do sexo masculino, inicialmente românticas passaram para um tom
mais acusador à mistura com declarações de encanto. Também aconselhado pelos
colegas directamente envolvidos no caso, este colega ignorou toda e qualquer
mensagem. Por precaução, mantém-nas gravadas no seu telemóvel e vai-nos
informando das mesmas.