A Nutrição
Cuidados Continuados Pediátricos – Abordagem Multidisciplinar – Mesa Redonda
A Nutrição
Helena Ferreira Mansilha1
1Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria do Hospital Maria Pia, CHPorto
INTRODUÇÃO
Também em idade pediátrica, a esperança de vida dos portadores de numerosas
patologias complexas tem melhorado nas últimas décadas. De facto, tem vindo a
assistir-se a um grande desenvolvimento dos Serviços de Saúde bem como ao
crescimento das estruturas de suporte comunitário, no âmbito intra e extra-
hospitalar. Recentemente, diversas técnicas de complexidade variável têm vindo
a ser implantadas no domicílio de doentes crónicos: oxigenoterapia, ventilação
assistida, diálise peritoneal e com certeza a nutrição artificial.
Em idade pediátrica, a capacidade para vencer a malnutrição é limitada porque
nesta faixa etária as reservas são escassas e as necessidades nutricionais
elevadas. Assim, e ao contrário dos adultos, as crianças e os adolescentes
necessitam de ser adequadamente nutridos para crescer e atingir o seu máximo
potencial para que estão determinados geneticamente. Quando estes são
portadores de patologia crónica complexa associada a comprometimento de um ou
vários sistemas de órgãos, o suporte nutricional especializado e prolongado no
tempo é muitas vezes necessário, contribuindo de forma notável para um melhor
prognóstico. De facto, nas últimas duas décadas, desenvolvimentos técnicos na
área da nutrição como avanços no design dos tubos e acessos vasculares,
métodos de administração e fórmulas tornaram o suporte nutricional mais seguro,
económico e fácil, possibilitando o aumento sustentado do número de crianças e
adolescentes em nutrição assistida, deferidos do ambiente hospitalar. Assim,
para uma vasta gama de patologias da infância e adolescência o suporte
nutricional dos seus portadores, tendo lugar no domicílio, tem o objectivo de
tendencialmente proporcionar-lhes um crescimento normal inserido no melhor
ambiente possível, apesar dos constrangimentos inerentes à patologia de base,
bem como a inerentes condicionalismos familiares(1).
Segundo o Decreto-Lei nº 101/2006, Cuidados Continuados Integrados serão um
conjunto de intervenções de saúde e/ou de apoio social, sequenciais,
decorrentes de avaliação conjunta, centrado na recuperação global entendida
como o processo terapêutico e de apoio social, activo e contínuo, que visa
promover a autonomia melhorando a funcionalidade da pessoa em situação de
dependência, através da sua reabilitação, readaptação e reinserção familiar e
social.
É tema deste trabalho a sua aplicabilidade e pertinência em idade pediátrica,
especificamente na área da Nutrição.
QUANDO?
Por um lado, a Nutrição foi considerada como um direito humano básico
expressamente reconhecido pela Convenção dos Direitos Humanos Internacionais,
desde 1924(2), embora este direito seja variavelmente interpretado, apoiado,
respeitado, protegido e promovido dependendo do contextualização política e
sócio-economico-cultural do local geográfico em questão.
Por outro lado, a alta hospitalar não é apenas considerada quando se pensa ter
sido conseguida a recuperação completa possível do estado de saúde da criança
ou adolescente. De facto, a estabilização da sua situação clínica pode permitir
ponderar a continuação da sua recuperação e/ou a manutenção do seu suporte
clínico no ambiente familiar ou, pelo menos, num ambiente de características
mais residenciais.
Assim, quando a alta hospitalar possa estar dependente de alguma técnica de
suporte nutricional, sempre que possível, equipas hospitalares especializadas
desta área devem chamar até si a avaliação, caso a caso, da pertinência de
orientar o doente para o domicílio ou ambiente equivalente, e o seu melhor
timing(1,3).
COMO?
Os Cuidados Continuados em Pediatria, e em particular na área da Nutrição,
deveriam pois ter em conta a relação e interdependência entre a criança/
adolescente, a família e o ambiente que os contem. Têm como objectivo a
promoção não só da estabilização e/ou recuperação clínicas do doente, mas
também da adaptação psicossocial do doente e família, à sua nova condição.
Assim, os Cuidados Continuados em Pediatria deveriam ser preferencialmente, e
sempre que possível, cuidados domiciliários. Por razões diversas, estes
cuidados poderão também ser cuidados prestados num regime especial de
internamento em unidades de pequenas dimensões (4-6 camas), caracterizado pela
criação de um ambiente residencial, em que a presença dos cuidadores a tempo
inteiro (24h/dia) é promovida e desejada. Estas unidades deveriam estar dotadas
de todos os meios técnicos e humanos necessários, bem como de outros serviços
coadjuvantes que possam ser úteis.
Após o preenchimento dos critérios médicos de indicação para Nutrição Assistida
extra-hospitalar, a sua programação deve começar pela avaliação prévia
cuidadosa do contexto sócio-económico e familiar em que a criança/ adolescente
está inserido. Devem ser analisados a estrutura familiar e seu ambiente
psicosocial bem como recursos materiais e humanos, como sejam as
características da sua habitação (condições sanitárias, dimensões e
acessibilidades), fontes de rendimento, logística da ocupação profissional dos
pais, etc. A etnia, a estrutura familiar, o nível educacional e a localização
geográfica da residência variam entre famílias e é crucial um bom entendimento
desta dinâmica familiar. Por essas necessidades diferirem, os cuidados
domiciliários devem ser desenhados de acordo com as necessidades individuais de
cada caso.
Relativamente ao enquadramento legal em Portugal, o programa de Nutrição
Artificial Domiciliária está regulamentada na Circular Normativa nº 1/2006 ARS
Norte de 24/02/2006. Esta prevê o apoio logístico à família, bem como a
articulação do Hospital com o Centro de Saúde da área de residência, com o
objectivo de distribuir responsabilidades, tarefas e fornecimento de materiais.
A preparação técnica dos pais/ cuidadores e doentes (faixas etárias de maior
idade) deverá ser estruturada e feita em meio hospitalar. A curva de
aprendizagem deve ser orientada e monitorizada pela equipa de suporte
nutricional hospitalar, em que elementos de enfermagem experientes nesta área
são uma grande mais-valia. Contempla 3 fases:
Observação: familiarização com a técnica e o material, podendo ser usados
meios audiovisuais.
Acção: ensino de regras de assepsia, aquisição de skills na manipulação de
cateteres e bombas perfusoras (imprescindíveis nas crianças), reconhecimento
dos problemas técnicos mais comuns e saber como solucioná-los e ainda o
reconhecimento precoce das complicações infecciosas (febre e outros sinais de
gravidade clínica). Podem ser usados modelos para treinar as técnicas.
Simulação:todas as tarefas são executadas pelos pais como se estivessem em
casa, embora ainda em meio hospitalar.
À data de alta deverá ser sempre fornecido à família um dossier com informação
escrita personalizada, quer de procedimentos médicos, quer de procedimentos de
enfermagem, que serão guias de orientação para os pais. Além disso, a criança/
adolescente deve ser sempre acompanhado de um relatório clínico pormenorizado.
À família deverão ser sempre disponibilizados canais privilegiados de
comunicação, nomeadamente através de contacto telefónico permanente médico e de
enfermagem com a equipa de suporte nutricional, bem como o acesso directo ao
Serviço de Urgência da instituição hospitalar em causa.
Devem ainda ser também agilizados os canais e as condições ideais de transporte
de produtos nutricionais e outros materiais, de modo a assegurar o seu
fornecimento no domicílio, nas melhores condições e atempadamente.
Não será de mais realçar que, o investimento na formação/treino das famílias/
cuidadores destas crianças que passará pelo maior desenvolvimento do apoio
hospitalar domiciliário, bem como a cooperação com os cuidados de saúde
primários, com as escolas e o serviço social local poderão fazer a diferença
entre a hospitalização prolongada e a integração da criança/adolescente no seu
ambiente natural, com todas as vantagens que possam daí advir. Este papel
cabe à Equipa Multidisciplinar Hospitalar de Suporte Nutricional.
Assim, ainda nesta década, um documento de peritos do Conselho da Europa trouxe
a público os grandes défices nos cuidados nutricionais nos hospitais europeus e
providenciou recomendações para melhorar a situação, que incluíram a
implementação de Equipas de Suporte Nutricional(4). O principal objectivo
destas equipas deveria ser a promoção da optimização nutricional a todos os
doentes, especialmente em casos de necessidade de nutrição enteral ou
parenteral, nomeadamente a sua planificação para a sua realização no domicílio,
quando prolongada. Posteriormente, o comité de Nutrição da ESPGHAN abraçou
estas recomendações, publicando sugestões para a implementação dessas equipas
em unidades hospitalares pediátricas(3).
De facto, a título de exemplo, outros trabalhos têm documentado a influência
definitiva da experiência dos clínicos na melhoria dos resultados obtidos em
Nutrição domiciliária(3,5,6-8).
A constituição destas equipas varia consoante o tipo de instituição, os
objectivos a que se propõem e a disponibilidade dos seus elementos(3). Podem
incluir as seguintes valências/competências:
Pediatria'Ao(s) pediatra(s) com experiência em nutrição pediátrica compete a
coordenação da equipa, a apreciação e colocação da indicação de suporte
nutricional no domicílio e a realização da prescrição3. São também suas funções
o seguimento clínico: avaliação clínico-analítica periódica. São ainda
responsáveis pela articulação com os serviços de saúde locais.
Cirurgia Pediátrica'Gestão da política de acessos vasculares centrais de longa
duração: escolha do mais adequado, colocação e manutenção. Acompanhamento
clínico de eventual patologia cirúrgica de base.
Pedopsiquiatria'Contributo na avaliação e apoio continuado da família e
criança/adolescente.
Enfermagem'Enfermeiro (s) com experiência nesta área asseguram a formação e
avaliação da competência técnica dos cuidadores (em meio hospitalar); atestam
as condições de habitabilidade e adequação à instalação domiciliária do suporte
nutricional, em visitas ao local. São suas funções ainda, a gestão do
fornecimento do material consumível bem como a articulação com os serviços de
saúde locais, com os seus pares.
Nutricionistas/Dietistas 'podem ajudar na avaliação dos aportes, aconselhar na
optimização da nutrição e participar no treino da família para casa.
Farmácia'Deve assegurar o fornecimento nas melhores condições dos produtos
nutricionais, nomeadamente ser responsável pela produção das bolsas de nutrição
parentérica e seu controlo de qualidade (estabilidade da mistura dos
nutrientes, controlo microbiológico, cálculo das quantidades desperdiçadas
decorrentes da sangria dos sistemas). Neste grupo etário, é habitual a
necessidade de fabrico de bolsas personalizadas(9,10).
Assistência Social'Contributo na avaliação dos recursos económicos e das
condições de habitabilidade da família.
Secretariado/Coordenador de dados 'possibilitam a assessoria administrativa.
PORQUÊ?
Embora o suporte nutricional não seja a maioria das vezes o tratamento da
doença, é muitas vezes o tratamento da complicação da doença, estando
intimamente ligado a um melhor prognóstico. Em idade pediátrica, a recuperação
nutricional (autonomia nutricional) podem ser muito mais prolongados que nos
adultos, tendo em conta as elevadas necessidades por quilograma de peso, de uma
criança em crescimento. De facto, segundo dados recentes, a duração média de
nutrição parentérica domiciliária em França foi de 2,6 anos e, em 22% parece
ser definitiva a necessidade desse tratamento(11).
A relação custo-benefício da nutrição enteral domiciliária avaliada por equipas
de suporte nutricional parece ser indubitavelmente favorável, bem como esta
relação se parece fazer acompanhar, por uma franca melhoria na qualidade dos
cuidados(12). O mesmo se passa relativamente à nutrição parentérica
domiciliária que, sendo uma terapia dispendiosa, parece ter uma franca relação
favorável custo/benefício quando comparada com a nutrição parentérica em meio
hospitalar(13,14). Trabalhos publicados têm apontado para redução dos custos na
ordem dos 30-60%(11,15).
Embora possa ser perspectivado que a incidência das complicações do suporte
nutricional realizado em meio hospitalar seja sobreponível às complicações do
suporte nutricional realizado no domicílio, em idade pediátrica, a sépsis
relacionada com cateter nos doentes em nutrição parentérica domiciliária é
menor que nas crianças hospitalizadas(16-18), embora, mesmo assim, esta seja a
complicação mais frequente da nutrição parentérica domiciliária.
Estudos de qualidade de vida que incluem parâmetros emocionais, sociais,
ocupacionais e físicos têm vindo a demonstrar que o apoio de peritos à criança
e família (equipas de suporte nutricional especializadas) reduz a depressão e
melhora a qualidade de vida. De facto, uma forte auto-estima do doente bem como
um bom suporte familiar é fundamental para a gestão de dificuldades emergentes
como a perda de emprego, perda de rendimentos e enfraquecimento das relações
sociais que ocorrem muitas vezes com o início da nutrição domiciliária(17,19-
21).
As maiores séries publicadas de nutrição parentérica domiciliária registam uma
duração média de 2 anos com uma duração máxima de 15 anos. Estas crianças/
adolescentes têm taxas de sobrevida melhores e maior probabilidade de conseguir
o desmame para a nutrição enteral total (cerca de 50%) que os mais velhos(9).
Assim, surge por vezes a necessidade de realizar nutrição parentérica
prolongada para substituir um eixo digestivo ausente ou funcionalmente
insuficiente.
COMENTÁRIOS FINAIS
O sucesso do suporte nutricional domiciliário ou equivalente, no âmbito da
prestação de cuidados continuados em idade pediátrica, dependerá da
cumplicidade entre a família/cuidadores e a equipa multidisciplinar, sendo
crucial um programa bem organizado de formação, um plano de alta cuidado e
sobretudo o suporte sustentado ao longo do tempo, no sentido de assegurar uma
assistência nutricional eficaz.
De facto, a criança deve assumir o estilo de vida mais normal possível, tendo
em conta a idade (ex: ir à escola, relação com os pares, actividades
desportivas, ir de férias), podendo ser o suporte nutricional domiciliário
indispensável à autonomia terapêutica da família.
No entanto, a interferência com a qualidade da família é incontornável. Será
sempre necessário um reajustamento familiar em maior ou menor grau que poderá
passar pela reinserção familiar da criança, por modificação das actividades
profissionais dos pais, seus estilos de vida e suas relações sociais. Mais uma
vez o apoio e assistência técnica da equipa multidisciplinar pode ser crucial
para minimizar os danos.
Em suma, o suporte nutricional domiciliário poderá contribuir para que a doença
seja remetida para segundo plano na vida da criança/adolescente e sua família,
fazendo-a sentir-se mais normal, pelo menos durante alguns períodos do seu
quotidiano, melhorando as expectativas da criança e da família, sob as melhores
condições psicoafectivas.