Caso Electroencefalográfico
CASO CLÍNICO
Apresenta-se o caso de uma jovem actualmente com 19 anos de idade, saudável até
aos 14 anos, altura em que teve um episódio que se iniciou por uma sensação de
desconforto e formigueiros no membro inferior esquerdo, seguindo-se perda de
consciência, com duração aproximada de um minuto e recuperação espontânea.
Nesta altura iniciou medicação antiepiléptica, mantendo episódios
estereotipados com duração de alguns segundos, caracterizados por parestesias
dos membros esquerdos, avisando os presentes da crise; de seguida apresentava
movimentos do membro inferior esquerdo (por vezes também do membro superior
ipsilateral), sem perda de consciência. No final referia diminuição da força do
membro inferior esquerdo, apresentando uma marcha claudicante à esquerda.
Ocasionalmente os episódios eram mais prolongados, os movimentos bilaterais e
tinha perda de consciência, com quedas e traumatismos vários. Nesse período
associaram-se alterações do comportamento, como ameaças de suicídio e ataques
de pânico. Houve várias alterações terapêuticas, com introdução de medicação
ansiolítica e antidepressiva, sem benefício clínico e com efeitos secundários,
como sonolência e agravamento da frequência dos eventos paroxísticos.
Aos 15 anos foi internada por Pedopsiquiatria para estudo de uma perturbação
conversiva. Durante o internamento apresentou vários episódios semelhantes,
tanto no sono como na vigília. Foi medicada com neuroléptico, com agravamento
da frequência destes episódios. Manteve um comportamento que oscilava entre uma
atitude cooperante e adequada e períodos em que se mostrava hostil e
reivindicativa. Apresentava uma atitude e conduta negativistas (com recusa
alimentar e na realização da higiene pessoal), que justificava alegando receio
de ter as crises e consequente queda. Foi, então, solicitada a avaliação por
Neurologia Pediátrica. Ao exame neurológico apresentava um síndromo piramidal
esquerdo não deficitário e hemi-hipostesia álgica esquerda.
Saliente-se que não havia história de antecedentes perinatais relevantes ou
história de convulsões febris ou afebris. Tinha desenvolvimento psicomotor
normal e bom aproveitamento escolar até ao 8º ano de escolaridade. Manifestava
marcadas dificuldades em lidar com as modificações corporais pubertárias
(menarca e telarca). Não havia história familiar de epilepsia ou doenças
psiquiátricas. Relativamente ao contexto psicossocial, tratava -se de filha
única, vivendo com a mãe e não conhecendo o pai.
Qual o diagnóstico provável?
O quadro clínico foi interpretado como epilepsia focal (crises com origem na
região fronto-parietal direita). Realizou vídeo-EEG, em que foi registada uma
crise epiléptica focal motora, durante a prova de hiperpneia, que foi
sinalizada pela doente e se caracterizou por postura tónica dos membros
superior e inferior esquerdos, seguida de movimentos clónicos dos mesmos
segmentos, sem perda de consciência (Figura 1). Do ponto de vista eléctrico a
crise caracterizou-se por atenuação inicial marcada da amplitude, globalmente,
depois com sequência de ondas teta e alfa na região central direita (Figura 2).
Sem alterações no registo eléctrico interictal. A ressonância magnética
encefálica foi normal. Iniciou tratamento com carbamazepina, com ajuste
posterior da dose, com bom controlo das crises. Actualmente mantém-se sem
crises epilépticas há três anos.
Figura 1 ' Sequência da crise (vídeo): alterações sensoriais (percepção da
crise), seguindo-se alteração postural sustentada dos membros esquerdos.
Figura 2 ' Sequência da crise: atenuação global da amplitude - actividade
recrutante (alfa-teta) central direita - actividade lenta (teta-delta) fronto-
centro-parietal direita.
DISCUSSÃO
As crises de natureza não epiléptica (CNNE) são eventos paroxísticos que
mimetizam muitas vezes crises epilépticas. Podem ser secundários a processos
orgânicos, tais como convulsão sincopal, doenças do movimento ou do sono, ou de
natureza psicossomática(1). O somatório de características clínicas, história
familiar, social e psicológica, bem como achados do vídeo-EEG contribuem para
um diagnóstico correcto. Contudo, esta diferenciação muitas vezes não pode ser
feita com absoluta confiança, mesmo dispondo de vídeo-EEG(1).
A prevalência de CNNE varia entre 10% a 40% dos doentes enviados a centros de
referência em epilepsia, como refractários à medicação antiepiléptica(2).
Ocorrem em doentes sem ou com crises epilépticas. A taxa de erro de diagnóstico
de CNNE em doentes com epilepsia oscila entre 5 a 10%(3). A epilepsia do lobo
frontal, com fenomenologia bizarra como a das crises hipermotoras, é a que mais
frequentemente se confunde com CNNE(4,5). A semiologia deste tipo de crises
frequentemente engloba: automatismos exuberantes, como pontapear ou pedalagem
dos membros inferiores; movimentos bruscos de segmentos ou de todo o corpo, por
vezes com características violentas; vocalizações, tais como gritos. Outros
fenómenos adicionais incluem a preservação da consciência apesar da postura
tónica bilateral (como nas crises da área suplementar motora), assim como a
ausência de letargia ou confusão no período pós-crítico. Frequentemente estas
manifestações clínicas atípicas acompanham-se de actividade interictal ou ictal
indetectável no registo de EEG de superfície. Esta dificuldade de identificação
no EEG resulta da elevada quantidade de artefactos de músculo ou movimento.
Existem algumas características clínicas que auxiliam na distinção entre as
epilepsias do lobo frontal e as crises de natureza não epiléptica(4,5): 1)
curta duração da crise (habitualmente menos de 60 segundos); 2) clara
estereotipia dos episódios, incluindo o padrão dos automatismos complexos; 3)
predomínios das crises durante o sono, embora também possam ocorrer em período
de vigília (enquanto que as CNNE apenas existem durante a vigília); 4)
semiologicamente caracterizam-se por uma postura tónica em abdução dos membros
superiores, traduzindo envolvimento da área suplementar sensitivo-motora (nunca
documentado nas CNNE). Existem CNNE descritas como surgindo no sono; no
entanto, o registo vídeo-EEG posterior revelou a existência de padrão de
vigília prévio ao início da crise(6).
No caso clínico descrito as crises têm aura sensitiva (parestesias no membro
inferior esquerdo), seguida de movimentos clónicos no mesmo segmento, por vezes
com envolvimento do hemicorpo esquerdo, de curta duração e com preservação da
consciência (excepto naquelas com generalização secundária), com parésia de
Todd no período pós-crítico. As crises ocorriam durante o sono e vigília, eram
estereotipadas e anatomicamente congruentes (área sintomática) com a área
sensitiva-motora primária contralateral (direita), isto é, na região medial da
transição fronto-parietal direita. A importância do vídeo e registo
electroencefalográfico de uma das crises foi crucial na confirmação do
diagnóstico de epilepsia focal. O facto de a ressonância magnética cerebral ser
normal sugere a hipótese de uma epilepsia provavelmente sintomática (sem
identificação da etiologia). A clarificação do quadro clínico, com controlo das
crises epilépticas, permitiu à doente uma readaptação psicossocial adequada.