Patologia ovárica num centro oncológico pediátrico
INTRODUÇÃO
Alguma da patologia ginecológica que atinge crianças e adolescentes, por ser
pouco frequente em idade pediátrica pode levantar alguns problemas no
diagnóstico. O tumor ginecológico é responsável por 1,2% de todos os tumores
malignos na infância e 60 a 70% têm origem no ovário.(1)As massas anexiais, em
raparigas com menos de 20 anos, apresentam um risco muito baixo de malignidade
e assim, a preservação do ovário pode ser quase sempre a regra. Contudo, em
raparigas ainda não menstruadas cerca de 40% das massas ováricas são malignas.
A torção do ovário pode ocorrer em associação com a neoplasia. O uso de
marcadores tumorais na avaliação de massas anexiais é uma valiosa ajuda para a
exclusão de malignidade. A elevação do marcador tumoral Ca 125, mais associado
a tumores epiteliais, na criança esta frequentemente elevado aquando da torção
do ovário.(2)Apesar do tumor do ovário ser de tratamento cirúrgico não
complexo, a má avaliação inicial e consequente orientação terapêutica podem
tornar uma neoplasia maligna de bom prognóstico numa doença grave e com sérias
sequelas. Por isso divulgamos a nossa casuística, que, apesar de escassa é
diversificada em termos de forma de apresentação clínica, diagnósticos e
terapêutica. O tempo que mediou entre o início das queixas e a realização de
meios complementares de diagnóstico que justificaram avaliação por um Centro
Oncológico especializado não foi alvo de estudo.
MATERIAL E MÉTODOS
Foi feito estudo retrospectivo baseado na consulta do processo clínico das
doentes com patologia do ovário, referenciadas ao Serviço de Pediatria do IPO
Porto FG. O período analisado foi de nove anos e quatro meses, de Janeiro de
2000 a Abril de 2009. A colheita de dados visou caracterizar a idade,
apresentação clínica, resultados analíticos e imagiológicos, diagnóstico
histológico, patologias associadas, terapêutica e seguimento.
RESULTADOS
Ao longo do período analisado foram referenciadas 16 doentes com lesões do
ovário, com idades entre os cinco e 15 anos, oito das quais com 12 e 13 anos e
três com menos de 11 anos. Verificaram-se cinco admissões em 2008, três em
2003, duas em 2002 e em 2003 e uma em cada um dos restantes anos (em 2001,
2004, 2007 e 2009). Das 16 doentes, 10 já tinham menarca na altura do início
dos sintomas. As manifestações clínicas encontradas foram: massa abdominal (10/
16), dor abdominal (9/16), irregularidades menstruais (4/16), puberdade precoce
(1/16), hirsutismo (1/16), obstipação (1/16), diarreia (1/16), polaquiúria (1/
16), retenção urinária (1/16) e ascite (1/16). Na avaliação analítica o
marcador tumoral β-hCG estava elevado em duas doentes com disgerminoma e o
Ca125 estava elevado num caso de torção anexial e num quisto simples do ovário.
A caracterização imagiológica da lesão permitiu separar em dois grupos de
acordo com o componente predominante, sólido ou líquido. Seis doentes possuíam
uma lesão tumoral predominantemente quística, com distribuição equitativa pelo
lado direito e esquerdo e com dimensões entre 4,7 cm e 20 cm (Figura 1).
Figura 1 - teratoma quístico
Dez doentes revelavam lesões predominantemente sólidas, localizadas
preferencialmente à esquerda (6/10) e com tamanhos que variaram entre 5,5 cm e
15 cm.
Em duas doentes, com quisto ovárico simples, com cerca de cinco centímetros,
manteve-se atitude expectante e verificou-se regressão espontânea.
Foram submetidas a biópsia por agulha, antes da cirurgia, duas adolescentes de
13 e 15 anos com disgerminoma. Em 12 doentes a abordagem inicial foi cirúrgica.
O procedimento cirúrgico efectuado variou de acordo com o tipo de lesão:
ooforectomia (7/14), quistectomia (2/14), anexectomia (1/14), anexectomia e
vaginostomia (1/14), anexectomia e estadiamento cirúrgico (2/14) e ressecção
alargada de massa pélvica com estadiamento cirúrgico (1/14). Na Figura 2
mostram-se algumas das peças operatórias excisadas. Duas doentes foram enviados
de outro Hospital, tendo sido já feita uma abordagem cirúrgica inicial, uma
ooforectomia para teratoma cístico maduro, que nos foi enviado por suspeita de
lesão no ovário contralateral, e outra ooforectomia laparoscópica de tumor
maligno.
Figura 2 - A - Disgerminoma sem invasão; B - Disgerminoma com invasão
circundante; C e D - Teratoma
A avaliação histológica dos produtos de biópsia e da peça operatória está
representada na Tabela 1, assim como os dois quistos simples que sofreram
regressão espontânea. A patologia associada, diagnosticada ao longo da
investigação, está esquematicamente representada na Tabela 2. De salientar que
a adolescente portadora de Síndrome de Swyer com disgerminoma estadio III
também apresentava um gonadoblastoma do ovário contralateral. Esta criança e
outra portadora de tumor de células de Sertoli-Leydig estadio III realizaram
tratamento quimioterápico.
Nove doentes mantiveram vigilância no nosso Hospital, enquanto os restantes
foram orientados para seguimento na área de residência.
Tabela 1 - Tipos de lesão encontrados; inclui os obtidos por avaliação
histológica assim como os sugeridos por avaliação imagiológica (dois quistos
simples)
Tabela 2 - Patologia associada encontrada no decursos da investigação
DISCUSSÃO
As massas ováricas mais frequentes variam de acordo com o grupo etário em que
se manifestam(3):
Recém-nascido: quistos foliculares, relacionados com as hormonas maternas e que
regridem, no entanto se forem maiores que cinco centímetros podem sofrer
torsão;
Rapariga pré-púbere: torsão do ovário, tumor células germinativas (teratomas
quisticos benignos), tumor do estroma, metástase (rabdomiossarcoma, tumor de
Wilms, neuroblastoma);
Adolescentes: quisto funcional, tumor de células germinativas (teratoma), tumor
do estroma, tumor do epitélio (adenoma);
Histologicamente os tumores do ovário têm origem nos três tipos de células que
compõem o ovário: células epiteliais, do estroma e germinativas. Ao contrário
dos adultos em que os tumores de células epiteliais são os mais comuns, nas
crianças predominam os tumores com origem nas células germinativas (teratomas,
disgerminomas, coriocarcinomas, tumor do seio endodérmico ). Os tumores do
estroma que incluem os tumores da célula de SertoliLeydig e os tumores das
células da granulosa são incomuns mas, frequentemente, estão relacionados com
puberdade precoce.(4)
Clinicamente as lesões malignas e benignas são indistinguíveis, podem ser
assintomáticas e por isso diagnosticadas, apenas, em exames de rotina. Quando
sintomáticas, a dor abdominal é a queixa principal, no entanto também pode
surgir distensão abdominal, náuseas, vómitos e urgência miccional.(5,6) Em
recém-nascidos e lactentes pode ocorrer irritabilidade, recusa alimentar e
distensão abdominal. No exame físico a palpação de uma massa pélvica é o achado
mais comum.(1) A gonadotrofina coriónica humana (β-hCG) e a α-fetoproteína
(AFP) podem estar elevadas nos tumores de células germinativas e o antigénio
cancerígeno 125 (Ca125) nos tumores epiteliais.(7,8) O nível sérico de lactato
desidrogenase isoenzima 1 (LDH) pode ser usado para monitorizar a resposta a
terapêutica dos disgerminomas que são o equivalente feminino dos seminomas
testiculares.(4) A ultrassonografia é uma técnica de imagem, não invasiva com
um papel muito importante na avaliação inicial destas lesões reconhecendo a
presença de uma massa pélvica em 90% dos casos. A abordagem transabdominal
proporciona uma boa avaliação da pélvis e das lesões com possível extensão
abdominal, não sendo a via transvaginal usada por rotina na pediatria. A
possibilidade de uso da técnica Dopller permite a mensuração da velocidade
sistólica e diastólica do fluxo sanguíneo, fornecendo uma medida indirecta da
resistência vascular. Os neovasos das neoplasias têm uma parede muscular fina
e, por isso, uma baixa resistência. No entanto não é possível fazer um
diagnóstico definitivo da natureza da lesão com esta técnica. A desvantagem da
ultrassonografia reside na baixa penetração no osso e ar, pelo que a sínfise
púbica e o ar intestinal podem dificultar a avaliação. A TAC fornece informação
importante sobre a extensão do tumor para ao espaço retroperitoneal e gordura.
O uso de contraste é usado para delinear o aparelho urinário, gastrointestinal
e delimitar lesão. Este exame complementar tem mais utilidade no estadiamento
do que no diagnóstico. A RMN ajuda a diferenciar os diferentes tipos de tecido,
penetra no osso e fornece imagens em vários planos, com uso de contraste não
tóxico, por isso é um exame complementar importante para identificar lesões no
tecido mole não acessíveis por outras técnicas.(9)
A atitude a tomar depende do tipo de lesão e da idade da criança. Em recém-
nascidos, vários estudos indicam que lesões quísticas com menos de cinco
centímetros regridem espontaneamente até ao fim do primeiro ano de vida, pelo
que nestas situações a vigilância clínica e ecográfica é preferida. Se se
tornam sintomáticas, persistentes ou se há incertezas quanto à sua natureza
devem ser retiradas. Na adolescente o tratamento dos quistos simples depende do
tamanho, da presença de sintomas e do risco de torsão.
As crianças com suspeita de tumor do ovário devem ser referenciadas para um
Centro Oncológico especializado de modo a realizar um estadiamento adequado que
pode envolver uma biopsia aspirativa, biopsia cuneiforme, laparoscopia
diagnóstica ou terapêutica e, se necessário laparotomia exploradora com cuidada
inspecção de toda a cavidade abdominal e eventual estadiamento cirúrgico da
doença. A presença de ascite, massas no epiplon, adenopatias aorto ilíacas,
massa ovárica contralateral, envolvimento extra-axial, massas com mais de oito
centímetros de diâmetro e vegetações intraquísticas são algumas das
características que podem predizer uma natureza maligna, a qual, se
encontrada, deve ser excisada, e feito o estadiamento cirúrgico (anexectomia,
colheita de liquido peritoneal, biópsia das superfícies peritoneais,
omentectomia, biópsia do ovário contralateral e biópsia dos gânglios).(10)
O tratamento do tumor benigno mais frequente, teratoma benigno quístico, é a
quistectomia com preservação do ovário sempre que possível. O tratamento
quimioterápico, do tumor maligno, varia de acordo com o tipo histológico e
estadiamento.
CONCLUSÃO
As massas anexiais, na criança e adolescentes, quando tumorais são
frequentemente benignas. No entanto no nosso estudo, cerca de 60% dos doentes
tinham lesões tumorais que, sendo raras, justificam uma orientação
multidisciplinar, com o envolvimento do centro oncológico pediátrico.
De acordo com a literatura, foram identificadas duas lesões tumorais malignas
com origem na célula germinativa que, ao contrário dos tumores epiteliais do
adulto, são mais frequentes na criança e adolescente. Também se diagnosticou
uma lesão maligna com origem no estroma e não associado a puberdade precoce em
criança de cinco anos.
Na nossa casuística também foi possível identificar quatro doentes com
malformações/síndromes não diagnosticados anteriormente (útero didelfos,
síndrome do ovário poliquístico, síndrome de Mayer-Rokitansky, síndrome de
Swyer).
Os Pediatras devem estar sensibilizados para a abordagem da patologia do
ovário, com a qual se prevê que sejam mais vezes confrontados, no contexto do
alargamento da idade de atendimento em Pediatria até aos 18 anos.