Pancitopenia num lactente
INTRODUÇÃO
Os seres humanos são incapazes de sintetizar Cobalamina (Cbl), também
denominada vitamina B12, sendo a sua única fonte os produtos animais.(1-3)
Contrariamente aos adultos, as crianças têm pequenas reservas desta vitamina,
podendo desenvolver sinais e sintomas devidos à sua deficiência em meses.(1,4)
Ainda assim, o défice de Cbl é uma situação rara na infância.(1,3,5) Das
causas conhecidas em idade pediátrica, a mais frequente é a carência alimentar
da mãe por deficiência de armazenamento ou ingestão e geralmente em crianças em
aleitamento materno exclusivo.(2,3,6,7)As mulheres que seguem regimes
alimentares vegetarianos e macrobióticos estão particularmente em risco.(6,8)
Das outras causas destacam-se a carência alimentar da criança, a falta de
factor intrínseco activo (anemia perniciosa congénita), a presença de anti-
corpos anti-Cbl e anti-factor intrínseco (anemia perniciosa), a má absorção
selectiva de Cbl (síndrome de Imerslund Grasbek), vários síndromes de má
absorção, doenças com envolvimento ileal (local de absorção da Cbl) e presença
de mecanismo de competição pela Cbl (parasitismo por Diphyllobothrium latum).
(2,4,8)
Nos primeiros meses de vida, as manifestações clínicas da deficiência de Cbl,
incluem irritabilidade, má progressão estaturoponderal, apatia, anorexia e
recusa de alimentos sólidos. As manifestações neurológicas mais comuns são o
atraso ou regressão no desenvolvimento psicomotor. As crianças mais velhas (ou
quando o diagnóstico é mais tardio) podem apresentar anemia megaloblástica,
pancitopenia e sintomas ou sinais neurológicos como hipotonia, hiperreflexia,
tremor ou convulsões.(2,6,9) Saliente-se que a sintomatologia neurológica pode
preceder os achados hematológicos.(6,9)
Os doseamentos de homocisteína e de ácido metilmalónico no plasma e na urina,
têm sido utilizados para diagnosticar precocemente e monitorizar a deficiência
de Cbl,(4) já que os valores hematológicos e o doseamento de Cbl podem ser
normais ou apenas discretamente diminuídos.(2)
Desde Junho de 2006 que o Programa Nacional de Diagnóstico Precoce permite o
rastreio alargado de doenças metabólicas a todos os recém-nascidos. Este
rastreio inclui o doseamento de propionilcarnitina, que se encontra aumentada
no défice de cobalamina.(12)A deficiência de Cbl diminui a actividade de duas
enzimas, a metionina sintase e a L-metilmalonilCoA mutase, o que resulta na
acumulação de homocisteína, ácido metilmalónico e propionilcarnitina.(9)
Apresenta-se um caso de anemia megaloblástica por défice de Cbl num lactente em
aleitamento materno exclusivo, em que a mãe negou ter seguido um regime
alimentar vegetariano.
CASO CLÍNICO
Lactente do sexo feminino, sete meses, filha de pais jovens não consanguíneos,
saudáveis, pertencentes a classe socioeconómica desfavorecida. Gravidez não
vigiada; serologias à data do parto adequadas. Parto distócico por ventosa às
40 semanas. Peso ao nascer 3290g; sem intercorrências no período neonatal.
Aleitamento materno exclusivo, com bom desenvolvimento estaturoponderal (P75).
Rastreio de doenças metabólicas realizado ao sétimo dia de vida.
Foi admitida no Serviço de Urgência por apatia associada a palidez cutânea e
vómitos com a tentativa de diversificação alimentar. Um mês antes do
internamento apresentava cansaço fácil e regressão no desenvolvimento
psicomotor, deixando de se sentar com apoio e perdendo interesse pelos
brinquedos.
À admissão, apresentava-se prostrada, com mucosas pálidas e hiperpigmentação
cutânea difusa; hipotonia axial e dos membros. Sem outras alterações no exame
objectivo nomeadamente neurológico.
Na avaliação laboratorial (Tabela 1) verificou-se pancitopenia com anemia
grave, eritrócitos 1.100.000/µl; hemoglobina 3,8 g/dl; plaquetas 105.000/µl,
reticulócitos 0,6%; hematócrito 10,5%; volume globular médio 95,5 fl (>P95);
RDW 29,8%; leucócitos 3.200/µl, neutrófilos 20% (640/µl). O esfregaço de sangue
periférico evidenciava anisopoiquilocitose acentuada e neutrófilos macrocíticos
hipersegmentados. A desidrogenase láctica (LDH) estava aumentada (9.147 U/l).
Perante a anemia grave sintomática fez transfusão de concentrado de
eritrócitos.
TABELA 1 - Resultados da avaliação analítica
Os achados do mielograma foram sugestivos de anemia megaloblástica: medula
óssea hipercelular (três séries), reactiva, com aspectos megaloblastóides e
sinais de eritropoiese ineficaz. O doseamento sérico de Cbl 115 pg/ml (250-1100
pg/ml) confirmou a carência de Cbl.
Com base nestes achados foi diagnosticada deficiência de Cbl por deficiência
nutricional numa criança em aleitamento materno exclusivo.
Foi medicada com Cbl, durante três meses, inicialmente intramuscular (50 µg/
dia) e depois por via oral. Ao sétimo dia de terapêutica verificou-se resposta
reticulocitária, com melhoria franca dos valores hematológicos. Observou-se
melhoria da hipotonia, recuperação das aquisições psicomotoras e progressiva
normalização da pigmentação cutânea. Iniciou diversificação alimentar com
sucesso, com introdução progressiva de papas, sopas, fruta e produtos de origem
animal nomeadamente carne, peixe e ovos. Gatinhou aos nove meses, adquiriu
marcha autónoma aos 14 e aos 28 meses subia e descia escadas. Actualmente, com
quatro anos de idade, tem um regime alimentar equilibrado adequado à sua idade,
com um desenvolvimento estaturo-ponderal no P75: corre em bicos dos pés e tem
um discurso completamente inteligível.
A investigação realizada à mãe evidenciou anemia ferropénica e défice de Cbl.
O seu regime alimentar caracterizava-se por um aporte inadequado de produtos de
origem animal. Foi encaminhada para consulta de Medicina Interna, a que faltou
repetidamente.
DISCUSSÃO
A cobalamina é sintetizada exclusivamente por microrganismos, encontrando-se em
grandes quantidades nos produtos lácteos, fígado, carne, ovos, crustáceos e
peixe, estando ausente na fruta, legumes e cereais, o que explica a sua
carência frequente nos vegetarianos estritos.(3,7,8,10,11) A necessidade diária
de Cbl na criança é de 3 µg/dia.(7)
Contrariamente ao que acontece no adulto, os lactentes com carência de Cbl
podem ser sintomáticos em poucos meses, devido à sua pequena reserva hepática.
(1,3,4,8)Nos primeiros meses de vida a sintomatologia é inespecífica. Das
manifestações neurológicas destaca-se o atraso ou regressão no desenvolvimento,
apatia e hipotonia, presentes neste caso. Pode-se encontrar ainda
irritabilidade, ataxia, tremor e convulsões.
A deficiência de Cbl induz alterações como a desmielinização, degeneração
axonal e morte neuronal.(2,5,11) Contrariamente ao adulto, que apresenta
atingimento do sistema nervoso periférico, na criança em desenvolvimento,
parece haver um envolvimento predominante do sistema nervoso central com atraso
ou regressão nas aquisições psicomotoras.(11)Do ponto de vista hematológico
pode haver anemia, trombocitopenia e leucopenia.(5)Dos sintomas
gastrointestinais destaca-se anorexia, diarreia e glossite.(10) A
hiperpigmentação cutânea, como no caso descrito, é uma forma de apresentação
rara.(5)O mecanismo exacto da hiperpigmentação é desconhecido mas,
provavelmente, está relacionado com os níveis de tirosinase, enzima envolvida
na melanogénese, que se encontra aumentada, resultando em hipermelanose.(5)
No caso clínico apresentado, o diagnóstico foi sugerido pela associação de
sintomas neurológicos (apatia, hipotonia e perda de aquisições psicomotoras) e
anemia macrocítica grave arregenerativa (com reticulócitos baixos). A elevação
de LDH é sugestiva de destruição intramedular.(15)A presença de neutrófilos com
núcleos hipersegmentados(10) e os aspectos megaloblastóides encontrados no
mielograma apoiaram essa suspeita, confirmada pelo doseamento de Cbl na criança
e na mãe.
O doseamento de ácido metilmalónico e propionilcarnitina foi feito, no nosso
caso, no cartão de Guthrie,a posteriori, e foi normal. Este facto pode ser
explicado por carência vitamínica discreta na mãe, o que permitiu alguma
reserva fetal durante a gestação.
A deficiência de cobalamina deve ser sempre considerada no diagnóstico
diferencial das situações clínicas na infância com sintomas neurológicos como a
regressão psicomotora, perturbações adquiridas do movimento, tremor, convulsões
e apatia, principalmente se associadas a anemia megaloblástica e má progressão
estaturoponderal, mesmo nos casos em que a mãe não apresente anemia e siga um
regime alimentar aparentemente adequado.(1,2)
É difícil afirmar que uma carência numa etapa tão crucial do desenvolvimento
não tenha consequências no desenvolvimento destas crianças, mas em geral a
resposta clínica e laboratorial à terapêutica instituída é rápida e
aparentemente favorável. O prognóstico neurológico a longo prazo parece
depender da idade de início e da duração dos sintomas neurológicos.
(2,3,5,8,11,13,14) O diagnóstico e tratamento precoce do défice de Cbl pode
evitar a lesão cerebral permanente e depende da correcta avaliação da história
nutricional da mãe e da criança.(2,5,6)
Nas mulheres vegetarianas ou com consumo escasso de carne e de outros produtos
de origem animal, parece sensato o suplemento com Cbl.(3,15)