Caso electroencefalográfico
CASO CLÍNICO
Apresenta-se o caso de uma criança do sexo masculino referenciada à consulta de
Epilepsia aos 11 anos por suspeita de crises epilépticas durante o sono. Aos 10
anos começou a apresentar episódios estereotipados, maioritariamente nocturnos,
durante o sono, descritos como de postura sustentada em extensão dos membros
superiores e inferiores, com punhos cerrados, acompanhados por cianose e
sialorreia, com duração de 10-15 segundos, seguidos por respiração rápida e
profunda durante 5-10 segundos, após o que voltava a adormecer. Menos
frequentemente, tinha episódios semelhantes durante a vigília, com queda,
seguidos de breve período de confusão. A frequência dos episódios era variável,
de um cada duas semanas até quatro por noite. Os episódios nocturnos
aconteciam, quer ao início da noite, quer de madrugada. Tinha sido medicado com
valproato de sódio e clobazam no hospital da área de residência, sem
modificação da frequência destes episódios. Na mesma altura tinha iniciado
alterações do comportamento, tornando-se opositivo, reivindicativo e agressivo
verbalmente, e por vezes fazia furtos. Por esta razão, foi medicado com
imipramina e valeriana, que foram entretanto retirados.
Dos antecedentes pessoais, destaca-se aos oito anos a ocorrência de uma queda
de bicicleta com traumatismo craniofacial e provável perda de consciência, que
motivou a realização de tomografia axial computorizada (TAC) cranioencefálica,
que excluiu lesões endocranianas. Os antecedentes perinatais eram irrelevantes
e o desenvolvimento psicomotor era normal. No entanto, tinha dificuldades na
aprendizagem, com fraco aproveitamento escolar e retenção no 6º ano. Não havia
história prévia de convulsões febris ou afebris, nem de infecção do sistema
nervoso central. Sem história familiar de crises epilépticas.
O exame neurológico era normal. A avaliação neuropsicológica revelou défice de
planeamento, dificuldade em terminar tarefas, preserveração e falta de
iniciativa motora. A avaliação psiquiátrica revelou dificuldades de
concentração, atenção e cumprimento de regras, bem como impulsividade.
Qual o seu diagnóstico?
Que exames complementares solicitava?
Pela anamnese os episódios sugeriam crises epilépticas tónicas, sem fenómenos
lateralizadores. Realizou monitorização com vídeo-EEG, na qual foi registada
durante o sono, uma crise tónica assimétrica, com contracção da face e membros,
elevando o membro superior esquerdo e mantendo postura sustentada do direito,
seguindo-se pedalagem do membro inferior esquerdo e agitação (Figura 1). Do
ponto de vista eléctrico, imediatamente antes da crise, observaram-se ondas
lentas e algumas ondas abruptas hemisféricas direitas, seguidas por atenuação
generalizada da actividade eléctrica; posteriormente, actividade beta frontal
bilateral (actividade recrutante e/ou de origem muscular) (Figura 2). Seguiram-
se ondas teta rítmicas antero-laterais direitas (Figura 3) e no pós-crítico
actividade lenta delta lateralizada à direita (Figura 4). O traçado interictal
durante o sono revelou actividade paroxística focal anterior direita e por
vezes bifrontal, pouco abundante. A RM cerebral foi normal.
FIGURA 1 - Sequência da crise epiléptica registada na monitorização video-EEG
Montagem nas figuras 2 a 4. Sensibilidade 70 µV/mm; TC 0,1 s; HF 15 Hz.
FIGURA 2 - Antes da crise observam-se ondas lentas com raros componentes
abruptos nas derivações direitas (círculos), depois atenuação generalizada
(traços verticais) e ritmos rápidos bifrontais (rectângulos).
FIGURA 3 - Decorrer da crise: ondas lentas, teta, rítmicas, fronto-temporais
direitas
FIGURA 4 - Fim da crise: sequências de ondas delta hemisféricas direitas.
A WISC-III revelou QI global de 66 (QI verbal de 78, QI de realização 65). O
questionário Conners para os pais e professores revelou pontuações superiores a
2 desvios padrão.
Iniciou substituição da medicação antiepiléptica por oxcarbazepina, com
remissão completa das crises. A prescrição de metilfenidato resultou em franca
melhoria comportamental e ligeira melhoria do aproveitamento escolar.
Actualmente tem 13 anos de idade e mantém a terapêutica e seguimento em
consultas de Neuropediatria e Pedopsiquiatria.
DISCUSSÃO
A observação dos eventos motores paroxísticos nocturnos através de filmagens e
o vídeo-EEG durante o sono são fundamentais para o diagnóstico correcto, uma
vez que se impõem diagnósticos diferenciais cujas manifestações são por vezes
difíceis de caracterizar através da anamnese. Entre estes incluem-se as crises
epilépticas, parassónias do sono não REM, parassónias do sono REM, mioclonias
hipnagógicas e hipnopômpicas, mioclonias proprioespinais, movimentos periódicos
das pernas, vocalizações isoladas durante o sono, caimbras nocturnas dos
membros inferiores, body rocking e head banging. Algumas características
que apontam para a natureza epiléptica dos episódios são: 1) episódios
marcadamente estereotipados; 2) vários episódios na mesma noite; 3) ocorrência
na fase 1 ou 2 do sono NREM; 4) episódios semelhantes durante vigília; 5)
posturas distónicas ou movimentos bizarros como pedalagem; 6) duração inferior
a dois minutos; 7) persistência dos eventos vários anos após início da idade
adulta.(1)
De acordo com o glossário para descrição das crises epilépticas da Liga
Internacional Contra a Epilepsia,(2) as crises observadas neste caso são focais
motoras com componente motor tónico assimétrico e automatismos hipercinéticos.
Esta semiologia das crises, juntamente com o facto de ocorrerem
predominantemente durante o sono e de existirem défices de atenção, de
planeamento e executivos, sugere epilepsia do lobo frontal. A semiologia
atribuída às crises frontais varia de acordo com a localização do foco
epileptogéneo: lobo frontal dorsolateral (inclui lobo central, área pré-
motora e área pré-frontal), lobo frontal mesial e lobo frontal basal.(3) Os
resultados de estudos neurofisiológicos demonstram que a estimulação eléctrica
cortical unilateral da área suplementar sensoriomotora, localizada na região
frontal mesial, produz contracção tónica bilateral assimétrica dos músculos
axiais e dos membros bem como sintomas sensitivos bilaterais.(4) Estes achados
estão de acordo com a análise de vídeo-EEG de crises com origem na região
frontal mesial.(5) Habitualmente os doentes permanecem sem resposta a estímulos
externos mas não perdem a consciência, embora crises mais prolongadas possam
provocar amnésia e confusão pós-ictal. Os automatismos hipercinéticos
(movimentos complexos, amplos e repetitivos que envolvem o tronco e segmentos
proximais dos membros) que o doente apresentou no decurso da crise são também
característicos de crises frontais e as regiões que tipicamente produzem estas
manifestações são as áreas pré-frontal e orbitofrontal. O EEG ictal foi capaz
de lateralizar o início da crise ao hemisfério direito, mas com o decurso da
crise a actividade muscular impediu a interpretação da actividade eléctrica
cerebral. O EEG interictal mostrou actividade paroxística bilateral com ligeiro
predomínio direito. Tanto a semiologia ictal como a análise do EEG permitiram
dirigir a análise da RM cerebral, com especial atenção aos lobos frontais, em
busca de lesões como sequelas pós-traumáticas ou malformações do
desenvolvimento cortical, ausentes neste doente.
O diagnóstico etiológico neste caso permanece por esclarecer. Coloca-se a
hipótese de se tratar de uma epilepsia lesional pós-traumática, uma vez que
houve traumatismo com perda de consciência três anos antes do início das
crises. Um estudo recente de base populacional demonstrou um aumento de cerca
de duas vezes do risco de desenvolvimento epilepsia em crianças entre os cinco
e os 15 anos que haviam sofrido traumatismo craniano ligeiro a moderado
(concussão, sem lesão endocraniana), comparando com crianças sem traumatismo
craniano. Este risco revelou-se mais elevado no primeiro ano após o
traumatismo.(6)Outra hipótese diagnóstica a considerar é a epilepsia nocturna
do lobo frontal (NFLE) esporádica, que se caracteriza por início na infância,
episódios com posturas distónicas paroxísticas, acordares paroxísticos com
automatismos hipercinéticos, exame neurológico normal, exames de imagem
cerebral normais e resposta favorável aos antiepilépticos (nomeadamente
carbamazepina).(7)Foi descrita a associação de défices cognitivos e
manifestações psiquiátricas em doentes com NFLE, mas parecem ser mais comuns
nas formas autossómicas dominantes (ADNFLE).(8)
A confirmação da origem focal das crises corroborou a substituição do fármaco
antiepiléptico, o que resultou na remissão completa das crises. O seguimento
por Pedopsiquiatria, a medicação com metilfenidato e provavelmente o controlo
da epilepsia permitiram uma melhoria comportamental.