Luxação congénita do joelho: que abordagem? Revisão teórica e experiência de um
Hospital Pediátrico
INTRODUÇÃO
A luxação congénita do joelho é uma anomalia rara que se integra no grupo das
deformidades de hiperextensão do joelho, sendo característico desta patologia o
deslocamento anterior da tíbia em relação ao fémur com graus variáveis de perda
de contacto entre estas duas superfícies articulares. Foi descrita pela
primeira vez por Chatelain, em 1822, na Suíça, citado por Shattock em 1891(1).
Apresenta uma incidência de 1:100000 nados-vivos, cerca de 1% da incidência da
doença displásica da anca (DDA). A maioria ocorre de forma esporádica, com
alguns casos familiares. Segundo Jacobsen e Vopalecky, é mais comum no sexo
feminino, na proporção de 10:3(2). Um terço dos casos é bilateral, e os
restantes com igual atingimento à direita e esquerda. Associa-se com frequência
(60%) a outras anomalias músculo-esqueléticas(3), sendo as mais comuns a DDA e
o pé equino-varo.
Diagnóstico_e_classificação
Em geral, o diagnóstico é estabelecido imediatamente após o nascimento através
do exame objectivo detalhado. À inspecção torna-se evidente o característico
deslocamento anterior da extremidade proximal da tíbia em relação aos condilos
femurais, permitindo a sua classificação em 3 graus(4,5) (Anexo_1):
I - Genus recurvatum: Hiperextensão do joelho superior a 15º; conservada a
capacidade de flexão completa;
II - Subluxação anterior da tíbia sobre o fémur: Hiperextensão do joelho
superior a 15º; flexão limitada do joelho a partir da posição neutra;
resistência ou instabilidade à flexão;
III - Luxação anterior: Joelho luxado anteriormente, normalmente sem flexão e
instável (casos quase sempre cirúrgicos)
As ecografias pré-natais podem fazer suspeitar o diagnóstico ao mostrar
espessamento focal na área de fibrose do músculo quadricípete e uma área
anormal, hiperecogénica na porção distal deste músculo(6). O exame radiológico
pode auxiliar a avaliação da forma dos condilos femurais e tibiais e das suas
relações, sendo a RMN um bom exame para avaliar o grau de fibrose do
quadricípete e os ligamentos, sobretudo nos casos de luxação anterior (grau
III).
Tratamento_e_prognóstico
O tratamento pode ser conservador ou cirúrgico. A escolha depende da gravidade
da luxação, idade do paciente e da presença de outras deformidades associadas.
O objectivo é obter uma capacidade de flexão mínima de 90º, independentemente
do tipo de intervenção.
Tratamento conservador:
Tratamento imediato, idealmente nas primeiras 24-48 horas de vida. Redução da
luxação através de manipulações de tracção suaves e vários movimentos de flexão
passiva dos joelhos, posteriormente imobilizados com uma tala sintética ou
aparelho gessado cruro-podálico, na posição de flexão conseguida (maior grau de
flexão possível). Ressalva-se especial atenção com eventuais fracturas ou
deslocamentos epifisários da tíbia proximal em manipulações mais vigorosas
que darão a impressão de flexão, tratando-se evidentemente de deformidade da
lesão. Esta manobra deverá ser repetida semanalmente até a obtenção da completa
flexão articular e a imobilização gessada tubular, geralmente é mantida durante
seis semanas.
Tratamento cirúrgico:
Recomendado nos casos de deformidades graves ab initio(geralmente grau III),
diagnóstico tardio ou falência do tratamento conservador (mais de três meses de
tratamento conservador sem evidência de redução da luxação ou flexão articular
mínima de 45º). As técnicas cirúrgicas mais utilizadas na correcção da LCJ são
a quadricíplastia aberta mais capsulotomia anterior pela técnica de Ficher ou a
secção percutânea do quadricipete pela técnica de Roy e Crawford(7). O
tratamento cirúrgico deve ser realizado antes do início da marcha, idealmente
antes dos seis meses de idade(8). Na presença de outras deformidades
associadas, o joelho deve ser tratado em primeiro lugar, seguido do pé e
finalmente da anca.
OBJECTIVOS
Os autores relatam a sua experiência no tratamento da LCJ e os resultados
favoráveis obtidos nos casos submetidos a redução conservadora imediata nas
primeiras horas de vida.
MATERIAL E MÉTODOS
Realizou-se uma análise retrospectiva dos processos clínicos dos doentes com o
diagnóstico de LCJ, tratados no Serviço de Ortopedia Pediátrica na Unidade
Maria Pia, CHP entre 1 de Janeiro de 1992 e 31 de Dezembro de 2008. Os
parâmetros avaliados e que motivaram e o tipo de intervenção terapêutica foram
a idade de apresentação, gravidade da luxação e presença de outras deformidades
musculo-esqueléticas associadas.
RESULTADOS
Os autores apresentam quatro casos de luxação congénita do joelho (sete
joelhos): três tratados por métodos conservadores e apenas um submetido a
tratamento cirúrgico.
CASOS CLÍNICOS
Caso 1
Recém-nascido (RN) do sexo feminino, nascida a 2/8/1992. Antecedentes
obstétricos e pré-natais irrelevantes, com ecografias pré-natais relatadas como
normais. Gestação de termo. Apresentação de pelve. Parto por cesariana.
Síndrome polimalformativo detectado ao nascimento, caracterizado por luxação
bilateral dos polegares, ancas e joelhos (grau II) e pés equino varos. Outros
estigmas malformativos associados: microftalmia, boca em tenda, implantação
baixa dos pavilhões auriculares, choro débil. CIV do septo trabeculado, grande.
O diagnóstico final foi compatível com Síndrome de Larson.
Doente referenciada a Ortopedia com um mês de vida (Figura 1.1). Por
impossibilidade de tratamento conservador com aquela idade, foi submedida
redução cirúrgica de LCJ bilateral tendo realizado quadricíplastia aberta pela
técnica de Ficher e capsulotomia anterior (Figura 1.2). Posteriormente foi
submetida a correcção cirúrgica de pé boto equino varo bilateral; luxação
congénita da anca bilateral; luxação congénita da metacarpo falângica do
polegar bilateral. Actualmente apresenta marcha autónoma com ortótese (Figuras
1.3 e 1.4).
Figura 1.1' Primeira consulta de Ortopedia, com 1 mês de vida.
Figura 1.2' Após redução cirúrgica dos 2 joelhos (joelho direito aos 3 meses e
joelho esquerdo aos 7 meses).
Figura 1.3' Evolução: Cicatrizes perna direita.
Figura 1.4' Com aparelho bota. Marcha autónoma.
Caso 2
RN do sexo masculino, nascido a 14/11/2007. Apresentação cefálica. Parto
eutócico às 38 semanas. Síndrome polimalformativo suspeito em ecografia e
ressonância magnética fetal, confirmado ao nascimento, caracterizado por
luxação bilateral dos joelhos, pé equinovaro bilateral, displasia da anca
esquerda, assimetria da mandíbula e retrognatia (Figura 2.1).
Figura 2.1' Primeira consulta de Ortopedia, com 1 dia de vida.
Referenciado a Ortopedia no primeiro dia de vida tendo sido submetido a redução
imediata da luxação congénita dos joelhos (grau III) (Figuras 2.2 e 2.3),
posteriormente estabilizados com tala gessada em flexão. Joelhos reduzidos
estáveis, aos 30 dias de vida (Figura 2.4). Outros tratamentos do foro
ortopédico envolveram manipulações e gessos do pé equino varo bilateral,
manipulações do polegar na palma bilateral e colocação de tala de Koszla (em D5
de vida) por luxação congénita da anca (LCA) bilateral. Actualmente sem marcha,
com doença neuromuscular em investigação.
Figura 2.2' Primeira consulta de Ortopedia. Após redução à direita.
Figura 2.3' Primeira consulta de Ortopedia. Após redução bilateral.
Figura 2.4' Evolução, com 30 dias de vida: joelhos reduzidos estáveis.
Caso 3
RN do sexo feminino, nascida a 29/10/2007. Antecedentes obstétricos e pré-
natais irrelevantes. Ecografias pré-natais relatadas como normais. Gestação de
termo. Apresentação cefálica. Parto eutócico.
Luxação congénita do joelho direito (grau III) detectada ao nascimento (Figura
3.1) tendo sido excluídas outras deformidades.
Figura 3.1' Apresentação clínica em D1 de vida.
Referenciada a Ortopedia no primeiro dia de vida. Submetida a redução imediata
da luxação. Colocada tala gessada em flexão. Aos nove dias de vida, com joelho
reduzido estável, confirmado radiologicamente (Figuras 3.2 e 3.3). Às seis
semanas de vida, curada, com ressonância magnética do joelho: normal.
Figura 3.2' Rx de controlo do joelho pós-redução (D9).
Figura 3.3' Apresentação clínica pós-redução (D9).
Caso 4
RN do sexo feminino, nascida a 29/10/2007. Antecedentes obstétricos e pré-
natais irrelevantes. Ecografias pré-natais relatadas como normais. Gestação de
termo. Apresentação cefálica. Parto eutócico.
Luxação congénita bilateral dos joelhos, grau I, detectada ao nascimento, tendo
sido excluídas outras deformidades.
Referenciada a Ortopedia no primeiro dia de vida (Figura 4.1). Submetida a
redução imediata da luxação, conformado radiologicamente. Colocada tala gessada
em flexão. Aos dois meses de vida, com joelho reduzido estável e evolução
favorável (imagens não disponíveis).
Figura 4.1' Apresentação clínica em D1 de vida.
DISCUSSÃO
A LCJ é uma anomalia rara que se caracteriza do ponto de vista anátomo-
patológico por uma contractura do mecanismo extensor do músculo quadricipete e
da cápsula anterior da articulação do joelho, aderências intra-articulares,
hipoplasia ou ausência de rótula (que se começa a formar depois de reduzida a
luxação) e deslocamento anterior dos tendões e músculos flexores, que agem como
extensores.
A etiologia é desconhecida. Sugerem-se várias possíveis causas, nomeadamente
intrínsecas (genéticas ou displásicas) e extrínsecas (mecânicas), podendo ambas
coexistir no mesmo doente(9). As causas intrínsecas incluem doenças específicas
dos músculos ou nervos, ou manifestação de laxidez ligamentar generalizada(10),
de que são exemplo: síndrome de Ehlers-Danlos, síndrome de Larsen,
artrogriposis multiplex congénita e anomalias cromossómicas múltiplas
(trissomias do cr.9 e 21, monossomias e trissomias parciais, tetrassomia
parcial 9p, e cromossomas em anel 13,14 e 18); As causas extrínsecas incluem o
mau posicionamento fetal, apresentação de pelve, a contractura do músculo
quadricípete e outros.
A LCJ representa um desafio terapêutico. Apesar de não ser consensual(11), a
maioria dos autores defende que, de um modo geral, as deformidades de
hiperextensão do joelho devem ser corrigidas logo após o nascimento. Nessa
fase, existe maior elasticidade ligamentar, o que facilita o tratamento, impede
o agravamento natural da deformidade e melhora o prognóstico(5). O tratamento
deve ser precoce e iniciar-se pelos métodos conservadores. Este tem melhor
prognóstico, ao garantir um movimento articular final mais estável e amplo e
maior força muscular quadricipital. A dificuldade de redução aumenta com o
número de horas passadas após o nascimento. As formas de LCJ de intervenção
ortopédica mais tardia ou irredutíveis ab initiosão as que apresentam maior
consensualidade em termos de atitude terapêutica, envolvendo técnicas de
correcção cirúrgica.
A experiência dos autores foi concordante com um artigo recente que relata o
benefício no tratamento conservador imediato nas primeiras horas de vida. C.
Cheng et al (2010), descrevem a experiencia em 19 casos de LCJ tratados com
redução precoce nas primeiras 24 horas de vida, idealmente nas primeiras oito.
Esses doentes responderam favoravelmente ao tratamento precoce, cujo seguimento
em 4,3 anos mostrou uma evolução funcional normal do joelho afectado, sem
complicações. Essa revisão parece ter sido a primeira a ser publicada
demonstrando uma técnica que já era aplicada no Serviço de Ortopedia do nosso
hospital. Com efeito, os resultados apresentados nessa revisão são comparáveis
aos obtidos em três casos da nossa experiência, envolvendo redução imediata nas
primeiras 24-48h de vida. Esta redução fechada (closed reduction)(12)
tecnicamente é descrita como emprego de manipulações suaves, em tracção, onde
são aplicadas duas forças simultâneas: uma aplicada à porção posterior e distal
do fémur dirigida para a frente e a outra aplicada à porção anterior e proximal
da tíbia dirigida para trás. Na nossa experiência a redução manual deve ser
progressiva, de hora a hora, até obtenção do ângulo mínimo de 90º.
Posteriormente é feita a estabilização da extremidade imobilizada com uma tala
gessada. Não se verificou necessidade de colocação de talas gessadas seriadas,
uma vez que a redução completa da luxação foi alcançada num primeiro tempo.
Nos dois primeiros casos, apesar de se tratar de síndromes polimalformativos a
atitude conservadora foi eficaz na redução da luxação no caso 2. O timingde
referenciação acabou por ditar o tipo de abordagem, independentemente do tipo e
gravidade da patologia de base. É importante excluirmos malformações
coexistentes uma vez que é uma associação significativa e com implicações
terapêuticas.
COMENTÁRIOS
O principal valor desta revisão consiste na sua contribuição para apresentação
e abordagem de uma anomalia congénita rara, com poucas referências na
literatura científica actual. Considerou-se igualmente interessante, o sucesso
e a experiência demonstrada através da intervenção terapêutica mínima,
conservadora.
Como palavra final, os autores salientam a importância da redução imediata da
LCJ nas primeiras horas de vida como fronteira de atitude terapêutica e
prognóstico, onde o Pediatra pode assumir um papel determinante no
reconhecimento e referenciação atempadas. Destacam a importância do exame
ortopédico completo, para exclusão de outras deformidades associadas e a
aparente irrelevância da patologia de base para o sucesso do tratamento
conservador precoce.