Recorrência do refluxo gastro-esofágico após fundoplicatura em crianças
INTRODUÇÃO
A doença do refluxo gastro-esofágico (DRGE) é definida como o conjunto de efeitos
patológicos da passagem involuntária de conteúdo gástrico para o esófago (1).
Na população pediátrica, a DRGE tem uma variedade grande de formas de
apresentação, incluindo: vómitos persistentes, atraso no crescimento, dor
abdominal ou pirose, hemorragia gastrointestinal, disfagia e broncospasmo
(2). Quando à DRGE se associa a presença de hérnia do hiato ou quando a
terapêutica médica falha, o tratamento indicado é a cirurgia anti-refluxo (3). A
fundoplicatura de Nissen (aberta ou laparoscópica) é uma das cirurgias mais
realizadas por cirurgiões pediatras (Figura 1) (4). A primeira fundoplicatura
de Nissen laparoscópica foi realizada no adulto em 1991, e 2 anos depois, na
criança (5).
Figura 1' Imagem endoscópica de uma fundoplicatura de Nissen, com as típicas
pregas do fundo gástrico torcidas à volta do endoscópio em retroversão.
A incidência de recorrência do refluxo gastro-esofágico (rRGE) em doentes
submetidos a procedimentos anti-refluxo varia entre 3,2% e 45% (6, 7). Vários
factores de risco para rRGE têm sido apontados: compromisso neurológico grave,
existência de patologia pulmonar prévia, idade precoce, história de mal-
formações esofágicas congénitas, presença de hérnia do hiato, vómito forçado
(retching) pós-operatoriamente, a colocação de gastrostomia prévia ou durante a
cirurgia anti-refluxo e a necessidade de dilatações no período pós-operatório
(8-13). No entanto, os estudos publicados não são concordantes na definição dos
factores mais determinantes, nem sobre a estratégia a determinar nesses casos
específicos (13).
O objectivo deste estudo foi perceber em que doentes submetidos a cirurgia
anti-refluxo será mais provável a recorrência da doença e porquê, de forma a
saber se existe alguma sub-população de doentes que mereça uma abordagem
alternativa à fundoplicatura de Nissen.
MATERIAL E MÉTODOS
Foi realizada uma análise retrospectiva dos processos dos doentes submetidos a
fundoplicatura de Nissen entre Fevereiro de 2000 e Março de 2009, no nosso
Hospital Pediátrico. Os doentes foram distribuídos por dois grupos: doentes com
recorrência da doença (rRGE) e os doentes sem rRGE (controlo). Os critérios de
inclusão no grupo de rRGE foram: re-operação por recorrência do RGE, RGE
confirmado por endoscopia alta ou outro exame auxiliar de diagnóstico,
reinstituição de terapêutica anti-refluxo por mais de 8 semanas após a cirurgia.
Os dois grupos foram posteriormente comparados quanto ao sexo, idade e
percentil de peso à data da cirurgia, à presença de hérnia do hiato ou outras
comorbilidades, à presença de compromisso neurológico grave, à história de
convulsões, de medicação pulmonar crónica, de necessidade de O2 e/ou
antibióticos cronicamente no período pré-operatório, à técnica usada (aberta ou
laparoscópica), à colocação de gastrostomia (prévia ou simultaneamente). Para
efeitos de comparação estatística foi usado o teste exacto de Fischer,
considerando-se significado estatístico quando p<0,05.
RESULTADOS
Durante o período em análise, 65 crianças foram submetidas a fundoplicatura de
Nissen na nossa Instituição. Dez doentes foram incluídos no grupo rRGE, o que
equivale a uma incidência de recorrência de 15,4%. Destes, dez tinham exames
auxiliares de diagnóstico que mostravam a rRGE, dez necessitaram de retomar
medicação anti-refluxo e três foram reoperados por rRGE. Todas as revisões de
fundoplicatura foram realizadas por via laparotómica.
Os parâmetros comparados estão resumidos no Quadro 1. Nenhum dos doentes em
rRGE tinha doença muscular ou doença cardíaca.
Quadro I ' Comparação entre doentes com recorrência da doença (rRGE) e os
doentes sem rRGE (controlo).
DISCUSSÃO
Os factores de risco para recorrência de DRGE têm sido alvo de um intenso
debate. Tem sido genericamente aceite que crianças com compromisso neurológico
grave, que representam 24-54% dos doentes pediátricos submetidos a
fundoplicatura, têm um risco maior de rRGE (2). No entanto, alguns estudos
recentes apontam para o facto de o compromisso neurológico grave não ser um
factor de risco independente para rRGE, sendo-o apenas quando associado a
convulsões (12, 14). Em 2007, Ngerncham et al. levaram a cabo um estudo
retrospectivo de 116 casos e 209 controlos emparelhados para o cirurgião, para
o tipo de procedimento (aberto/laparoscópico), técnica (parcial/completa), e
data aproximada da intervenção (13). Este estudo concluiu que são factores de
risco independente para rRGE a idade menor que 6 anos, a presença de hérnia do
hiato, o vómito forçado pós-operatório e a dilatação esofágica. Mais, o estudo
afirma que o compromisso neurológico não é só por si um factor de risco para
rRGE.
O objectivo principal do nosso estudo foi perceber se, na nossa população,
alguns dos factores descritos representam risco para rRGE. Não foi incluído
nos parâmetros avaliados o vómito forçado pós-operatório. Este conceito
traduzido do Inglês retching é um comportamento mal definido, que parece ter
origem neurológica central e é comum nos doentes neurológicos graves, quer pré-
quer pós-operatoriamente (15). Na maioria das vezes ele é confundido com
engasgamento ou expressões faciais de dor e é desvalorizado pelos pais e pelos
clínicos. Daí que, não poderíamos afirmar com certeza que eles não existissem
só pelo facto de não os vermos registados no processo clínico.
A taxa de incidência de rRGE encontrada no nosso estudo (15,4%) é baixa. Se
tivermos em conta apenas os doentes neurologicamente comprometidos operados
(n=48), a taxa de incidência de rRGE é de apenas 12,5%. Por outro lado, a taxa
de incidência naqueles que necessitaram gastrostomia (n=12) sobe para 41,7%.
Estes valores não surpreendem, pois não diferem do que é referenciado na
literatura (6, 7, 15).
No nosso estudo, foi apenas possível estabelecer uma relação com significado
estatístico (p<0,05) entre rRGE e a colocação de gastrostomia prévia ou
simultaneamente à fundoplicatura (Figura 2). Jolly et al. relacionam a
colocação de tubo de gastrostomia com alterações nas pressões do esfíncter
esofágico inferior e que estas poderiam ser a causa do aumento de RGE (11).
Noutro estudo, os autores sugerem mesmo a confecção de uma fundoplicatura
profiláctica nos doentes com gastrostomia (16). Este procedimento está longe de
ser consensual, havendo vários autores que defendem que o procedimento aumenta
a morbilidade cirúrgica, devendo ser reservado aos doentes que mantêm RGE após
a colocação do tubo de gastrostomia (17).
Figura 2 ' Imagem endoscópica de uma hérnia do hiato vista através de um
endoscópio introduzido através da gastrostomia.
Por outro lado, a necessidade de gastrostomia pode ser vista como um sinal
indirecto da gravidade do compromisso neurológico. Analisando os dados
recolhidos não foi possível graduar o compromisso neurológico, mas a
necessidade de gastrostomia reflecte uma incapacidade na deglutição que
geralmente está presente nos casos mais graves. Para estes doentes, Morabito et
al. recomendam a dissociação esofago-gástrica total (DEGT) (18). Esta técnica,
que consiste na secção da junção esofago-gástrica com posterior anastomose do
esófago distal a uma ansa de jejuno em Y de Roux, tem uma pequena percentagem
de complicações e uma incidência de rRGE de 0%. No entanto, trata-se de uma
cirurgia mais longa e agressiva do ponto de vista cirúrgico, exigindo três a
cinco dias de internamento até a alimentação ser restabelecida pela sonda de
gastrostomia. Recentemente, Boubnova et al. conseguiram fazer este
procedimento, também chamado de procedimento de Bianchi, por via laparoscópica
em duas crianças (20). Esta poderá ser uma boa opção em crianças
neurologicamente comprometidas com RGE dependentes de sonda de gastrostomia
para alimentação.
CONCLUSÕES
A fundoplicatura de Nissen tem uma pequena incidência de rRGE. Esta é maior nos
doentes a quem foi colocada gastrostomia prévia ou simultaneamente. Esta pode
ser interpretada como um sinal indirecto de um compromisso neurológico mais
grave, embora não fosse encontrado significado estatístico para os restantes
parâmetros comparados. Serão necessários mais estudos e com um maior número de
casos para conclusões mais seguras.