Tuberculose e cancro: pior que um só dois!
INTRODUÇÃO
A tuberculose, que adquiriu maior importância nos últimos anos pela resistência
aos fármacos e pela predilecção pelos imunodeprimidos (1), é uma preocupação
global (1,2). A sua incidência crescente tem sido atribuída à infecção pelo
vírus da imunodeficiência humana, imigração, más condições sociais e menor
implementação dos programas de controlo (2,3). A doença pulmonar primária é a
forma mais comum de apresentação da tuberculose activa (1). A tuberculose
esquelética é pouco comum e representa 10 a 20% das formas extrapulmonares e 1
a 2% de todos os casos de tuberculose (2). No doente imunodeprimido, esta
forma é mais frequente podendo estar presente, de modo isolado ou em associação
com tuberculose pulmonar, em quase metade dos casos (4). O seu diagnóstico
diferencial inclui uma multiplicidade de infecções (bacterianas, víricas e
fúngicas), doenças autoimunes e neoplásicas, entre outras (1), pelo que um
elevado índice de suspeição é essencial para o diagnóstico precoce e para o
tratamento e cura da doença (2). Os autores apresentam o caso clínico de uma
criança com doença oncológica na qual, durante o tratamento com quimioterapia,
a infecção pelo Mycobacterium tuberculosis foi considerada como causa possível
de queixas osteoarticulares de novo. Discutem-se as dificuldades
diagnósticas, nomeadamente no que respeita ao diagnóstico diferencial com
doença metastática.
CASO CLÍNICO
Criança do sexo feminino, cinco anos, raça caucasiana, natural e residente em
Vila Nova de Gaia. Antecedentes patológicos, pessoais e familiares,
irrelevantes. Em Novembro de 2008 é referenciada pelo hospital da área de
residência para o Instituto Português de Oncologia Francisco Gentil ' Porto
(IPOPFG) por massa retroperitoneal, com o diagnóstico subsequente de
nefroblastoma do pólo superior do rim direito; o estadiamento revela tratar-se
de doença localizada. Inicia quimioterapia neo-adjuvante com actinomicina D e
vincristina de acordo com o protocolo da International Society of Paediatric
Oncology (SIOP) de 2001. Subsequentemente realiza exérese cirúrgica que inclui
nefroureterectomia direita. O exame anátomo-patológico revela nefroblastoma de
risco intermédio, do tipo regressivo no estadio III, com base na classificação
pós-tratamento, o que traduz uma boa resposta à quimioterapia num tumor
localmente avançado. Prossegue tratamento com quimioterapia sistémica
(actinomicina D, vincristina e doxorrubicina) e radioterapia do leito tumoral.
Em Abril do ano seguinte, em consulta de seguimento, refere dor na região
inguinal direita e claudicação da marcha, de carácter intermitente. O exame
objectivo revela dor desencadeada pela rotação interna da articulação
coxofemural direita. Considerando o carácter intermitente das queixas, adopta-
se uma atitude expectante. Na reavaliação após dois meses observa-se
persistência da claudicação da marcha, ainda intermitente, nesta altura
associada a dor na região anterior e proximal da perna direita. O exame
objectivo demonstra dor à palpação da metade proximal da tíbia direita. Face à
persistência das queixas, colocam-se como principais hipóteses de diagnóstico:
doença óssea metastática, artrite reactiva, infecção osteoarticular e neoplasia
primária musculo-esquelética. É realizado estudo complementar analítico,
incluindo hemograma e bioquímica sérica, de que se salientam anemia
(hemoglobina 9,7 g/dl), normocítica normocrómica, e elevação discreta dos
marcadores de citólise hepática (TGO e TGP), alterações expectáveis e não
valorizáveis numa criança em quimioterapia. Serologias para citomegalovírus,
vírus Epstein-Barr, vírus herpes simples e vírus da hepatite A, sem alterações
sugestivas de infecção recente. Prova de Mantoux, negativa. Do estudo
imagiológico destacam-se: telerradiografia da anca e perna direitas sem
alterações osteoarticulares valorizáveis; ressonância magnética (RM) da perna
direita com alteração de sinal na diáfise proximal da tíbia (Figura 1); e
cintigrafia óssea com foco de hiperfixação na extremidade proximal da tíbia
direita, suspeitos de traduzir metástases (Figura 2). A ecografia
abdominopélvica exclui recidiva local da doença neoplásica ou metastização
abdominal, nomeadamente hepática. A telerradiografia e tomografia computorizada
(TC) torácicas excluem alterações pleuroparenquimatosas, de carácter
metastático ou infeccioso. Para esclarecimento etiológico realiza-se biópsia
óssea guiada por imagem: a citologia é inconclusiva, a histologia mostra
escasso infiltrado inflamatório e ausência de células neoplásicas, e o estudo
microbiológico é negativo. Optou-se por biópsia óssea cirúrgica no sentido de
aumentar a representatividade da amostra: a histologia mostra fragmentos
ósseos com focos de osteonecrose e espaços intertrabeculares preenchidos por
exsudado fibrinoleucocitário com espaços vasculares ectasiados, sem sinais de
malignidade; o estudo microbiológico apresenta imunocitoquímica negativa,
cultura em Lowenstein-Jensen negativa e reacção em cadeia da polimerase (PCR)
para Mycobacterium tuberculosis complex positiva. Perante o diagnóstico de
tuberculose óssea, a criança inicia terapêutica antituberculosa, incluindo dois
meses de terapêutica quádrupla (isoniazida, rifampicina, pirazinamida e
etambutol) e, subsequentemente, dez meses de terapêutica dupla (isoniazida e
rifampicina). O rastreio de conviventes (realizado no Centro de Doenças
Pulmonares) foi negativo. Actualmente, a criança encontra-se em seguimento no
IPOPFG após terminar quimioterapia adjuvante em Agosto de 2009, sem recidiva
local da doença oncológica ou sinais de metastização à distância. Cumpriu
terapêutica antituberculosa, com melhoria sintomática significativa; o estudo
imagiológico demonstra alterações sugestivas de resolução do processo
infeccioso e a cintigrafia óssea apresenta distribuição do radiofármaco normal
para a idade. Desenvolveu sintomatologia dispéptica como efeito adverso
atribuível à terapêutica antituberculosa que controlou com inibidor da bomba
de protões.
Figura 1 ' RM da perna direita: diáfise proximal da tíbia direita com área de
ocupação da medular óssea que capta contraste, sugestiva de infiltração
metastática. Sem outras alterações relevantes.
Figura 2 ' Cintigrafia óssea: focos de hiperfixação dos difosfonatos na
extremidade proximal da tíbia direita, suspeitos de traduzir metástases.
Restante distribuição do radiofármaco normal para o grupo etário.
Discussão:As neoplasias renais representam 6,3% dos tumores malignos
diagnosticados em menores de 15 anos de idade (5), sendo o tumor de Wilms a
forma mais comum (1,5,6,7). Este ocorre sobretudo em crianças menores de cinco
anos (5) e habitualmente manifesta-se sob a forma de uma massa abdominal
assintomática (6). Nos centros europeus, o tratamento baseia-se na
quimioterapia pré-operatória, cirurgia e tratamento pós-operatório que depende
do estadiamento (8,9). Actualmente a taxa de sobrevida global ronda os 85% (6).
O local de metastização mais comum é o pulmão, seguindo-se os gânglios
linfáticos e fígado(9). O tumor de Wilms raramente metastiza para o osso,
medula óssea ou cérebro (9).
No caso apresentado, o estadiamento inicial do nefroblastoma revelou tratar-se
de doença localizada. Não obstante, durante o período de terapêutica
adjuvante, o aparecimento de queixas álgicas osteoarticulares obrigou à
consideração da hipótese de metastização óssea. Na ausência de metastização
para outras localizações, foram consideradas outras hipóteses nomeadamente a
infecção osteoarticular, facilitada pela imunossupressão. A radiografia do osso
envolvido pode ser útil, mas é inespecífica (10) e neste caso foi normal. A RM
da perna direita e a cintigrafia óssea foram sugestivas de infiltração
metastática na tíbia direita. Todavia, apesar da importância reconhecida à RM
nestes casos, a ausência de achados patognomónicos obriga a outros testes para
confirmação diagnóstica (10). Os exames histológico e microbiológico são
importantes para o diagnóstico, especialmente em associação com técnicas de
detecção por PCR(10). A colheita de tecidos por técnicas minimamente
invasivas, guiadas por imagem, é actualmente o goldstandard (10). No doente
imunodeprimido é frequente a anergia tuberculínica, os granulomas são escassos,
mal circunscritos, por vezes inexistentes, podendo também faltar a necrose
caseosa (4). O prognóstico é habitualmente bom com o tratamento correcto; pode
ocorrer incapacidade residual funcional, habitualmente resultando no atraso
diagnóstico (3).
Os autores pretendem reforçar a importância do reconhecimento da infecção por
Mycobacterium tuberculosis nas crianças sob terapêutica imunossupressora, mesmo
na presença de manifestações clínicas frustres, evidenciando a importância do
seu diagnóstico diferencial com doença oncológica (primária ou secundária)
(10,11), num contexto epidemiológico adequado, ou seja, residência em área
geográfica entre as de maior incidência (12).