A palpação hepática quantificada
EDITORIAL
A palpação hepática quantificada
Rui Marques dos Santos
O termo cirrose foi usado pela primeira vez em 1837 por Laennec, mas sete anos
antes Cruveilhier descreveu o aspecto semi-microscópico: granulações contendo
tecido esponjoso hepático normal e, o espaço entre elas, ocupado por tecido
fibroso. O significado de cirrose era confuso e para alguns apenas sinónimo de
grande dureza hepática. Em 1947 Himsworth queria abandoná-lo para usar apenas o
termo fibrose. Foi necessária uma conferência em Havannah (1955) e uma comissão
da OMS para definir cirrose: "um processo difuso caracterizado por fibrose
e a transformação da arquitectura normal em nódulos estruturalmente
anormais" (1). A acumulação de matriz extracelular, em resposta a uma
lesão aguda ou crónica, constitui a fibrose hepática a qual, por último forma
uma cirrose. A transição do estado normal até cirrose pode durar 20 anos e esta
evolução é um aspecto clínico muito relevante, com sintomas ou silenciosa mas
que devemos saber avaliar. O fígado, o maior órgão do corpo humano, desempenha
inúmeras funções vitais e à semelhança de outros encontra-se protegido pela
caixa torácica dificultando a sua observação. A percussão permite detectar o
aumento das dimensões mas só a palpação fornecerá dados sobre a consistência. O
aumento do conteúdo de gordura torna o fígado mais mole, mas é o endurecimento
hepático pela presença de fibrose que determina o estádio de gravidade. O
primeiro médico a reconhecer o endurecimento hepático como um sinal de mau
prognóstico, quando associado a icterícia, foi Hipócrates (460 a.C.).
Mensurações seriadas da fibrose permitem avaliar a progressão da doença,
estabelecer prognósticos e influenciar a terapêutica. Não sendo possível pelo
exame físico a avaliação da fibrose e a realização de biopsia hepática ser um
método invasivo com morbilidade e mortalidade, tem-se procurado usar marcadores
não-invasivos de fibrose. A elasticidade hepática medida através da
elastografia transitória ecográfica (Fibroscan®) é uma nova abordagem não-
invasiva na avaliação da fibrose hepática. Num estudo multicêntrico de 327
doentes com hepatite C crónica a probabilidade de diagnóstico de estádio F2-F4
(Metavir) foi de 0,79 e para a cirrose de 0,97 (2). Com boa reprodutibilidade e
pequena variação inter e intra-observadores o método apresenta poucas
limitações. No trabalho "Elastografia hepática transitória, um método não
invasivo para avaliação da fibrose em doentes com hepatite C crónica",
agora publicado, o resultado do Fibroscan® foi comparado com a avaliação
histológica em 158 doentes. A elastografia obteve resultados em 97,5% dos
doentes e a variação inter e intra-observador não foram significativas. A
distribuição de valores segundo os estádios de fibrose apresentou sobreposição
nos valores extremos de F1 a F3, mas diferentes de F4 com superior de F3
idêntico ao inferior de F4. Também foi possível definir valores de corte para
diferentes graus de fibrose, e diferenciar os doentes com cirrose. O valor de
AUC (areaunder the ROC curve) para F≥2 foi idêntico aos anteriormente
publicados 79%. A capacidade para detectar a presença de cirrose é uma
constante em todos os estudos publicados e, no caso da hepatite C a
possibilidade de afirmar a existência de fibrose significativa (F≥2) tem
relevância clínica pela indicação terapêutica. Para esta finalidade a
realização de biopsia hepática não será obrigatória. Contudo, o desempenho do
Fibroscan® nos estádios intermédios de fibrose continua a ser um problema. Logo
no estudo inicial realizado em peças de hepatectomia se verificou que a
elasticidade aumentava com a fibrose mas nos estádios intermédios os valores
eram discrepantes (3). Outro dos problemas identificados é o da variação de
valores para estádios de fibrose idênticos nos diferentes estudos. A hipótese
de populações e metodologias de análise histológica diferentes como explicação
para as diferenças observadas não recolhe confirmação quando estudos na mesma
instituição apresentam valores para a cirrose de 12,5 e 17,6 kPa (4 e 5). De
igual modo o segundo trabalho agora publicado "Utilidade da elastografia
hepática transitória (Fibroscan®) na cirrose hepática" estudou a aplicação
do método ao diagnóstico de cirrose em diversas etiologias. Realizado na mesma
instituição do anterior, e com populações idênticas encontra valores
completamente diferentes na cirrose por hepatite C: 13,75 (11,43 - 24,46) e
17,1 (6,0 - 40,3), confirmando ser este um problema inerente à técnica. A
interpretação do valor mais baixo do segundo estudo - 6,0 kPa, pelos valores
encontrados no primeiro, negaria a existência de cirrose e colocaria o doente
nos estádios F0 a F2. Deste modo, e à semelhança de outros, concluímos que a
elastografia transitória pode ter valor no diagnóstico não invasivo de cirrose
mas não deve ser recomendada como substituição da biopsia hepática (6). A
avaliação da fibrose de doentes com hepatite C tem sido o principal objecto dos
estudos com a elastografia transitória e é interessante, apesar da reduzida
dimensão da amostra, os resultados obtidos por R. Marinho et al. nas diferentes
etiologias de cirrose. Apesar de se verificarem diferenças estatísticas apenas
entre os doentes com uma e várias etiologias, parece existir diferença na
cirrose consoante a etiologia. Este é um facto novo que confirma a
heterogeneidade da entidade. Clinicamente já sabíamos que a cirrose não era
igual para todas as etiologias, a fisiopatologia da fibrose tinha diferenças e
a expressão histológica característica da causa, mas o que eventualmente nos é
agora revelado é que a gravidade da fibrose também varia e que dois factores
produzem mais fibrose do que um. Apresença de trombocitopenia também esteve
associada a valores de elastografia superiores - 43,5 vs17,7 kPa. A
trombocitopenia é um factor preditivo de complicações de hipertensão portal
como varizes esofágicas e esplenomegalia (7). A elastografia transitória tem
uma correlação muito significativa com a hipertensão portal (correlação de
Pearson de 0,84) (8). Estes autores verificaram em doentes transplantados com
recorrência de hepatite C que a elastografia identificava doentes em risco de
desenvolver cirrose, descompensação hepática ou disfunção do enxerto (9),
podendo constituir uma técnica muito útil na vigilância da evolução destes
doentes. A fibrose biliar em doentes com cirrose biliar primária e colangite
esclerosante primária também se correlaciona com os valores de elastografia
(10). A elastografia transitória hepática avalia o endurecimento ou rigidez
hepática e correlaciona-se com a fibrose. No entanto, outras propriedades
físicas como a viscosidade tecidular também podem influenciar aquela rigidez
alterando a elasticidade. No fígado a viscosidade é influenciada pela pressão e
fluxo sanguíneo, fluxo biliar e integridade hepatocitária. Também a
heterogeneidade hepática com inflamação e fibrose contribuem para a variação
regional da elasticidade. A técnica de ultrasons hoje usada na medição da
elasticidade hepática é unidimensional sendo por isso limitada em órgãos com
movimento em múltiplas dimensões. Atécnica da elastografia vibro-acústica com
ondas de alta-frequência pode ultrapassar estas limitações e os resultados
preliminares da elastografia por ressonância magnética são promissores na
avaliação da fibrose hepática (11). A experiência acumulada com o Fibroscan®, a
facilidade de utilização, a ausência de efeitos secundárias, a rapidez de
execução e o baixo custo associado aconselham a que procuremos usar a
informação fornecida pela técnica integrando-a na avaliação do doente hepático
como uma palpação hepática quantificada.