UTILIDADE DA ELASTOGRAFIA HEPÁTICA TRANSITÓRIA (FIBROSCAN®) NA
CIRROSE HEPÁTICA
INTRODUÇÃO
A avaliação do estádio de fibrose hepática tem um elevado interesse diagnóstico e prognóstico. É fundamental,
por exemplo, avaliar a probabilidade, próxima dos 20%,
de alguém com infecção crónica pelo vírus da hepatite C
(VHC) desenvolver cirrose hepática. A cirrose é uma
situação de elevado potencial oncogénico, já que o risco
de surgir carcinoma hepatocelular (CHC) é de 1 - 4% por
ano (1). Por outro lado existe sempre a possibilidade de
surgir um episódio de descompensação como seja ascite,
peritonite bacteriana espontânea, etc, o que obriga a
equacionar o transplante hepático.
O diagnóstico de cirrose é por vezes muito difícil de confirmar e só o recurso à biopsia hepática permite o diagnóstico de certeza. A biopsia na cirrose não tem
acuidade diagnóstica de 100%, é um exame invasivo,
implica internamento, tem risco de morte, apesar de
reduzido (<1/1 000) mas sempre presente (2). Não raramente, existem problemas de amostragem do fragmento
(3, 4) e na reprodutibilidade da sua avaliação (5).
Por tal, tem crescido a necessidade de métodos alternativos, não invasivos, para avaliar o estádio de fibrose hepática. A utilização dos marcadores serológicos tem tido
um crescente interesse nas últimas duas décadas (6).
Estes testes têm algumas desvantagens: a maioria são
testes indirectos, pouco precisos na distinção dos estádios intermédios de fibrose e caros. Os que têm sido
mais utilizados são o Fibrotest, (7, 8) o APRI (aspartate
aminotranserase to platelet ratio index) (9) e o Índice de
Forns (10).
O FibroScan® (Echosens, FSC) é uma nova técnica não
invasiva que usa um sistema de ultrasons, utilizada para
quantificar a fibrose hepática. É indolor, reprodutível,
não dependente do operador, não tendo contra-indicações. É susceptível de repetição, não necessitando da
intervenção de outras especialidades como sejam a imagiologia e a anatomia patológica para a avaliação hepática. O resultado é imediato, apresentado numa variável numérica, sendo o tempo necessário para a sua
execução cerca de 5 minutos.
O FSC é composto por uma sonda, um sistema electrónico e uma unidade de controlo. A sonda contém um
vibrador de baixa frequência que no seu eixo tem um
transdutor de ultrasons com frequência superior à das
ecografias correntes sendo de 3,5 MHz. O dispositivo é
baseado na elastografia transitória unidimensional (1D), uma técnica que utiliza ondas elásticas (50 Hz) e de
ultrasons de baixa frequência (5 MHz), medindo a elasticidade hepática. A velocidade de propagação está
directamente relacionada com a elasticidade (11).
O FSC tem excelente correlação com o estádio de
fibrose, avaliada através da escala METAVIR (12). O
método foi inicialmente validado para a determinação da
fibrose na hepatite C crónica (13,14 ), mas tem sido
recentemente estendido a outras entidades como a
hepatite B crónica e doenças colestáticas.
É um exame muito bem aceite pelos doentes, mesmo
aqueles que recusam a biopsia, não necessitando de
internamento.
O objectivo do nosso trabalho foi a avaliar a utilidade da
elastografia no diagnóstico de cirrose hepática de diversas etiologias, correlacionando-a com o resultado da
biopsia hepática.
MATERIAL E MÉTODOS
Doentes
A elastografia hepática foi realizada com o FSC em 120
doentes, todos com avaliação histológica: 61 com cirrose hepática (sendo as mais frequentes a cirrose hepática associada ao vírus da hepatite C (31 doentes), ao vírus
da hepatite B (7), cirrose alcoólica (6) e cirrose de diversas etiologias (17) - cirrose biliar 1ª, hepatite autoimune, alcoólica, colangite esclerosante primária, colangite auto-imune, etc. A idade média de 52,2 ± 12,6 anos
e trinta e oito doentes eram do sexo masculino.
Foram estudados também 59 doentes sem cirrose (55
com hepatite C, com a idade média de 41,6 ± 10,5 anos
sendo 30 do sexo masculino) e 25 controlos saudáveis
(idade média de (28,9 ± 9,0 anos)
Análise Estatística
As medianas foram comparadas através do teste não
paramétrico de Mann-Whitney. A eficiência diagnóstica
do FSC foi determinada quanto à sensibilidade, especificidade, valor predizente positivo (VPP), valor predizente
negativo (VPN) e área abaixo da curva (ROC - receiver
operating curves). A análise estatística foi efectuada com
o programa SPSS versão 11.0, com significância se p <
0,05.
O cut-off foi encontrado para soma da especificidade e
do valor predizente positivo, que apresentasse o resultado mais elevado para os valores de 10 a 14 kPa.
FibroScan® (Echosens, Paris, França)
A elastografia hepática transitória foi realizada através
de uma onda mecânica desencadeada pela vibração de
um transdutor ultrasónico (A) activado pelo operador
através da pressão de um botão (B) (Figura 1). A sonda
de ultrasons é encostada no espaço intercostal, coberta
de gel, ao nível do lobo direito do fígado, aproximadamente no mesmo local onde é introduzida a agulha para
a biopsia hepática (Figura 1 e Figura 2). O doente encon-
tra-se em decúbito dorsal, com o braço direito em máxima abdução por baixo da cabeça.
O operador, assistido por imagem ecográfica que surge
numa janela do écran do FSC, localiza uma área do fígado livre de estruturas vasculares. Prime então o botão (B)
para iniciar a vibração e a medição cujo processamento
demora cerca de 10 segundos. O transdutor gera uma
onda elástica e mede a velocidade de uma onda
vibratória de baixa frequência e baixa amplitude que é
transmitida da pele ao tecido hepático. Está calibrado
para avaliação da elasticidade/rigidez de uma zona da
estrutura hepática cuja profundidade se situa a 25 - 65
mm da pele, com o volume de 1 x 2 cm, maior do que o
tecido obtido através da biopsia hepática. A onda elástica propaga-se através do fígado com uma determinada
velocidade dependente da rigidez (fibrose) hepática.
Quanto maior for a velocidade, maior será a rigidez,
medida em Kilopascals (kPa), e mais elevada é a fibrose.
No caso da sonda não se localizar na área hepática ou se
a pressão do transdutor na pele for demasiado elevada ou
reduzida o aparelho rejeita de forma automática a
medição.
Não é necessário jejum, avaliação laboratorial prévia ou
internamento e o procedimento demora cerca de 5 minutos. A mediana é considerada o valor mais representativo, sendo o resultado imediato, numérico e expresso em
kilopascals (kPa). Segundo o fabricante não deve ser
empregue noutros orgãos que não o fígado, particularmente os olhos e as mucosas e tem a certificação CE
(Conformité Européenne) desde 2003, o que atesta a sua
segurança.
Só foram validados exames com 10 medições válidas,
com taxa de sucesso superior a 60% (número de
medições válidas / número total de medições).
O FSC está contra-indicado nos doentes com obesidade
mórbida, ascite ou com espaços intercostais estreitos,
devido à reduzida eficácia. De acordo com o fabricante,
não está ainda validado para idades inferiores a 18 anos.
No nosso estudo foram excluídos doentes portadores de
pacemakers e grávidas.
RESULTADOS
A elastrografia foi conseguida em 92% dos casos com
cirrose estando o insucesso relacionado com a obesidade
(Índice de Massa Corporal médio de 31 P/A2). O tempo
médio para a realização do FSC foi de 5m 57 segundos
naqueles com cirrose e de 4m 28 segundos naqueles sem
cirrose (p = NS).
A mediana na cirrose hepática foi de 16,9 kPa (4,5 - 70,5),
naqueles sem cirrose 5,8 kPa (3,8 - 19,6), p < 0,05 (Figura
3). A mediana nos controlos foi de 4,5 kPa, (3,3 - 5,7).
Não se verificou diferença entre as medianas das diferentes etiologias da cirrose: na cirrose hepática VHC foi
17,1 kPa (6,0 - 40,3), na cirrose VHB 13,1 kPa (7,4 19,8) e na alcoólica 13,4 kPa (6,8 - 35,8), p = NS.
Aqueles com doenças auto-imunes (hepatite autoimune, cirrose biliar primária, colangite esclerosante
primária, colangiopatia auto-imune) apresentaram medianas mais baixas: 7,0 kPa (4,5 - 40,0) (Figura 4). Os
valores mais elevados foram encontrados nos doentes
com mais do que um factor etiológico, hepatite B,
hepatite C, etanol ou infecção VIH) com 57 kPa (7,7 75) em comparação com aqueles com apenas um factor,
14 kPa (4,5 - 46,4), p < 0,001.
Os doentes com cirrose hepática com trombocitopenia
tinham valores mais elevados do que aqueles com cirrose e sem trombocitopenia, 43,5 kPa (20,4 - 75,0) e
17,7 kPa (4,5 - 75,0), p < 0,05 (Figura 5).
O valor de cut-off mais discriminativo para o diagnóstico de cirrose hepática foi de 12,0 kPa. Para este valor a
sensibilidade foi de 64%, a especificidade 98%, o VPP
98% e o VPN de 73%. Os valores da área abaixo da
curva para o cut-off de 12 kPa foram de (AUROC - area
under receiver operating curve) 0,93 (0,88 - 0,97), para
um intervalo de confiança de 95% (Figura 6).
DISCUSSÃO
A biopsia hepática tem sido o exame de referência para
a avaliação da fibrose hepática em diversas doenças hepáticas.
No contexto do estadiamento da hepatite C crónica a
determinação do estádio de fibrose é muito importante
para a decisão do início da terapêutica, designadamente
naqueles cujas aminotransferases se situam dentro dos
valores normais. Nestes doentes um estádio de fibrose
significativo pode justificar e indicar a terapêutica (15,16).
A biopsia hepática tem algumas limitações, como sejam
a má aceitação por parte dos doentes, variabilidade na
avaliação da fibrose na mesma amostra, (17) necessidade de internamento hospitalar e o risco potencial, apesar de raro, de complicações graves (18). Estes factores
têm levado a que se procurem alternativas não invasivas
para o estadiamento da hepatite C crónica. A determinação de alguns marcadores bioquímicos tem sido usado
para a determinação da fibrose hepática, mas ainda sem
ampla generalização. Além do mais, alguns estudos sugerem que o FSC é superior ao Fibrotest® no diagnóstico não invasivo da fibrose hepática (19, 20).
O FSC é um exame ecográfico entusiasticamente aceite
pelos doentes, objectivo e seguro, que pode ser executado periodicamente sem riscos, à semelhança das
ecografias abdominais, com o objectivo de medir de
forma quantitativa a progressão ou a involução da
fibrose. Por outro lado, tem a vantagem de determinar a
rigidez hepática num volume do parênquima 100 vezes
superior à amostra colhida através da biopsia.
O FSC foi inicialmente avaliado de forma prospectiva
em duas grandes séries de doentes com hepatite C
(13,14), mostrando estes estudos boa correlação com a
classificação METAVIR, (principalmente para os estádios F2 a F4) com as curvas ROC entre 0,79 (F2) e 0,97
(F4). Noutra série que incluiu doentes com doença hepática crónica de várias etiologias à semelhança do presente estudo, o FSC apresentou valores para VPP e VPN
superiores a 90% (21). No nosso grupo de doentes, para
o diagnóstico de cirrose/fibrose intensa (F4) com um
cut-off de 12 kPa o VPP foi de 98% e o VPN de 73%.
Os valores que encontrámos no nosso trabalho (sensibilidade 64%, especificidade 98%, VPP 98%, VPN 73%)
foram muito semelhantes aos de um estudo que
englobou 183 doentes cujos valores, para um cut-off de
12,5 kPa, foram: sensibilidade 87%, especificidade
91%, VPP 77%, VPN 95% (13). No entanto, em cerca de
1/3 dos nossos doentes com cirrose o valor da elasticidade foi inferior a 12 kpA, valor que encontrámos para
o nosso cut-off. Segundo alguns autores este valor
poderá estar relacionado com a presença de cirrose inactiva ou macronodular (22). Um dos estudos mais relevantes na avaliação da utilidade clínica do FSC encontrou um valor idêntico (77%) aos nosso para a sensibilidade (21).
Quanto ao cut-off, em doentes com hepatite C, outros
autores encontraram valores semelhantes ao nosso (12
kpA) como é o caso de Castera et al (13) (12,5 kPa, com
VPP de 77%) e de Ziol et al (14) com 14,5 kPa. Douvin
et al encontraram o valor de 11,8 kPa para a doença hepática associada ao VHC no doente VIH (20).
Para outros grupos de patologias, por exemplo a cirrose
biliar primária e a colangite esclerosante primária o
valor para F4 foi de 17,3 kPa (23).
Existem algumas limitações ao uso do FSC: a presença
de ascite, ainda que não detectável do ponto de vista
clínico, prejudica a transmissão da onda elástica, além
de espaços intercostais estreitos; a obesidade é no entanto o factor limitante mais relevante, devido à sua prevalência actual na sociedade. Não obstante, a taxa de
exames conseguidos é habitualmente superior a 95%. Na
nossa série foi um pouco inferior - 92% - o que se deve
provavelmente à curva de aprendizagem e à inclusão
indevida de alguns doentes obesos. Convém acentuar,
que a taxa de exames não conseguidos não está habitualmente relacionada com o operador, sexo ou transaminases. Em análise multivariada Foucher et al (24) verificaram que o índice de massa corporal (IMC) superior
a 28 P/A2 era o indicador de insucesso, o que está de
acordo com os nossos resultados, dado que nos doentes
em que não conseguimos realizar o FSC, o IMC foi de
31 P/A2.
Um estudo recente sugere que o FSC possa ser utilizado
em predizer as complicações da cirrose hepática, como
sejam a ascite e hipertensão portal: doentes com valores
mais elevados de KpA teriam doenças mais avançadas:
Foucher et al encontraram valores de 27,5 kPA para a
presença de varizes esofágicas grandes, 37,5 kPa para os
doentes com doença mais avançada (i. e. CHILD B e C),
49,1 KpA com história passada de ascite e 62,7 kPa com
carcinoma hepatocelular. Neste estudo, o valor de cut-off
para F4 (METAVIR) foi de 17,5 kPa, indicando que o
valor da elasticidade hepática se correlaciona com os
parâmetros clínicos: quanto mais elevado o valor, maior
o risco de descompensação e de surgir hipertensão portal com relevância clínica. Para Kazemi et al (25) um
valor inferior a 19 KpA quase elimina a probabilidade da
presença de varizes esofágicas com VPN de 93%. O
nosso estudo não teve cariz prospectivo mas encontrámos dois pontos (trombocitopénia e a presença de mais
do que um factor etiológico na cirrose), que, de forma
indirecta, podem apontar para a validade do FSC como
um método de interesse prognóstico, podendo inclusive
auxiliar, o clínico, a avaliar com maior precisão a possibilidade de evolução da doença hepática. Com efeito,
encontrámos valores mais elevados nos doentes com
trombocitopenia e naqueles com múltiplos factores
fibrogénicos, como seja a associação VHC/álcool,
VHB/álcool, ou as co-infecções VHC/VIH, VHB/VHC.
Como é sabido, valores mais baixos das plaquetas por
um lado, e por outro as co-infecções víricas aliadas ao
consumo excessivo de álcool, estão relacionadas com
um risco de evolução mais rápida, não só para cirrose
mas também para CHC (26,27).
O FSC tem sido aplicado ao estudo de diversas doenças
hepáticas, nomeadamente hepatite B com eficiência
diagnóstica semelhante à hepatite C (28), esteatohepatite
não alcoólica, cirrose biliar primária, colangite escle-
rosante primária (23), infecção pelo VIH (29), reinfecção pelo vírus da hepatite C após o transplante, na
avaliação da fibrose hepática na doença de Crohn medicada com metotrexato (30) e na cirrose alcoólica.
Numa série de 245 doentes alcoólicos o FSC apresentou
um VPP de 97% para o diagnóstico de cirrose (31). Tem
também um interesse acrescido naquelas patologias em
que a execução da biopsia hepática é de elevado risco
como seja o caso da hemofilia (32).
A limitação actual da elastografia na obesidade poderá
ser ultrapassada com o desenvolvimento de novas sondas, mais aperfeiçoadas do ponto de vista tecnológico.
Os dados apontam para que o FSC seja um precioso
exame complementar dos clínicos na avaliação do
doente hepatológico. Mesmo tendo em conta as suas limitações, o FSC representa um grande progresso na
avaliação não invasiva da fibrose hepática (33) podendo
no futuro ter outras aplicações como seja a avaliação da
eficácia terapêutica de fármacos antifibróticos. Pensa-se
que a utilização do FSC venha a dispensar de forma clara
a biopsia hepática nalguns casos, não só para o diagnóstico como também para a monitorização da fibrose.
Em conclusão, a elastografia hepática transitória é um
exame complementar de fácil execução, não invasivo, de
execução rápida, muito bem aceite pelos doentes. Tem
boa acuidade para avaliar a fibrose e utilidade clínica
para o diagnóstico de cirrose. O FSC revelou-se válido e
fiável na avaliação da fibrose hepática, dando a indicação de que um valor superior a 12 kPa é muito sugestivo de cirrose hepática.