DOENÇA DE CAROLI SEGMENTAR EM HOMEM DE 73 ANOS
INTRODUÇÃO
A doença de Caroli é uma doença congénita, descrita
pela primeira vez em 1958 (1), tendo sido caracterizadas
duas entidades aparentemente distintas.
A primeira entidade, denominada doença de Caroli, é
uma doença rara que consiste na dilatação segmentar
multifocal das vias biliares intra-hepáticas (VBIH), na
ausência de outras doenças hepáticas ou viscerais. Em
cerca de 20% dos casos existe envolvimento de apenas
um dos lobos hepáticos, mais frequentemente o esquerdo. A doença de Caroli não parece ser hereditária.
A segunda entidade, denominada de síndroma de Caroli
(2), é mais frequente que a anterior e consiste na associação de dilatação das VBIH com fibrose hepática congénita. Em casos raros pode existir envolvimento hepático segmentar (3). A síndroma de Caroli é uma doença
genética, com um provável padrão de transmissão
autossómico recessivo, como o parecem comprovar os
vários relatos de doença em irmãos (4) e a associação
frequente com doença renal, em especial com a doença
renal poliquística com transmissão autossómica recessiva (gene PKHD1) (5). O relato de uma família afectada
em que a transmissão parece ser autossómica dominante
e a associação com outras doenças renais, nomeadamente com a doença renal poliquística com transmissão
autossómica dominante (6), doença quística medular e
nefronoftise, colocam a possibilidade da existência de
vários genes responsáveis pela doença (genes PKD1,
PKD2 entre outros).
Foi proposto que as alterações observadas nas vias biliares se devem a uma paragem e/ou desorganização da
placa ductal durante a embriogénese (doença de Caroli)
ou embriogénese e período fetal (síndroma de Caroli) (2).
A litíase intra-ductal com episódios de colangite de
repetição é uma complicação frequente da doença de
Caroli. A síndroma de Caroli pode-se complicar ainda de
hipertensão portal, com hemorragia digestiva por varizes
esofágicas e ascite. O risco de colangiocarcinoma está
aumentado nestes doentes, podendo ocorrer em até 7%
dos casos (7) e parece dever-se ao processo inflamatório
de longa duração com lesão crónica do epitélio biliar.
Descreve-se o caso clínico de um homem com doença de
Caroli limitada ao lobo esquerdo, diagnosticada aos 73
anos de idade, durante a investigação de quadro de
colangite de repetição.
CASO CLÍNICO
Homem de 73 anos, que recorreu ao Serviço de
Urgência por quadro, com 5 dias de evolução, de
desconforto epigástrico, náuseas, febre e calafrios, sem
vómitos, icterícia, colúria ou outra sintomatologia acompanhante.
O doente referia há cerca de 9 anos múltiplos episódios
de desconforto abdominal e náuseas, um deles acompanhado de febre e calafrios, tendo sido submetido a
colecistectomia por via laparotómica por litíase vesicular. No intra-operatório ter-lhe-ia sido diagnosticado
litíase intra-hepática, para a qual não fez qualquer tratamento. Esteve assintomático desde essa altura até ao
presente episódio.
Tem antecedente pessoal de hipertensão arterial, medicado com Nifedipina. Os antecedentes familiares são
irrelevantes.
Ao exame objectivo e com excepção de uma temperatura axilar = 38,5.ºC não se observaram outras alterações
relevantes.
Dos exames laboratoriais destaca-se a ausência de leucocitose e neutrofilia, PCR=20, AST=118 UI/dL,
ALT=84 UI/dL, FA=141 UI/dL e GGT=166 UI/dL,
tempo de protrombina, bilirrubina e albumina sem alterações. As hemoculturas e urocultura foram negativas.
Foi efectuada uma ecografia abdominal que revelou
dilatação das VBIH à esquerda com litíase dos canais
biliares, sugestiva de doença de Caroli, via biliar principal (VBP) sem alterações, status pós-colecistectomia,
ligeira esplenomegália homogénea, sem ascite.
Para melhor esclarecimento do quadro foi solicitada
CPRM que revelou múltiplas dilatações saculares da
VBIH esquerda com presença de litíase intra-biliar
(Figura 1). A VBHI direita e a VBP não apresentavam
alterações. Estas imagens são compatíveis com o diagnóstico de doença de Caroli segmentar.
Foi assim colocado o diagnóstico de doença de Caroli
segmentar, limitada ao lobo esquerdo, complicada por
colangite e o doente foi medicado com Imipnem 500 mg
8/8 horas com melhoria da sintomatologia em cerca de
12 horas e resolução das alterações laboratoriais, tendo
tido alta.
Quatro dias depois da alta recorre novamente ao serviço
de urgência por febre e calafrios, tendo sido internado. A
ecografia efectuada revelou, para além das alterações
descritas anteriormente, dilatação ligeira da VBP
(10mm), não se identificando a causa da obstrução.
Foi medicado com Imipenem 500 mg 8/8 h e efectuada
CPRE que revelou VBIH direita não dilatada e sem
litíase, VBIH esquerda dilatada num dos ramos e com
lamas biliares (Figura 2), VBP ligeiramente dilatada,
sem litíase. Efectuou-se esfincterotomia, passagem de
fio guia e remoção com balão, de lamas e cálculos biliares da VBIH esquerda. O doente ficou assintomático
tendo tido alta.
Duas semanas após a alta, foi novamente internado por
quadro compatível com colangite e medicado com
Imipenem. Observou-se, tal como nos episódios anteriores, boa resposta ao tratamento médico efectuado.
Foi, posteriormente, isolada, em hemocultura, Klebsiella
pneumoniae sensível ao antibiótico administrado.
Devido ao quadro clínico de colangite recidivante e à
evidência de doença limitada a um dos lobos hepáticos o
doente foi proposto para cirurgia. Na laparotomia não
apresentava alterações macroscópicas do lobo direito do
fígado. Foi submetido a ressecção do lobo hepático
esquerdo a qual decorreu sem intercorrências significativas. A peça operatória revelou dilatação quística das vias
biliares e litíase intra-hepática (Figura 3). O exame histológico da peça operatória confirmou o diagnóstico, não
se tendo detectado fibrose hepática ou colangiocarcinoma.
DISCUSSÃO
A doença de Caroli caracteriza-se pela dilatação congénita das vias biliares intra-hepáticas com a formação
de litíase biliar intra-hepática e episódios recorrente de
colangite.
As alterações estruturais estão presentes desde o nascimento (2), manifestando-se durante a infância, adolescência ou início da idade adulta. A doença é, no entanto, frequentemente assintomática durante os primeiros 5
a 20 anos de vida ou, mais raramente, durante toda a vida
do indivíduo. Nos casos de doença segmentar a doença
manifesta-se mais tardiamente do que nas formas
difusas. No presente caso o doente teve a primeira manifestação da doença aos 64 anos, a qual foi interpretada
como litíase vesicular sintomática e para a qual foi submetido a colecistectomia, tendo o segundo episódio sintomático, com queixas sugestivas de colangite de
repetição, ocorrido apenas 9 anos depois e conduzido ao
diagnóstico.
O diagnóstico é estabelecido por métodos de imagem
(ecografia, TAC ou CPRM) que demonstram a dilatação
quística das vias biliares intra-hepáticas proximais com
VBP não ectasiada (8,9).
A terapêutica da doença de Caroli não está protocolizada
e não existe qualquer estudo randomizado sobre o tratamento desta entidade.
Ros e col. demonstraram a eficácia da utilização do
ácido ursodesoxicólico na dissolução e na prevenção de
formação de cálculos nas VBIH em doentes que apresentavam cálculos constituídos predominantemente por
colesterol (10).
Os primeiros relatos da utilização de CPRE com esfincterotomia associaram-se a morbilidade infecciosa significativa e esta técnica foi, por isso, considerada contraindicada nesta entidade. Desde 1984, existem, no entanto, múltiplos relatos de utilização bem sucedida de
CPRE com esfincterotomia, isoladamente ou em associação com litotripsia extra-corporal e terapêutica de dissolução dos cálculos com ácido ursodesoxicólico, no
tratamento dos episódios agudos de colangite e na prevenção das recidivas (11). Esse facto pode dever-se aos
importantes avanços técnicos que ocorreram nas duas
últimas décadas e a uma maior experiência dos executantes.
Nos casos de envolvimento difuso em que não é possível controlar as complicações da colangite recorrente ou
da hipertensão portal, o transplante hepático deve ser
considerado (12).
Os doentes que apresentem Doença de Caroli segmentar
limitada a um lobo hepático, complicada por múltiplos
episódios de colangite, têm, na nossa opinião, indicação
para ressecção do segmento afectado, desde que não
existam contra-indicações para a cirurgia proposta. Este
tratamento permite corrigir de forma definitiva o quadro
clínico, evitando novos episódios de litíase, colangite e
sépsis (13). Parece ter também um papel na profilaxia de
aparecimento do colangiocarcinoma (13). Existem, no
entanto, relatos de doentes com doença segmentar submetidos a terapêutica não cirúrgica, nomeadamente a
terapêutica endoscópica e de dissolução dos cálculos
com ácido ursodesoxicólico, com boa resposta ao tratamento efectuado (14).
No presente caso foi feita uma primeira tentativa de terapêutica conservadora, com a utilização de antibióticos
e, posteriormente, de CPRE. Contudo, e tendo em conta
os episódios recidivantes de colangite e o envolvimento
hepático segmentar, considerou-se a terapêutica cirúrgica como o procedimento mais indicado para este doente.