Hemorragia digestiva alta por úlcera péptica em doentes de alto risco: O que há
de novo?
Hemorragia digestiva alta por úlcera péptica em doentes de alto risco: O que há
de novo?
M. Isabelle Cremers
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A hemorragia digestiva alta (HDA) é um dos problemas clínicos mais importantes
na gastrenterologia, tendo-se verificado alterações significativas nos aspectos
epidemiológicos, na terapêutica médica e endoscópica e no prognóstico.
No que diz respeito aos aspectos epidemiológicos, um dos aspectos mais
relevantes consiste no nvelhecimento na população com HDA (1, 2). Vários
autores têm sublinhado a relação entre este envelhecimento e a mortalidade por
HDA, que se mantém inalterada, articularmente no grupo que sangra por úlcera
péptica, apesar dos desenvolvimentos da endoscopia diagnóstica e terapêutica
(1, 2).
Outra alteração epidemiológica importante está relacionada com a etiologia
daHDA. Embora a úlcera péptica (gástrica e duodenal) permaneça a causa
principal da HDA, verifica-se um declínio na sua incidência (1, 3, 4), tendo
sido proposto por alguns autores que a erradicação agressiva do H. pylori
constitua um factor importante para esse declínio. Observa-se, por outro lado,
um aumento da incidência da síndroma de Mallory-Weiss e da esofagite péptica
(1, 5). A prevalência da esofagite como causa de HDA é particularmente
importante no grupo etário mais elevado, acima dos 75 anos, tendo-se registado
uma prevalência de 17,2% nestes doentes vs 11,5% nos doentes mais jovens, num
registo nacional francês que decorreu durante o ano de 2005 (6).
Um terceiro aspecto epidemiológico que merece ser destacado consiste na
ingestão de AINEs e de ácido acetil-salicílico (AAS), que permanecem
inalterados ou com tendência para aumentar nas últimas 2 décadas, apesar dos
conhecimentos mais generalizados dos seus potenciais efeitos deletérios ao
nível das mucosas gástrica e duodenal (1,3,7,8).
Mais importante do que os aspectos epidemiológicos tem sido a alteração da
abordagem terapêutica dos doentes com HDA. Estes doentes têm sido alvo de um
esforço organizado para serem internados em unidades de hemorragias digestivas,
sobretudo quando apresentam índices de Rockall elevados, afim de serem
submetidos a terapêuticas intensivas e a uma vigilância apertada, como é
recomendado por várias sociedades científicas (9, 10). Nestas medidas está
incluída a realização de endoscopia digestiva alta precoce, nas primeiras 24h
e, nalguns casos, nas primeiras 12h (1). A associação de inibidores das bombas
de protões (IBP), em bolus ou em perfusão, à endoscopia terapêutica, veio
reduzir significativamente o número de recidivas hemorrágicas (11) e constitui,
actualmente, o estado da arte no tratamento dos doentes com HDA por UP.
A introdução da endoscopia terapêutica veio a constituir o maior progresso no
tratamento dos doentes internados por HDA. Actualmente o estado da arte obriga
a intervenção endoscópica num grupo de doentes bem definido ' doentes com
hemorragia activa ou com vaso visível, conseguindo-se uma hemostase em perto de
100% dos doentes e uma diminuição de recidiva hemorrágica, assim como do número
de unidades de sangue transfundidas e de intervenções cirúrgicas (12). Contudo,
a mortalidade dos doentes com HDA por úlcera péptica mantém-se estável, à volta
dos 10%, o que é atribuído à idade avançada e comorbilidades graves deste grupo
de doentes (4, 13). Apenas os estudos multicêntricos canadiano e italiano
recentemente publicados no American Journal of Gastroenterology,
respectivamente em 2004 e em 2008, referem uma taxa de mortalidade de 5,4 e
4,5% (14, 15).
O tipo de técnica endoscópica utilizada nos doentes que sangram por úlcera
péptica tem sido objecto de muitos estudos e meta-análises (16-25), sendo que
está actualmente recomendada a associação de 2 métodos endoscópicos ' injecção,
método térmico ou aplicação de clips (16-_18). Quando há persistência ou
recidiva da hemorragia, as recomendações sugerem a repetição da endoscopia e a
utilização de uma das técnicas endoscópicas (as mesmas da 1ª endoscopia ou
outra), sendo recomendado que as decisões sejam tomadas tendo em consideração a
idade e comorbilidades do doente, assim como as características da úlcera (9).
A utilização de cianoacrilato, como é descrita na série publicada neste número
do GE pelo Serviço de Gastrenterologia do Hospital de São Teutónio, em Viseu,
constitui um último recurso a utilizar num grupo de doentes com HDA por úlcera
péptica, que apresentem persistência ou recidiva hemorrágica e que constituem
um risco elevado para cirurgia. De facto, a utilização do cianoacrilato não é
tecnicamente difícil, desde que sejam seguidas as normas correctas de
utilização, mas pode complicar-se de embolização, perfuração e septicemias
graves, como os autores sublinham na discussão. O estudo de Lee KJ e col, em
que foi feita a comparação randomizada de injecção de soro loretado
hipertónico, mostra que os resultados são semelhantes no que concerne a
hemostase, com menos recidivas no grupo do cianoacrilato em doentes com
hemorragia activa. Os autores sublinham que neste último grupo ocorreu
embolização arterial em 2 doentes, um dos quais veio a falecer, enquanto que no
outro grupo não houve complicações (26). Kok sublinha mesmo que a utilização de
cianoacrilato nestes doentes só deve ser feita como último recurso antes da
cirurgia (27).
A taxa de complicações (25%) e a mortalidade (12,5%), verificadas nesta pequena
série publicada pelo Serviço de Gastrenterologia do Hospital de Viseu, reforça
a noção de que o cianoacrilato é uma alternativa à falência endoscópica das
técnicas actualmente disponíveis que só deve ser usada como último recurso, em
doentes de alto risco cirúrgico.
Considerando que o estudo de Lee KJ e col (26) mostrou que a injecção de
adrenalina associada ao soro cloretado hipertónico não foi seguida de
complicações, obtendo resultados semelhantes ao cianoacrilato no que concerne à
hemostase, embora com uma taxa de recidiva maior, parece razoável tentar a
injecção de adrenalina/soro cloretado hipertónico antes de, como último
recurso, usar o cianoacrilato.