Diarreia de causa particular num indivíduo imunocompetente?
Diarreia de causa particular num indivíduo imunocompetente?
INTRODUÇÃO
A prevalência do citomegalovírus (CMV) é bastante elevada (40-100%) na
população, mas a infecção é, assintomática, ou nalguns casos semelhantes a uma
síndrome mononucleósica
1
. Os casos graves de infecção pelo CMV atingem os imunodeprimidos, em
particular os com síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA),
transplantados, sob terapêutica imunossupressora (corticosteróides,
imunomoduladores) entre outros1. A colite a CMV no imunocompetente é uma
entidade rara em Portugal surgindo com maior frequência na gastrenterologia nos
doentes com doença inflamatória intestinal sob imunossupressores. Nos doentes
com mais de 55 anos a mortalidade é de 31,8%1.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino com 75 anos de idade, eurocaucasiana, admitida no
Serviço de Urgência por diarreia de 5-6 dejecções diárias, líquidas, diurnas e
nocturnas, com sangue escuro, sem pus ou muco, durante 4 semanas. A esta
associa-se dor abdominal, tipo cólica, em todos os quadrantes, sem irradiação,
que alivia parcialmente com paracetamol, não associada a tenesmo ou falsas
vontades, febre, náuseas, vómitos, anorexia ou emagrecimento; sem aftas,
artralgias, alterações cutâneas ou da visão. Negava viagens recentes a países
tropicais, toma de antibióticos, cirurgias anteriores, transfusões de sangue.
Antecedentes pessoais de: Diabetes Mellitustipo 2 (DM2); insuficiência cardíaca
(IC); insuficiência renal (IR) crónica; fibrilhação auricular (FA); hipertensão
arterial (HTA); medicada com insulina, metformina, furosemido, amiodarona,
cilazapril; sem etilismo ou toxicofilia.
Fig. 1 Colonoscopia: úlceras múltiplas segmentares.
Fig. 2. Intestino distal com inflamação crónica e alterações regenerativas (HE
40x)
Exame objectivo à entrada: obesa, descorada, desidratada, temperatura axilar
(Tax)=36,4ºC, TA: 85/45mmHg, FC+/- 56 bpm; ingurgitamento jugular de 3 cm a
45º; auscultação cardiopulmonar (ACP) - S1 e S2 arrítmicos, tons puros, sem
sopros e murmúrio vesicular diminuído no terço inferior do hemitórax esquerdo
com fervores crepitantes dispersos; observação abdominal: indolor, sem tumor
abdominal palpável ou organomegálias, ruídos hidroaéreos presentes e puros.
Edema dos 2/3 inferiores dos membros inferiores. Exame neurológico sumário:
doente sonolenta mas reactiva à estimulação verbal, sem défices motores ou
sensitivos.
Laboratorialmente destacou-se: hemoglobina (Hb) = 6,0 g/dl (12 ' 16),
hematócrito (Htc) = 18,6% (37 ' 47), VGM = 82,3fl (85 ' 100), HGM = 26,5pg (27
' 34), CHGM = 32,2g/dl (32 ' 36), Leucocitos = 4800/μL (4000 ' 10800) com 77,2%
(45 ' 72%) de neutrófilos, plaquetas = 194000/μL (150000 ' 500000), ferro = 23
mg/dl (50 ' 150), transferrina = 140g/L (200 ' 400), ferritina = 238,3 (15 '
300) ng/mL; doseamentos-vitamina B 12 = 505pg/mL (200 ' 900); ácido fólico =
4,3 ng/mL (6 ' 20); PCR = 16,3 (<0,5); ureia(U) = 181 mg/dl (17 ' 55);
creatinina(Cr) = 4,63 mg/dL (0,7 ' 1,3); sódio = 136 mEq/l (135 ' 152);
potássio(K+) = 6,6 mEq/l (3,5 ' 5,2); cloro = 108 mEq/l (95 ' 109); cálcio =
6,1 mg/dl (8,5 ' 10,5); fósforo = 4,7 mg/dl (2,2 ' 4,4); magnésio = 1,43 mg/dl
(1,5 ' 2,0); gasimetria de sangue arterial ' pH = 7,13 (7,35 ' 7,45); pCO2 =
44,8 mmHg (35 ' 45); HCO3 = 14,3 mmol/L (24 ' 34); pO2 = 30,2 mmHg (90 ' 110);
SaO2 = 54,8% (95 ' 99); urina II ' ρ = 1014, leucocitúria = 25/uL; glicose =
200mg/dL (60 ' 110); albumina = 2,4g/dl (3,0 ' 5,0); parâmetros de coagulação e
transaminases, gamaglutamil transpeptidase (gGT) e fosfatase alcalina normais.
Telerradiografia de tórax: hipotransparência do terço inferior do hemitórax
esquerdo; ECG: FA com resposta ventricular +/' 55 bpm; Ecografia renal: sem
alterações. Fez transfusão com 2U CE com recuperação do valor de Hb (Hb = 8,1g/
dL). Pela IR e acidose metabólica refractárias à terapêutica efectuou
hemodiálise, com melhoria (pH = 7,39; HCO3 = 22,2 mmol/L; U = 111 mg/dl; Cr =
2,74 U/L; K+ = 5,4). Função tiroideia: normal.
A tomografia computorizada (TC) toraco-abdomino-pélvica mostrou: nódulo de 2
cm, no segmento basal do lobo inferior esquerdo pulmonar com características
sequelares, restante exame sem alterações (sem massas nem adenopatias).
O teste de Mantouxfoi negativo. As hemoculturas e urocultura negativas;
coproculturas e pesquisa de ovos, quistos e parasitas ' negativas; serologias
para ' Yersiniaenterocolicae Campylobacterjejunii, negativas; serologia CMV '
(IgM = 1,15 negativa; IgG = 110 positiva); pesquisa da toxina de
Clostridiumdifficilenas fezes ' negativa. A serologia HIV 1/2 foi negativa e os
doseamentos de imunoglobulinas e caracterização das subpopulações linfocitárias
foram normais.
Fig. 3. Citomegalia com corpos de inclusão nucleares (HE 100x)
Fig. 4. Corpos de inclusão com imunomarcação positiva com anti-CMV (100x).
A colonoscopia mostrou: mucosa edemaciada e hiperemiada com úlceras de
diferentes tamanhos com distribuição segmentar, atingindo sobretudo o cólon
direito e válvula ileo-cecal, ileon terminal com aspecto erosionado.
Efectuaram-se biópsias seriadas em todos os segmentos com friabilidade.
O exame histopatológico revelou: mucosa intestinal distal com inflamação
crónica moderada, células com corpos de inclusão com imunomarcação positiva
para CMV compatível com colite a citomegalovírus.
A doente realizou terapêutica para a IC, IR, FA, HTA, DM2 tendo evoluído
favoravelmente sem, no entanto, ter ocorrido melhoria. Realizou ganciclovir 400
mg 12/12 horas endovenoso durante 21 dias tendo-se verificado, ao 5º dia
remissão da diarreia e melhoria da Hb (9,8g/dl). Manteve-se assintomática (3
meses); com serologia CMV (IgM negativa/ IgG positiva com título >250) e
colonoscopia de controlo sem evidência de lesões. Foi realizada a posterioria
entero-TC que não demonstrou lesões no delgado.
DISCUSSÃO
O CMV tem uma prevalência de 40 a 100% e pode causar doença grave por
reactivação de infecção latente, primo-infecção em indivíduos imunodeprimidos
ou superinfecção1-2. Nos imunocompetentes pode manifestar-se como síndrome
mononucleósica e a infecção severa é rara1-2. Quando afecta o tubo digestivo
afecta sobretudo o cólon (55%) ou o estômago (40%)
2-3
. No cólon manifesta-se com diarreia, hematoquézia, tenesmo, urgência
defecatória e dor abdominal1-2. Atinge sobretudo o cólon esquerdo e a pancolite
é rara
3
. O aspecto endoscópico pode variar desde eritema ligeiro, erosões mucosas,
ulceração profunda e tumor submucoso com úlcera ou até perfuração3. O
diagnóstico baseia-se na serologia, isolamento viral, detecção do antigénio
pp65 no sangue ou detecção viral em cultura, biópsia, imunohistoquímica ou PCR
(polymerasechain reaction)2. Do ponto de vista histológico, as células gigantes
com inclusões basofílicas intranucleares (owl'seye= olho de coruja) e por
vezes, citoplasmáticas no endotélio e células da lâmina própria e submucosa são
típicas1-2.
Perante o caso clínico apresentado de mulher de 75 anos, eurocaucasiana, com
diarreia crónica com sangue, com características de organicidade, com DM2, IC,
insuficiência renal crónica, anemia ferropénica, imagem sequela pulmonar na TC,
colocamos várias hipóteses diagnósticas.
A colite infecciosa (bacteriana / parasitária) é uma das hipóteses, contudo, as
coproculturas e pesquisa de ovos, quistos e parasitas foram negativas, tal como
as serologias para Yersíniaenterocólicae Campylobacterjejunii. A colite
pseudomembranosa foi excluída dada a pesquisa da toxina A nas fezes para o
Clostridiumdifficileser negativa.
A tuberculose disseminada (nódulo pulmonar sequelar) poderia ser uma hipótese,
pois esta bactéria atinge sobretudo a região ileo-cecal (devido a ser uma zona
de estase fisiológica, com elevada absorção de água e electrólitos e escassa
actividade bacteriana)
4
, mas também a sigmoideia, cólon ascendente e transverso, até pancolite4 e em
20% dos casos atinge o cólon de forma descontínua
5
. O teste de Mantouxe as hemoculturas para Mycobacteriumforam negativas, e a
histologia também excluí esta hipótese4-5.
A colite isquémica poderia apresentar-se desta forma, incluindo a distribuição
segmentar, no entanto, os locais mais afectados são o ângulo esplénico e
hepático, cólon descendente e sigmóide. Não estão descritos casos de pancolite
por isquémia, nem de atingimento ileal e a histologia excluiu esta hipótese.
A clínica, associada ao aspecto endoscópico pode, apesar da idade da doente
levar-nos a pensar em doença inflamatória intestinal. A distribuição segmentar
é típica de doença de Crohn (DC), tendo sido uma hipótese colocada. A
posterioricom o resultado histológico das biópsias, com a presença de células
com corpos de inclusão e a imunomarcação positiva para CMV excluiu esta
hipótese.
A colite a CMV num indivíduo imunocompetente (dada termos excluído
imunodeficiência primária e secundária, humoral e celular) é rara. Sabemos que
a Diabetes Mellitustipo 2 condiciona algum grau de imunossupressão, no entanto,
após estabilização dos valores da glicemia, a doente manteve a diarreia com as
mesmas características.
Não existem recomendações actuais para o uso de ganciclovir na colite a CMV nos
imunocompetentes6, mas também não existem contra-indicações ao seu uso pois o
benefício é desconhecido. Nestes doentes, a estabilização da função cardíaca,
renal e da diabetes leva à remissão6. No entanto, foi descrito que em doentes
com mais de 55 anos ou com comorbilidades (Diabetes Mellitus, insuficiência
renal, por exemplo), a terapêutica com ganciclovir é mandatória1 e a mesma foi
realizada nalguns casos descritos na literatura com eficácia. Assim, por não se
verificar melhoria, medicou-se com ganciclovir com remissão da diarreia e das
alterações endoscópicas.