Mucosa gástrica ectópica na ampola de Vater: Uma causa de ectasia da via biliar
INTRODUÇÃO
A mucosa gástrica ectópica (MGE) pode ser encontrada em todo o tubo digestivo,
desde o esófago até ao ânus. Ocasionalmente, é, também, identificada na via
biliar, mais frequentemente na vesícula, ou no pâncreas.
Em muitos casos é descoberta incidentalmente, em autópsia ou peças cirúrgicas.
A mucosa gástrica ectópica é, ainda, uma conhecida causa de hemorragia
gastrointestinal no divertículo de Meckel, de duplicações do intestino e,
excepcionalmente, pode apresentar transformação maligna.
Embora raramente sintomática, encontram-se descritos alguns casos de MGE com
localização diferente do divertículo de Meckel, em que a investigação surge na
sequência do aparecimento de sintomatologia clínica.
CASO CLÍNICO
Os autores descrevem o caso de uma doente, de 73 anos de idade, com
antecedentes de sigmoidectomia por adenocarcinoma do cólon bem diferenciado,
litíase renal, pancreatite crónica com diabetes mellitussecundária e
insuficiência cardíaca compensada. Da sua história pessoal salientava-se,
ainda, história de 2 internamentos (2006 e 2007) por úlcera péptica no bulbo
duodenal com hemorragia activa. Os seus hábitos farmacológicos não incluíam
toma recente ou abusiva de anti-inflamatórios tendo feito erradicação, com
terapêutica tripla, de Helicobacter pylori.
Na sequência de episódio de dor abdominal, tipo moinha, localizada no
hipocôndrio direito, recorreu ao Serviço de Urgência. Realizou controlo
analítico que apresentava elevação da PCR, sem elevação das enzimas de
colestase ou citólise. A ultrassonografia abdominal permitiu visualização das
vias biliares intrahepáticas não ectasiadas, vesícula biliar com parede
ligeiramente espessada e irregular em provável relação com processo de
colesterolose; a via biliar principal (VBP) apresentava dilatação de 14,2 mm
até à porção distal intrapancreática, sem evidência clara de conteúdo ecogénico
(Fig. 1). A tomografia computorizada revelou ectasia da VBP sem evidência de
conteúdo. A ecoendoscopia, utilizando um ecoendoscópio radial Pentax 3630 até
10 MHz, revelou, por abordagem duodenal: porção cefálica do pâncreas com
ecoestrutura ligeiramente heterogénea, algum grau de lobulação do parênquima,
pontos hiperecogénicos e irregularidade do canal Wirsunge ductos secundários; a
VBP apresentava cerca de 11 mm de diâmetro, identificando-se na sua porção
terminal, justa-papilar, uma imagem intraluminal com 8,6 mm, podendo
corresponder a vegetação e condicionando obstrução (Fig. 2 e 3). A área da
papila tinha aspecto habitual. Por abordagem gástrica identificou-se o corpo e
cauda do pâncreas com ecoestrutura discretamente heterogénea e canal
Wirsungirregular. Estes aspectos são característicos de pancreatite crónica.
Fig.1 – Ultrassonografia abdominal: visualização da via biliar principal
ectasiada (14.2 mm) até à porção distal intrapancreática, sem evidência de
conteúdo ecogénico. VBP – Via Biliar Principal; VP – Veia Porta.
Fig.2 e 3 – Ecoendoscopia usando ecoendoscópio radial Pentax 3630 UR até 10
MHz: por abordagem duodenal identifica-se a via biliar principal ectasiada com
cerca de 11 mm de diâmetro (setas amarelas), e na sua porção terminal uma
formação vegetante justa-papilar com 8.6 mm de diâmetro, condicionando
obstrução (setas azuis) - corte longitudinal (Fig. 2) e corte transversal (Fig.
3). VBP – Via Biliar Principal.
Na colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) visualizou-se papila
com aspecto normal, tendo sido canulada a VBP após pré-cutcom esfincterótomo. A
injecção de contraste evidenciou, no radiograma, VBP dilatada em toda a sua
extensão com uma imagem compatível com cálculo/vegetação imediatamente
adjacente à papila. As vias biliares intrahepáticas não estavam ectasiadas.
Efectuou-se esfincterotomia (ETE) seguida de várias passagens com balão sem
emissão de cálculos. Realizou-se ainda recolha de material para citologia com
escova e biópsias de tecido intrapapilar exposto com ETE. Os esfregaços obtidos
do escovado biliar apresentavam muitas células, com alguns linfócitos e células
do epitélio biliar isoladas, formando agrupamentos vários em “folhetos” sem
atipias. O estudo histológico das biópsias da ampola descreve mucosa de “tipo
gástrica do corpo” com ligeiras alterações inflamatórias inespecíficas,
hiperplasia de células oxifílicas (parietais) e algumas células principais.
Na endoscopia digestiva alta de controlo, realizada dois meses depois,
utilizando um duodenoscópio para adequada vizualização da ampola de Vater,
observou-se papila com aspecto habitual após ETE e boa drenagem biliar.
Realizaram-se múltiplas biópsias cuja análise anatomopatológica confirmou
presença de provável ectopia gástrica do “tipo do corpo” na mucosa da ampola
com sinais de ulceração associada.
Actualmente, 4 meses após o episódio álgico, e mantendo medicação com inibidor
da bomba de protões, a doente está assintomática, sem alterações analíticas,
nomeadamente das enzimas de colestase. Na ultrassonografia abdominal mantém
dilatação da via biliar principal embora menos acentuada (9 mm de maior
diâmetro). Foi solicitado estudo cintigráfico, com administração de 10mCi de
Tc99m, que evidenciou área de hipercaptação do radiofármaco na projecção do
duodeno que deverá corresponder à área de mucosa gástrica ectópica a nível da
ampola, não tendo sido identificadas outras áreas suspeitas de lesões da mesma
natureza (Fig. 4).
Fig.4- Cintigrafia com tecnécio: identificando área de hipercaptação do
radiofármaco na projecçãodo duodeno que se correlaciona com a presença de
mucosa gástrica ectópica conhecida.
DISCUSSÃO
A MGE pode ter origem congénita ou adquirida. Esófago, duodeno e divertículo de
Meckelsão as localizações mais frequentes da variante congénita.
As lesões adquiridas são mais comuns no jejuno e íleon onde a regeneração da
mucosa ocorre em lesões inflamatórias, como as enterites regionais. Neste caso,
a mucosa anormal é constituida principalmente por células secretoras de muco,
sendo as células parietais e principais raramente observadas. Alguns autores,
como Lessellse Martin1, sugeriram metaplasia como um termo mais adequado para
esta condição que representa, afinal, a substituição da mucosa nativa por
epitélio gástrico após inflamação ou processo péptico, evitando assim confusões
com a verdadeira ectopia gástrica.
Por outro lado, se o tecido consiste em mucosa gástrica fúndica bem
diferenciada com os seus elementos glandulares habituais, incluindo células
parietais e células principais, a origem será provavelmente congénita.
Em 1927, Taylor2 descreveu, numa série de mais de 150 autópsias, dois casos com
achado de glândulas gástricas ectópicas na mucosa duodenal. Este foi o primeiro
relato de lesões de MGE visíveis macroscopicamente, descritas pelo autor como
pequenas áreas discretamente elevadas com um aspecto incaracteristicamente
irregular. Histologicamente, os nódulos eram compostos por glândulas fúndicas
com células parietais e principais. A perfeita diferenciação e organização
deste epitélio denunciaram a sua indubitável origem congénita. Num dos casos,
uma úlcera péptica foi identificada na mesma porção duodenal, distal à MGE.
Wolff3 publicou uma série com 87 casos de MGE no tubo digestivo, 15 dos quais
envolvendo o duodeno. O autor subdividiu o grupo em dois subgrupos de MGE
congénita e adquirida, sendo a última representativa dos casos em que a mucosa
ectópica é identificada no contexto de um processo regenerativo anómalo de que
é exemplo o epitélio de tipo pilórico que surge nos segmentos intestinais
atingidos pela doença de Crohn. Na perspectiva de Wolff, esta descrição
corresponde provavelmente a um fenómeno adquirido, e apenas a mucosa fúndica
completamente diferenciada deverá ser interpretada como ectopia congénita.
No nosso caso, é mais provável tratar-se de origem congénita pois foram
observadas células principais e parietais. A MGE pode apresentar-se em
associação com lesões da mucosa, como úlcera cuja origem é, provavelmente,
secreção de pepsina ácida pela MGE podendo o doente ter episódios recorrentes
de hemorragia crónica.
Em 1982, Agha et al4, realizaram um estudo envolvendo 25 doentes com MGE no
bulbo detectada endoscopicamente e em 17 confirmada por biopsia. Quase todos os
doentes apresentavam sintomas dispépticos ou hemorragia gastrointestinal, e em
2 (8%) havia evidência de úlcera duodenal. O tratamento médico com anti-
histamínico H2 (cimetidina) foi eficaz na cicatrização das úlceras e remissão
dos sintomas, sem recorrência apesar da persistência da mucosa ectópica.
Hoedemaeker5 examinou o coto duodenal de 158 peças cirúrgicas de gastrectomia e
descobriu 52 casos (30%) com células parietais ou principais. Estes eram mais
comuns em doentes com história de úlcera duodenal, sendo postulada uma possível
relação com hiperacidez. Neste contexto, é pertinente a existência de
antecedentes de doença ulcerosa nos antecedentes da doente do caso descrito,
não havendo, contudo, factores de risco identificados, nomeadamente história de
toma de AINEs. Poderá a existência de mucosa gástrica a nível da VBP distal ter
conduzido a secreção de ácido que agrediu a mucosa duodenal propiciando a
formação de úlceras neste segmento? Parece, efectivamente, que este é um
mecanismo fisiopatológico possível. A cintigrafia com tecnécio é um exame ideal
para detectar focos de MGE. No divertículo de Meckel apresenta uma
sensibilidade de 85%, especificidade de 95% com uma precisão diagnóstica de
cerca de 90%.
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O achado de MGE no duodeno é uma condição rara e geralmente congénita; estima-
se uma prevalência, para a localização bulbar, que varia entre 0,5 a 2%. Como é
geralmente um achado acidental não admira que seja uma entidade
subdiagnosticada. Perante a histologia descrevendo MGE a nível da VBP distal,
os autores decidiram realizar estudo cintigráfico, não só com o objectivo de
comprovar a natureza do tecido mas sim procurar outros possíveis focos de
ectopia. Com efeito, não foram identificadas outras áreas suspeitas de lesões
da mesma natureza.
A mucosa gástrica ectópica no bulbo duodenal apresenta geralmente um aspecto
endoscópico típico caracterizado por áreas de coloração vermelho-salmão. A
aplicação de solução de vermelho de Congo 1% como marcador pH-sensível, durante
a endoscopia, resulta na descoloração negra da mucosa gástrica ectópica
produtora de ácido. Contudo, a análise histológica continua a ser o gold
standard para o diagnóstico, permitindo diferenciá-la de outras entidades que
cursam com mucosa duodenal polipóide ou nodular, tais como: hiperplasia das
glândulas de Brunner ou folículos linfóides, adenomas ou síndromes polipóides.
Em 1977, Kartzsch7 descreveu 14 lesões polipóides no duodeno, identificadas
durante a realização de 3140 endoscopias. Em oito casos foi identificada mucosa
gástrica mas apenas 4 tinham características de mucosa fúndica. Um dos casos
tinha bulbite erosiva e em nenhum foi identificada doença ulcerosa. A breve
descrição anatomopatológica efectuada não permite concluir sobre a existência
de verdadeira ectopia nos 4 casos descritos. Tendo os autores feito uma revisão
criteriosa da literatura, parece ser muito escasso o número de casos de MGE com
localização duodenal descritos nas últimas décadas. Na verdade, embora alguns
possam descrever verdadeira ectopia congénita, a grande maioria deverá
representar a metaplasia descrita por Wolff.3
Relativamente, ao achado de MGE a nível da VBP/ampola de Vater, os casos
descritos são ainda mais escassos. Com efeito, a pesquisa no PubMed conta com
apenas 4 artigos. Em 1982, Blundelet al 8, descrevem o único caso com achado de
MGE na ampola de Vater, identificada em lesão polipóide condicionando obstrução
da via biliar. Em 1990, Evans et al9 descreveram o primeiro caso de MGE na via
biliar principal. Três anos mais tarde, Madrid et al10 publicaram o caso de uma
criança com 3 anos, apresentando dor abdominal e icterícia, cuja investigação
clínica revelou dilatação das vias biliares intra e extrahepáticas e evidência
de uma massa bem diferenciada preenchendo o lúmen da porção distal da VBP. A
vesícula e parte da via biliar extrahepática foram ressecadas e a análise
histológica identificou MGE em ambas as peças operatórias.
Em 2005, Quispel et al11 descreveram o caso de um homem com 29 anos com quadro
de dor abdominal, icterícia, acolia e colúria, e antecedentes de episódio
semelhante 4 anos antes interpretado como obstrução transitória da VBP por
passagem de cálculo. A ultrassonografia abdominal revelou dilatação da via
biliar intrahepática e 1/3 proximal da VBP. A CPRE e ecoendoscopia não
permitiram esclarecer a etiologia da estenose, e a ultrassonografia intraductal
favoreceu a origem maligna da lesão. A laparotomia com excisão da vesícula e
parte da VBP permitiu diagnóstico de MGE, sem inflamação ou sinais de
malignidade. Nos antecedentes pessoais da doente salientava-se pancreatite
crónica de etiologia não esclarecida com longa evolução conduzindo ao
desenvolvimento de diabetes mellitus secundária. Na verdade, não foi
identificado qualquer factor de risco para pancreatite. Desta forma, pode
admitir-se a obstrução parcial da porção terminal da VBP, envolvendo a papila e
o esfíncter de Oddi, ao longo de vários anos poderia ter conduzido a
dificuldade de drenagem/obstrução intermitente do canal Wirsung e ter
propiciado uma reacção inflamatória crónica do pâncreas que confluiu nos
aspectos característicos de pancreatite crónica, evidenciados pela
ecoendoscopia. Poderá esta ser uma causa rara de pancreatite crónica? É uma
questão que os autores deixam em aberto… acreditando que pode, efectivamente,
tratar-se de uma causa de pancreatite crónica ainda não descrita.
CONCLUSÃO
Casos isolados de MGE têm sido descritos em todos os segmentos do tracto
gastrointestinal, desde o esófago ao ânus. Estes casos são interpretados como
tendo origem congénita relacionada com desenvolvimento embrionário anormal. As
localizações mais comuns são o esófago, divertículo de Meckel e quistos de
duplicação entérica. Contudo, pequenos ilhéus de MGE foram descritos na
vesícula e vias biliares, bem como nas vias respiratórias, coluna vertebral e
bexiga. Esta breve revisão poderá ajudar a colmatar a escassez de artigos e
revisões publicadas nesta área, nomeadamente em língua portuguesa.
Simultaneamente, poderá ajudar a clarificar alguma confusão à volta deste tema.
O que se pode concluir é que, na verdade, muitos autores de artigos e séries
publicadas parecem ter confundido durante várias décadas a verdadeira ectopia
gástrica congénita com aquela considerada adquirida, que poderá ser melhor
definida por metaplasia uma vez que não representa mucosa gástrica fúndica bem
diferenciada. Contudo, é importante estarmos atentos aos casos em que esta
condição anatomopatológica possa estar presente. Com a publicação deste caso,
os autores pretendem divulgar uma entidade nosológica nem sempre diagnosticada,
de modo a obter um conhecimento mais aprofundado e complexo desta entidade, e
das implicações que ela possa ter.