Modelos experimentais em oncologia: O contributo da cultura de células para o
conhecimento da biologia do cancro
Introdução histórica
No século xix, Sydney Ringer, ao desenvolver soluções salinas capazes de
assegurar as necessidades vitais de órgãos isolados do organismo, lançou as
bases do que viria a ser a cultura de células. Todavia, foi Wihelm Roux quem
conseguiu pela primeira vez, em 1885, manter vivas durante vários dias células
embrionárias isoladas de pinto numa solução salina aquecida1.
No início do século xx, Ross Harrison planeou e aplicou a metodologia da
cultura de tecidos, de modo a estudar o comportamento das células animais
quando livres das restrições impostas pelo ambiente em que naturalmente existem
em condições de homeostasia, mas tam bém sob o stressde uma experiência
laboratorial. Estas técnicas, inicialmente aplicadas a fragmentos de tecidos
sólidos, sofreram avanços significativos nas décadas de 40 e 50, altura em que
a cultura de células previamente dispersadas passou a ter grande divulgação,
impulsionadas pelas pesquisas em virologia devido à necessidade de produzir
vacinas antivirais em larga escala, nomeadamente com a vacina Polio Salk, mas
também pelas pesquisas iniciadas em oncologia, dada a crescente necessidade de
um conhecimento mais profundo nesta área2.
Cultura de células
Princípios básicos
Há algumas décadas, a cultura de células era vista como algo esotérico, cuja
finalidade e aplicabilidade práticas não se conseguia adivinhar. Actualmente, é
uma técnica largamente reconhecida e rotineiramente utilizada no laboratório,
particularmente em investigação.
Para o sucesso da cultura de células, o cumprimento das regras e cuidados de
assepsia é fundamental, uma vez que cerca de 70% dos problemas que surgem são
devidos a contaminações3.
A cultura de células animais (cultura de tecidos ou de células sanguíneas/
hematopoiéticas ou outras) inicia-se pela dispersão das células obtidas a
partir de um fragmento de tecido (hematopoiético, muscular, epitelial ou outro)
num meio nutritivo apropriado, colocado em frasco ou placa de cultura, após o
que se verifica que a maioria das células adere à superfície sólida e cresce em
monocamada ou em suspensão. A obtenção de uma população ou cultura de células é
possível de várias formas, das quais se indicam duas:
' Crescimento ou migração de células de um fragmento de tecido ' onde a
selecção se baseia na capacidade virtual de as células migrarem da amostra de
tecido;
' Dispersão celular ' cuja selecção resulta da capacidade de as células
sobreviverem à metodologia aplicada e que pode ser a desagregação enzimática ou
mecânica do tecido.
Comparativamente ao primeiro método, a dispersão celular, apesar de mais
trabalhosa, permite obter, em menos tempo, um maior número de células
representativas de todo o tecido3.
Para a desagregação enzimáticaa tripsina é a enzima mais usada, uma vez que é
bem tolerada pela maioria das células e eficaz na maioria dos tecidos e a sua
actividade residual pode ser neutralizada pelo soro do meio de cultura ou por
um inibidor sintético adicionado.
As desvantagens deste método são sobretudo a possível lesão celular e a
eventual ineficácia em determinados tecidos, particularmente quando apresentam
matriz rica em colagénio e fibrose, sendo necessário, neste caso, utilizar
outras enzimas, como a colagenase, a pronase e a dispase, isoladas ou em
associação3.
A desagregação mecânicapode ser feita por compressão das células contra uma
peneira com malha de diâmetro sucessivamente menor, passando as células através
de uma seringa e agulha ou simplesmente pipetando repetidamente. Esta técnica
tem a vantagem de ser mais rápida do que a dissociação enzimática, embora cause
mais lesões mecânicas às celulas3.
A cultura de células pode ser feita em monocamada ou em suspensão. Na cultura
em monocamada, as células vão aderir a um substrato e propagam-se. É o método
mais usado e tem como condição essencial a adesão ao substrato, ancoragem.
Esta dependência da ancoragem é um pré-requisito indispensável à proliferação
celular, nesta metodologia. A cultura em suspensãoé usada para células que
sobrevivem e proliferam sem necessidade de adesão (independente da
ancoragem). É o caso das células hematopoiéticas, das linhas celulares
transformadas ou das células derivadas de alguns tumores malignos de órgãos
sólidos3.
A Fig. 1 resume a forma de obtenção de culturas celulares primárias e
secundárias (linhas celulares) a partir de um fragmento de tecido. Uma cultura
celular secundária é uma linha celular resultante da manutenção da cultura
celular primária.
Fig. 1' Obtenção de uma linha celular a partir de um tecido. As células obtidas
por desagregação do tecido são colocadas em cultura com os nutrientes adequados
(cultura primária). Posteriormente, são feitas subculturas com baixa densidade
celular para obter culturas secundárias e estabelecer uma determinada linha
celular
Quando a cultura primáriase mantém por algumas horas, as células com capacidade
de proliferar aumentam em número, enquanto as que não sobrevivem às condições
usadas morrem; outras há que sobrevivem, mas não proliferam. Assim que toda a
camada de substrato da cultura for ocupada e as células confluírem,
estabelecendo contacto umas com as outras, surge a necessidade de proceder a
subculturas sucessivas.
Nestas, a fracção de crescimento é mais elevada, ocorrendo a selecção de
células com capacidade proliferativa em detrimento das outras, que são
eliminadas. Assim, de uma cultura muito heterogénea, contendo vários tipos de
células do tecido original, emerge uma linha de células mais homogénea. Obtém-
se desta forma uma linha celular por subcultura de uma cultura primária, à qual
é necessário renovar periodicamente o meio de cultura. Quando apenas é
seleccionada uma linhagem celular, designa-se por célula strain3.
Para a manutenção das células em cultura é necessário que a incubação ocorra
numa atmosfera apropriada e controlada quanto à temperatura, à humidade e à
composição da fase gasosa. A maioria requer uma atmosfera pobre em oxigénio,
embora variável de acordo com as necessidades específicas das células em causa.
A concentração de CO2, superior à da atmosfera normal, é igualmente fundamental
para o sucesso das culturas celulares, sendo frequentemente necessário
adicionar este gás à atmosfera em que as células se encontram3.
O meio de cultura escolhido é igualmente fundamental e indispensável, uma vez
que é este que fornece nutrientes, hormonas, factores de crescimento e outros
substratos essenciais à expressão de funções especializadas das células,
sustentando o seu crescimento contínuo, substituindo e reproduzindo, o melhor
possível, as condições in vivo, uma vez que as culturas de células se
apresentam como alternativa aos estudos em modelos animais, reproduzindo in
vitroas condições in vivo3.
Diferenciação celular
As primeiras células de um embrião são células estaminais totipotentes, com a
capacidade de originar todas as células do organismo.
Estas células primordiais vão diferenciar'se em células multipotentes, com
diferenciação mais restrita, que dão origem a células estaminais teciduais.
Todas as células estaminais têm a capacidade de se dividir, originado células
estaminais adicionais e células comprometidas com a diferenciação; estas
últimas podem eventualmente parar de se dividir e entrar em apoptose
4,5
. Assim, todas as células do nosso organismo têm origem em células estaminais
organoespecíficas que se diferenciam nos tipos celulares que compõem cada
órgão. Estas células estaminais tecidoespecíficas distinguem-se das células
estaminais embrionárias pelo facto de a sua diferenciação ficar limitada aos
tipos celulares de um determinado órgão (Fig. 2)3.
Fig. 2' Diagrama esquemático das possíveis vias de diferenciação das células
estaminais embrionárias (cee). As cee podem dar origem a três camadas
germinativas, endoderme, mesoderme e ectoderme, durante o desenvolvimento
embrionário. Destas camadas vão originar-se as células que constituem os
tecidos/órgãos do organismo.
(Adaptado e modifi cado de Mimeault M, et al., 2006 )
A diferenciaçãocelular é o processo que conduz à expressão fenotípica das
propriedades que caracterizam uma célula madura in vivo, a partir duma célula
indiferenciada. Este processo nem sempre está completo ou é irreversível. Além
disso, com a diferenciação, a capacidade de divisão celular diminui.
No entanto, em muitas células estes dois processos são incompatíveis, o que
porém não acontece em alguns tipos de células tumorais3.
O compromisso com determinada diferenciação implica a progressão inexorável de
uma célula estaminal para uma linha celular definida e particular e, portanto,
com um potencial de diferenciação limitado3. Alguns estudos recentes comprovam
que algumas células estaminais adultas podem dar origem a tecidos distintos
daqueles de onde foram obtidas, desde que as condições experimentais sejam
particulares. Este processo designa-se por transdiferenciação3.
A diferenciação terminalreflecte o processo segundo o qual a célula progrediu
para uma linhagem particular até ao momento em que o fenótipo maduro se
encontra estabelecido, e a partir do qual não é possível progredir mais. A
desdiferenciaçãocorresponde à perda irreversível das características
fenotípicas de uma célula madura. Refere-se à perda da diferenciação do tecido,
tal como sucede quando este se torna maligno ou cresce em cultura, tratando-se
de um fenómeno adaptativo3.
Identificação celular
Muitas funções celulares especializadas são igualmente expressas in vitro, o
que é de grande relevo na cultura de células. De facto, se as propriedades das
células diferenciadas em cultura forem perdidas, torna'se complicado relacionar
essas células com as células funcionais do tecido de onde foram extraídas. É
necessário usar marcadores estáveis.
A identidade de uma cultura é definida pela sua linhagem in vivo, isto é,
hematopoiética, glial, entre outras, mas também pelo seu estádio de
diferenciação (posição na linhagem), ou seja, se é célula estaminal, célula
precursora de linhagem tissular ou célula madura diferenciada. A fonte da
cultura também determina o tipo de componentes tissulares/celulares que devem
estar presentes.
Assim, linhas celulares derivadas de tecido embrionário devem conter células
estaminais e células precursoras de linhagem e serem capazes de um maior nível
de autorenovação do que as culturas derivadas de tecido adulto3.
Ao contrário da cultura de células, a cultura de órgãos tem oferecido grandes
dificuldades relacionadas sobretudo com a impossibilidade prática de se
reproduzir um elevado número de culturas idênticas e pela heterogeneidade da
amostra, essencial para a manutenção do fenótipo do tecido. A realização destas
culturas exige um elevado nível de conhecimento e experiência, grande dispêndio
de meios e de material para produção de pequenas quantidades de tecido com
elevada instabilidade celular. Por estas razões, recorre-se geralmente à
cultura de células. No entanto, as culturas de órgãos têm vantagens
relativamente aos estudos in vivo, nomeadamente quanto ao controlo do ambiente
envolvente, à caracterização e à homogeneização da amostra e ao custo
inferior3.
A alteração de uma cultura celular, que dá origem a linhas celulares contínuas
e imortalizadas, é designada por transformação in vitro, e pode ocorrer
espontaneamente, ser induzida quimicamente ou recorrendo a vírus.
Este processo está, contudo, associado a um aumento da tumorigénese. De facto,
a maioria das células de linhas contínuas tem propriedades idênticas às das
células malignas, como por exemplo a diminuição da necessidade de factores de
crescimento3.
Aplicações da cultura de células em oncologia
Cultura de células estaminais
A cultura de células estaminais humanas, apesar de levantar questões éticas e
legais, vem colmatar algumas limitações inerentes aos restantes modelos de
cultura de células.
Contudo, a aplicação das pesquisas efectuadas com estas células nos diferentes
campos da medicina, desde a prevenção ao diagnóstico, passando pelo tratamento,
obriga a que se aprofundem os conhecimentos sobre as suas propriedades
biológicas5.
As células estaminais são células indiferenciadas, com capacidade de divisão e
renovação ilimitada, que podem originar várias linhas celulares, ou células
progenitoras de linhagem, contribuindo assim para a homeostasia celular e para
a reparação tecidular após uma lesão. Assim, dão origem a células estaminais
adicionais, de forma a manter o seu poole a células-filhas comprometidas com a
diferenciação nos vários tipos celulares do organismo4. Estudos efectuados em
embriões permitiram identificar diferentes tipos de células estaminais
existentes em tecidos fetais, no sangue do cordão umbilical e em nichos
celulares específicos de muitos tecidos/órgãos de mamíferos adultos; exemplos
destes locais são a medula óssea, o cérebro, o olho, a pele, o coração, os
rins, o tubo digestivo, o pâncreas, o fígado, a mama, os ovários, a próstata,
os testículos e o pulmão6.
No entanto, as células estaminaiscom potencial mais abrangente são as
embrionárias. Estas células derivam da massa interna do blastócisto e vão dar
origem aos 276 tipos de células diferentes do corpo humano. São células
pluripotentes, e não totipotentes, como é o caso do zigoto.
À medida que o desenvolvimento do organismo evolui, o potencial pluripotente
diminui, ficando consignado ao tecido de onde as células provêm, que se
diferenciam preferencialmente em células do mesmo7, 8.
Algumas células estaminais, como as hematopoiéticas, têm uma elevada taxa de
replicação, de forma a assegurarem um número elevado de leucócitos, eritrócitos
e plaquetas. Já as células estaminais da pele e do cólon, por exemplo,
apresentam um crescimento mais lento, mas constante. Há outras, nomeadamente as
células estaminais adultas, que se mantêm quiescentes por períodos de tempo
mais ou menos longos, tornando-se activas quando estimuladas por hormonas/
factores de crescimento ou por lesão dos tecidos4, 6.
Em virtude das diferentes propriedades que caracterizam os vários tipos de
células estaminais, temos que considerar as vantagens e as desvantagens da sua
utilização em cultura. As vantagens das células estaminais embrionáriassão:
possibilidade de se isolar uma população celular pura com pluripotência e
crescimento indefinido, onde a elevada expressão de telomerases é uma
evidência6.
As desvantagens que apresentam são: a presença de marcas imunológicas do
tecido/órgão dador, a necessidade de se controlar o crescimento para evitar o
aparecimento de clones celulares malignos, a necessidade de se controlar a
diferenciação ao longo da via apropriada e a expressão de genes embrionários/
fetais3, 7, 8.
Por outro lado, as células estaminais somáticaspodem ser utilizadas para
transplantes autólogos sem reacção imunológica, expressam genes adultos, têm
capacidade de desdiferenciação em células pluripotentes e apresentam
desenvolvimento plástico/flexível.
As grandes desvantagens destas células estaminais relacionam-se com a difícil
obtenção de populações celulares puras, a ausência de crescimento indefinido in
vitro, a capacidade de desencadearem reacções alogénicas e a dificuldade de
manutenção num estado indiferenciado em cultura durante longos períodos
de tempo. Este último aspecto dificulta a sua utilização com objectivos
terapêuticos, em virtude da senescência celular3, 7, 8.
As células estaminais podem ser obtidasa partir do sangue do cordão umbilical,
da medula óssea e do sangue periférico, sendo este último método o mais
utilizado actualmente.
Apesar de a colheita a partir da medula óssea ser a mais invasiva, é, em
contrapartida, a que permite obter maior quantidade de células estaminais3, 9.
O sangue do cordão umbilicaltem a vantagem de conter maior número de células
hematopoiéticas por unidade de volume, comparativamente com o sangue periférico
e a medula óssea. A colheita, feita após o nascimento, é indolor e sem risco,
quer para o recém-nascido quer para a mãe, e as células estão imediatamente
disponíveis para transplante. Este método está associado a menor incidência de
doença aguda do enxerto contra hospedeiro, a maior tolerância em termos de
compatibilidade HLA e a menor risco de complicações infecciosas9.
A colheita de células estaminais do sangue periféricotem a vantagem de ser um
método pouco invasivo e que permite contornar o pequeno número de células
existentes em circulação pela colheita de maior quantidade de sangue e/ou
cultura das células. Outra possibilidade de aumentar o número de células
estaminais no sangue periférico é a sua mobilização, à periferia, da medula,
por acção de factores de crescimento3.
A utilização de células estaminais no tratamento de múltiplas doenças, a
terapia celular, tem sido particularmente interessante em várias áreas médicas
e oncológicas em geral3, 7, 8, 10.
A utilização de células estaminais na investigação, quer em investigação
básica, quer aplicada, tem permitido o estudo dos factores e mecanismos
genéticos que determinam a diferenciação celular e a especialização dos
tecidos. Permite ainda a identificação da origem bioquímica e molecular de
algumas
doenças resultantes da divisão celular anormal ou da deficiência nos mecanismos
de diferenciação. A sua utilização tem permitido também o desenvolvimento de
novos fármacos dirigidos aos defeitos celulares e moleculares e, neste sentido,
podem ainda ser usadas como modelos celulares para testar o efeito ou a
toxicidade de fármacos, quer em substituição quer como complemento dos sistemas
in vitro,ou dos modelos animais3.
Cultura de células tumorais
A cultura de células tumorais, sobretudo no caso de tumores humanos
espontâneos, apresenta problemas semelhantes aos da cultura de células
especializadas do tecido normal. As células tumorais têm que ser separadas das
células do tecido conjuntivo normal, preferencialmente usando um meio de
cultura apropriado para células neoplásicas. Esta dificuldade acentua-se quando
o propósito é cultivar um tipo específico de células.
De facto, as neoplasias são geralmente compostas por uma grande variedade de
células, tornando assim mais difícil a representatividade de reprodutibilidade
da amostra.
O problema da selectividade é particularmente importante quando as amostras são
recolhidas de metástases secundárias. Estas, apesar de crescerem melhor, podem
não ser representativas do tumor primário ou mesmo das outras localizações
secundárias do tumor. No entanto, as características dos tumores com uma grande
autonomia e capacidade de dar origem a linhas celulares imortais fazem com que
seja possível uma vasta investigação, independentemente da incerteza quanto à
relação entre o tumor estudado e aquele que lhe deu origem3.
É provável que uma parte das células neoplásicas em cultura tenha uma esperança
média de vida limitada devido a alterações genéticas de novo, à diferenciação
terminal ou à senescência natural. Além disso, a diluição da cultura, ao
reduzir o número de células e, consequentemente, a interacção celular, pode
comprometer a sua sobrevivência.
Por outro lado, a capacidade letal do tumor relaciona-se com a sua capacidade
de infiltração e de crescimento descontrolado, que pode residir num pequeno
grupo de células estaminais transformadas, tão pequeno que a diluição
subsequente à remoção do tecido original impeça a sua sobrevivência3.
Por outro lado, o cancro resulta da desregulação da proliferação e da apoptose,
bem como da falência dos mecanismos reguladores da diferenciação celular
normal. Há evidências de uma relação inversa entre a capacidade de
diferenciação e o grau de malignidade, facto que justifica a aplicação de
medidas terapêuticas que induzem as células tumorais a diferenciar-se.
Aparentemente, as células tumorais podem manter a capacidades de responder a
indutores de diferenciação, o que nem sempre se verifica em células normais.
Uma vez que as células tumorais são capazes de se diferenciarem in vitro, é de
certa forma inesperado que não o façam in vivo, a não ser que o processo de
diferenciação não esteja completo e continue a ser possível. Outra explicação
relaciona-se com a existência de um compartimento de células estaminais
insensíveis ao feedbackinibitório ou outras formas de regulação, resultando
numa proliferação descontrolada, independentemente da diferenciação celular3.
Neste sentido, a contribuição de vários estudos utilizando a cultura de células
tem sido uma ferramenta importante, ou pelo menos complementar, na clínica
oncológica. De facto, este modelo experimental tem permitido o estudo dos
mecanismos moleculares envolvidos na carcinogénese e a identificação de
marcadores de diagnóstico e prognóstico, úteis para a decisão terapêutica (por
exemplo, o receptor Herb-2 e o cancro da mama, a translocação 9,22 e a LMC e a
LLA, as mutações no receptor do factor de crescimento da epiderme [EGF-R] e o
cancro do pulmão)3, 10.
Todavia, para que a cultura de células seja aceite como uma fonte de marcadores
de prognóstico e da eficácia terapêutica, têm que se considerar diversas
regras. Assim, é importante a standardizaçãodos métodos usados, as várias
análises, a definição precisa dos subgrupos de doentes e a definição dos
objectivos, bem como das condições económicas e logísticas3.
Somente desta forma se pode aceitar a cultura de células como modelo útil para
a investigação de novos marcadores de diagnóstico, orientação terapêutica e
avaliação do prognóstico de inúmeras patologias do foro oncológico3.
Cultura de células tumorais em pneumologia
O cancro do pulmão é um problema importante de saúde pública mundial, sendo
responsável por uma das maiores taxas de mortalidade por cancro em ambos os
sexos.
No carcinoma pulmonar de não pequenas células (CPNPC), o tipo de cancro
pulmonar que apresenta a maior tendência para metastizar e recidivar, uma das
principais razões para a elevada mortalidade é o facto de o diagnóstico ser
efectuado num estádio avançado da doença, o que, associado às comorbilidades
relacionadas com a idade dos doentes (mais de 50% tem mais de 65 anos e cerca
de 30% mais de 70 anos aquando do diagnóstico), condiciona a eficácia e a
tolerabilidade à quimioterapia actualmente disponível
11,12
.
O desenvolvimento de técnicas e metodologias que facilitem o diagnóstico
precoce e, ao mesmo tempo, a orientação da terapêutica para alvos moleculares
de forma mais individualizada/personalizada, constituirá um progresso
substancial no combate a este tipo de cancro, com benefícios claros na
sobrevivência e na qualidade de vida dos doentes11,13.
A cultura de células poderá constituir um valioso auxiliar à prática clínica em
pneumologia oncológica, uma vez que permitirá o conhecimento e a compreensão
das alterações genéticas e do comportamento biológico do cancro do pulmão.
Abre-se, assim, caminho à identificação de marcadores moleculares de
diagnóstico, à identificação de novos alvos terapêuticos e ao desenvolvimento
de novos fármacos, dirigidos especificamente às vias de transdução de sinal
intracelular, relacionadas com a proliferação, a diferenciação e a morte
celular das células cancerosas
14,15,16
.
A sobreexpressão do receptor do factor de crescimento epidérmico (EGFR),
frequente em diversas neoplasias malignas sólidas, onde está implicada na
proliferação celular, na angiogénese e na metastização, é comum no CPNPC e
relaciona-se com a resistência à quimioterapia e ao mau prognóstico, pelo que é
um alvo terapêutico importante no tratamento desta patologia17.
A cultura de células de linhas celulares de CPNPC tem-se mostrado um modelo
muito útil para estudar a acção e a resposta a novos agentes terapêuticos, como
aos inibidores da tirosina quinase (ITC), particularmente o anti-EGFR
erlotinib, aprovado em 2004 pela em 2005 pela Agência Europeia de Medicamentos,
para o tratamento de CPNCP em estádios avançados, após pelo menos uma linha de
quimioterapia. A mesma metodologia revela-se igualmente útil para estudos
relacionados com a resistência à quimioterapia e a identificação de novas
abordagens diagnósticas, facilitando também o estadiamento e o planeamento da
terapêutica com maior exactidão13,18,19.
A cultura de células tem também sido de grande utilidade em estudos de
metastização. Como é sabido, o desenvolvimento e o crescimento dos tumores
sólidos está dependente da neoangiogénese, um processo iniciado pela libertação
de factores pró-angiogénicos pelo próprio tumor20. Deste modo, a inibição deste
processo constitui uma estratégia terapêutica-chave e uma promessa de optimismo
para o tratamento do cancro do pulmão. Os estudos efectuados recorrendo ao
modelo da cultura de células permitiram identificar os mecanismos de acção, com
elevada especificidade, no processo da angiogénese de várias moléculas, algumas
das quais estão já aprovadas para o tratamento destes cancros, como por exemplo
o anticorpo monoclonal Bevacizumab20.
Cultura de células dendríticas
As células dendríticas (CD) são células apresentadoras de antigénio. Um dos
principais papéis destas células é o processamento e a apresentação de
antigénios a outras células do sistema imunitário, um passo crucial no
desenvolvimento de uma resposta imunitária adequada, desencadeando a activação
de células T, cujo receptor é específico para o antigénio particular que está a
ser apresentado.
A resposta imunitária resultante, mediada pelos linfócitos T citotóxicos, é o
principal meio pelo qual as células tumorais podem ser destruídas pelo
organismo, uma vez que produzem antigénios que podem ser reconhecidos e
destruídos por este mecanismo.
A ideia de utilizar o sistema imunitário como arma contra o cancro tem
motivado múltiplos trabalhos de investigação nas últimas décadas. Actualmente
explora-se a administração de células dendríticas modificadas em cultura como
uma potencial vacina terapêutica para obter regressão tumoral, isoladamente ou
em combinação com as terapêuticas actuais.
Na sua maioria, estas vacinas são produzidas a partir de células, obtidas por
recolha de sangue periférico, posteriormente cultivadas e expostas a antigénios
tumorais21,22,23.
Os antigénios tumorais variam substancialmente entre os diferentes tipos de
cancro e para cada doente em particular. O que se pretende é criar uma vacina a
partir de antigénios tumorais específicos de um doente, assegurando que a
resposta imunitária, se ocorrer, seja dirigida às células tumorais desse
indivíduo. A eficácia será tanto maior quanto mais precisa for a relação entre
a vacina e o hospedeiro21.
Actualmente, há três métodos para expor as CD aos antigénios tumorais ex-vivo:
' Peptide-pulsingutilizando antigénios isolados, determinados previamente; é o
método mais directo;
' Exposição das CD aos fragmentos das células tumorais do próprio doente, o que
permite o contacto com todos os antigénios existentes;
' Fusão ex-vivodas CD com as células tumorais do doente, ultrapassando o
processo de ingestão e colocando à disposição da célula apresentadora todos os
antigénios contidos na célula tumoral21,22.
O recurso a células tumorais (por fusão ou após lise) como fonte de antigénios
é preferível à utilização de antigénios tumorais definidos, uma vez que aumenta
a probabilidade de um maior número de células do tumor ser reconhecido e
destruído
23, 24
.
Para além dos métodos que expõem as CD ao antigénio directamente, também é
possível transferir os genes que codificam aos antigénios específicos do tumor.
Assim, consegue-se uma produção e uma disponibilidade contínuas de peptídeos
antigénicos, através de uma fonte intracelular. Isto obtém-se pela
transferência do ARN tumoral ou pela utilização de vectores virais
21,22,25-28
.
Os adenovírus são usados frequentemente, podendo também recorrer-se aos
poxvírus, herpes vírus e lentivírus, entre outros. Neste caso, o vírus infecta
as CD, inserindo nestas o gene desejado, permitindo a produção e a apresentação
contínua do antigénio. A eficácia pode ser aumentada se o vector viral for
simultaneamente utilizado para transferir genes que codificam citocinas
estimuladoras dos linfócito T citotóxicos, como a IL12 e a IL 222.
Estes métodos têm sido utilizados na produção de vacinas, de uso experimental,
para linfomas, melanomas, gliomas malignos, carcinomas da próstata, de células
renais, carcinoma da mama, do pâncreas, colorrectal e carcinoma do pulmão de
pequenas células.
Apesar de resultados preliminares ainda pouco significativos, tem-se verificado
um aumento moderado da sobrevida e da qualidade de vida em muitos casos, com
ausência de efeitos secundários relevantes
22,23,26,28-36
.
Em resumo, podemos afirmar que há ainda muitas limitações ao uso generalizado
destas vacinas, que impedem o seu sucesso absoluto.
Em muitos casos, não se identificou ainda um antigénio tumoral eficaz, ou não é
possível colher a quantidade de tecido tumoral suficiente para a preparação
antigénica33.
O fenómeno de escape tumoral ocorre por selecção natural das células
neoplásicas, altamente mutagénicas, que conseguem escapar ao sistema
imunitário. É provável que, nestas condições, respondam de forma anómala, o
que, entre outros efeitos, pode provocar a autodestruição dos linfócitos10.
É portanto necessário prosseguir os estudos e melhorar as técnicas, para que a
produção de vacinas terapêuticas a partir de cultura de células dendríticas
possa vir a ser, com sucesso, uma rotina no tratamento do doente oncológico37.
Em conclusão, por tudo o que foi exposto, podemos afirmar que o desenvolvimento
de modelos experimentais utilizando a cultura de células tem dado um importante
contributo para a melhor compreensão da oncogénese, nomeadamente no cancro do
pulmão, permitindo um diagnóstico precoce e a instituição de terapêuticas
dirigidas e mais eficazes. Contudo, para que a técnica da cultura de células
possa ser aceite na prática clínica como uma ferramenta útil e capaz de
fornecer informações de valor diagnóstico, e sobretudo o prognóstico para o
desenvolvimento de novas terapêuticas em oncologia, têm de ser cumpridas várias
regras, entre elas a standardizaçãodos métodos, dos grupos de doentes a análise
e das condições logísticas, sem esquecer as económicas. Só assim a cultura de
células poderá constituir um modelo útil em oncologia.