Linfangioma cístico isolado do mediastino
Introdução
O linfangioma cístico é uma das várias desordens linfáticas primárias
mediastínicas e pulmonares, sendo definido como uma mal formação congénita do
sistema linfático e não uma neoplasia verdadeira. É diagnosticado na maioria
dos casos na infância, sendo raro em adultos, e ainda mais como lesão
mediastínica isolada. Descrito pela primeira vez em 1828, mesmo actualmente as
publicações existentes são de diversos relatos de casos, e as maiores séries,
como a da Clinica Mayo, dispõe de 25 doentes em 23 anos. Pode estar associado a
outras lesões, condição conhecida como linfangiomatose, mas não há relato da
sua ocorrência sincrónica com outros tumores.
O seu diagnóstico definitivo apenas é possível pelo exame anatomopatológico da
peça cirúrgica, e o melhor tratamento é a ressecção completa, sempre que
possível.
Os autores apresentam o caso de uma doente com um linfangioma mediastínico
sincrónico a um teratoma ovariano, ambos benignos e diagnosticados
acidentalmente, fazendo também uma breve revisão sobre aspectos clínicos,
diagnóstico e tratamento do linfangioma cístico.
Relato do caso
Doente de 59 anos, procedente do serviço de ginecologia do hospital onde
realizava avaliação pré-operatória para ressecção de tumoração em ovário quando
foi identificado em radiografia de tórax (Fig. 1) presença de uma lesão
descrita como em mediastino médio, densidade de partes moles e próximo da
traqueia, sugerindo possibilidade de aumento de nódulo linfático.
Fig. 1' Rx tórax pré-operatório ' lesão mediastínica paratraqueal direita com
densidade de partes moles, sugerindo aumento de nódulo linfático hilar
Foi pois encaminhada para o serviço de cirurgia torácica, para avaliar a
possibilidade de metástase, apesar das evidências clínicas e ecográficas da
lesão ovariana sugerirem aspecto e fluxo vascular de um cisto dermóide.
A doente era previamente hígida, sem antecedentes de cirurgias ou neoplasias,
sem histórico de uso de medicações cronicamente ou outros fármacos. O exame
físico da admissão era completamente normal. Não tinha queixas, achados
respiratórios ou abdominais, sendo ambas as lesões achados incidentais de
exames de imagem.
Avaliação laboratorial de marcadores tumorais mostrou CA 125, alfafetoproteína,
antigénio cárcino-embrionário e fração beta da gonadotrofina coriónica normais.
Realizada tomografia computadorizada de tórax (Fig. 2) que descreveu lesão com
densidade de partes moles e contornos regulares localizada no mediastino
ântero-superior, comprimindo parcialmente a traqueia e o esôfago e sem
impregnação pelo meio de contraste, sugerindo a possibilidade de linfoma.
Fig. 2' Tomografi a de tórax pré-operatória ' lesão mediastino paratraqueal
direita, homogénea, com densidade de partes moles e sem realce ao contraste,
sem invasão de estruturas adjacentes
Face à necessidade de afastar-se a rara possibilidade de metástase mediastínica
isolada de um tumor ovariano ou outra neoplasia primária, como um linfoma, foi
realizada uma mediastinoscopia cervical. Durante o procedimento, encontrou-se
uma lesão de paredes finas e conteúdo líquido cristalino, que levantou a
suspeita intraoperatória de se tratar de um linfangioma cístico. No mesmo
procedimento anestésico realizou-se abordagem cirúrgica por toracotomia direita
com preservação muscular visando a ressecção completa da lesão, efectivada sem
intercorrências.
A análise citológica do líquido do cisto mostrou um líquido cristalino, glicose
97, LDH 229, proteínas 3,9, citológico com 96% de linfócitos, triglicéridos 16
e pesquisa de BAAR, fungos e bactérias negativas. O exame anatomopatológico da
peça cirúrgica confirmou a suspeita inicial de linfangioma cístico de
mediastino. A doente foi submetida posteriormente a ooforectomia, cujo exame
patológico demonstrou tratar-se de um teratoma benigno de ovário, outro tumor
benigno e sem nenhuma relação com o linfangoma mediastínico.
Discussão
O linfangioma cístico, também conhecido como higroma cístico, foi descrito pela
primeira vez por Redenbacker, em 18281, e é uma das várias desordens linfáticas
primárias mediastínicas e pulmonares1,2. Os linfangiomas respondem por 0,7 a 4
% dos tumores mediastínicos, sendo, em apenas
1% dos casos, de localização mediastínicaisolada2, e também é chamado
linfangioma cavernoso, higroma cístico, cisto linfático, higroma multiloculado
ou cisto quiloso1,3.
Pode estar presente em qualquer área do corpo onde exista tecido linfático, mas
sua ocorrência sincrónica ou predisposição a outro tumor de diferente
histologia é desconhecida na nossa revisão, incluindo os teratomas ovarianos.
Mesmo casos de linfangioma ovarianos são bastante raros, como relatado por
Akyildiz et al4.
É definido como uma malformação congénita do sistema linfático e não uma
neoplasia verdadeira2, consistindo em canais e espaços císticos de variados
tamanhos decorrente da sequestração de tecido linfático derivado do saco
jugular primitivo1,3.
Acredita-se que ocorra uma falha em estabelecer-se uma conexão adequada desses
cistos com canais linfáticos normalmente presentes, o que resulta numa lesão
geralmente única e isolada1, e pode apresentar também componente vascular
associado, quando então é chamado linfangioemangioma. É classificado
histologicamente em cístico, cavernoso e capilar, sendo que o tipo cístico é o
mais encontrado2.
A sua incidência é incerta, já que a maioria das publicações são relatos de
casos isolados. A maior série descrita por um único centro foi tratada na
Clinica Mayo, onde 25 doentes foram diagnosticados entre 1976 e 1999, com uma
incidência estimada de um caso a cada 70 000 internações/ano1,3. Aparentemente
é três vezes mais frequente no sexo feminino, e 90% dos diagnósticos são feitos
na infância, sendo raro na idade adulta, quando são encontrados de forma
ocasional1,2.
Nas crianças, 75% dos linfangiomas situam--se na região cervical e 20% na
região axilar, com apenas 10% se estendendo para o mediastino. Já a presença da
lesão mediastínica isolada sem o componente cervical é encontrada
principalmente em adultos1,3.
Riqet et al.5 relata que a patogénese dos linfangiomas não é bem entendida, mas
sugere estar relacionada com anormalidades no desenvolvimento do saco
linfojugular, e por essa suposição devem ser considerados congénitos na
infância, especialmente se associados malformação vascular, mesmo que a maioria
dos casos não seja bem documentada e a análise histológica não seja conclusiva.
O mesmo grupo publicou em 19996, numa revisão de 37 doentes com idade média de
45 anos e diagnóstico de linfangiomas (88% com lesão mediastínica isolada ou
não, submetidos a ressecção cirúrgica), citando quatro características que
sugerem a natureza adquirida dos linfangiomas mediastínicos em adultos:
' Geralmente ocorrem na topografia de canais e nódulos linfáticos normalmente
existentes;
' Geralmente são únicos (excepto num caso relatado por Ribet et al.7);
' Facilmente ressecáveis, por ter bom plano de separação com estruturas
adjacentes;
' Sem relato de componente vascular na sua histologia.
Sugere, então, que em crianças e adolescentes os linfangiomas têm geralmente um
componente de malformação vascular associado, devendo ser considerados
congénitos. Por outro lado, nos adultos, estes tumores são predominantemente no
mediastino posterior e constituídos por cistos puramente líquidos, e sugere a
sua origem adquirida, mas não define os mecanismos fisiopatológicos envolvidos
na génese da lesão.
O diagnóstico diferencial é feito com todas as lesões císticas mediastínicas,
como teratoma, cisto tímico, cisto do ducto tireoglosso, meningomielocele,
cisto pericárdico e bronogénicos, hematomas, tumores e linfonodos necróticos
1,2,8,9
.
Geralmente são assintomáticos, sendo descobertos acidentalmente nos adultos. Em
crianças podem causar sintomas compressivos precoces devido ao pouco espaço
para crescimento, sendo detectados a partir de alterações na anatomia cervical.
A ocorrência de sintomas depende da localização, tamanho e velocidade de
crescimento da lesão, e são decorrentes da compressão promovida pela
tumoração2. Na série da Clínica Mayo, 75% dos doentes apresentaram algum
sintoma, sendo dispneia o mais frequente1. Sintomas como rouquidão, dispneia,
insuficiência respiratória ou síndroma da veia cava superior podem ocorrer por
compressão extrínseca da lesão. Quilotórax e quilopericárdio também são
apresentações descritas2,10, assim como sintomas agudos decorrentes de
sangramentos ou excessiva produção de linfa durante quadros infecciosos11.
Na avaliação radiológica, o exame inicial solicitado é a radiografia simples,
onde os linfangiomas têm aspecto de tumoração sólida mediastínica (Fig. 3)1,2.
A avaliação segue com tomografia computadorizada (TC), necessária para melhor
caracterização da lesão quanto ao tamanho, densidade e localização. Observam-se
frequentemente sinais de compressão de estruturas adjacentes, com aspecto bem
circunscrito, descritas como de conteúdo cístico homogéneo, que não se real ça
pelo contraste; embora nas lesões com componente vascular importante se possa
ter um realce significativo ao contraste venoso5. Apesar de serem lesões
multicísticas e septadas, a TC raramente demonstra a presença destas septações,
tendo a ressonância nuclear magnética (RNM) maior sucesso em evidenciar esse
achado2.
Fig. 3' Mediastino após ressecção da lesão, com veia cava superior sendo
afastada, podendo ser observada a sua posição anterior à traqueia e posterior à
veia cava
Apesar desses achados mais comuns, a aparência tomográfica é inespecífica e
extremamente variável na dependência do tipo histológico. O tipo mais comum,
unilocular, é uma lesão de paredes finas e sem realce ao contraste. O tipo
cavernoso pode ser sugerido baseado no aspecto multisseptado e loculado na TC/
RNM, mas em ambos os casos o diagnóstico não pode ser definido em exames de
imagem apenas11. Uma lesão, com densidade cística, que se espalha sobre as
estruturas adjacentes, sem invadi-las nem deslocar os grandes vasos
mediastínicos, é bastante sugestiva8.
Na RNM, embora a maioria dos linfangiomas apresentem intensidade de sinal
típica de líquidos em T1 e T2, a intensidade de sinal em T1 é amplamente
variável na dependência da concentração de proteínas, gordura e hemoglobina no
líquido da lesão12. Pequenas estruturas lineares de baixa intensidade de sinal,
que representam septos, são mais bem evidenciadas com realce de gadolínio, e
tem sido observado particularmente no tipo cavernoso8.
A ultrassonografia (USG) pode ser utilizada por via externa ou endoscópica, mas
com limitação importante em delimitar lesões retrofaríngeas e mediastínicas9.
Em alguns casos, pode ter utilidade no auxílio de punções guiadas para, por
exemplo, terapia esclerosante, ou recolha de líquido para exame13. Doentes com
lesões com aparente comprometimento cardíaco podem apresentar-se no
ecocardiograma como uma massa ecogénica de limites mal definidos e com ausência
completa de fluxo no doppler, uma pista importante para diferenciar esta lesão
de outras lesões mediastínicas císticas vascularizadas12.
O tratamento recomendado é a ressecção cirúrgica completa, e o diagnóstico de
certeza apenas pode ser obtido pelo exame anatomopatológio da peça operatória.
A cirurgia está indicada no momento do diagnóstico, visto que o crescimento e a
infiltração da lesão em tecidos adjacentes dificulta a sua exérese. A via de
abordagem depende da localização, tamanho e estruturas adjacentes envolvidas,
mas sempre visando a ressecção completa da lesão, já que as hipóteses de cura
são de apenas 12% nos doentes com ressecção incompleta das lesões, onde a
recorrência é a regra1.
Nos doentes candidatos a cirurgia, as complicações são directamente
proporcionais ao tamanho e à infiltração tecidual do linfangioma, sendo as mais
comuns a linforreia, a paralisia frénica, a infecção, a rouquidão e a obstrução
das vias aéreas1.
A observação clínica pode ser uma opção em doentes de risco cirúrgico
proibitivo, particularmente quando os sintomas não são limitantes, e nos
linfangiomas cervicais, e com relato de casos com resolução espontânea ou
doença estável14, mas devem ser observados de perto, porque traumas, infecções,
hemorragia ou infecção das lesões podem causar compressão aguda de estruturas e
risco de vida1. Entretando, na série da Clínica Mayo, os doentes inicialmente
observados vieram todos a necessitar de intervenção em uma média de 3,7 anos,
devido ao aumento das lesões ou agravamento dos sintomas, provavelmente pela
preponderância de linfangiomas mediastínicos dessa série1.
Outras opções naqueles doentes não candidatos a cirurgia são tratamentos
alternativos, como ressecção parcial para alívio sintomático15 (embora com
hipóteses de cura de apenas 20% nas lesões mediastínicas1, terapia com laser,
radioterapia e quimioterapia1, injecção de agentes esclerosantes2)11. A
experiência com estas terapias alternativas é pequena, dada a raridade da
situação1.
A recidiva local pode ocorrer nas ressecções incompletas, onde há progressão
insidiosa da doença, podendo levar de 1 a 21 anos para voltar a manifestar-se
clinicamente. O prognóstico é amplamente favorável nos casos ressecados por
completo, e não apresentam diferença estatística na sobrevida quando comparados
com a população2.
Pontos-chave
Condição rara ' maior série de casos da Clínica Mayo com 25 doentes de 1976 a
1999;
A forma mediastínica isolada é a mais frequentemente diagnosticada na idade
adulta, embora possa ocorrer em qualquer idade;
Prevalência no sexo feminino;
O sintoma mais comum é a dispneia, embora curse assintomático na maioria dos
casos;
A cura apenas é possível com a ressecção cirúrgica completa da lesão;
Doentes inicialmente observados ' geralmente com média de quatro anos de
seguimento ' vieram a necessitar de cirurgia devido a complicações ou
crescimento da lesão e da sintomatologia.