Derrame pleural recidivante e polipose gástrica: Caso clínico
Introdução
O linfoma de células B da zona marginal é uma entidade clinicopatológica que
surge no tecido linfóide associado às mucosas (mucosal associated lymphoid
tissue, MALT). Do ponto de vista nosológico, é um linfoma não Hodgkin (LNH)
extraganglionar da zona marginal e corresponde a cerca de 7,6% de todos os LNH.
Recentemente, o linfoma MALT tem despertado especial atenção pelos aspectos
particulares que apresenta
1, 2
.
Constitui uma doença tipicamente do adulto, com predominância no sexo feminino.
Frequentemente, existe história de doença autoimune ou inflamatória associada,
cuja expressão varia em função do órgão afectado.
O dado comum a estas patologias é a proliferação crónica de linfócitos,
reactiva ao processo patológico de base, que em determinada altura conduz ao
desenvolvimento de um clone patológico que substitui a população de células
linfóides residentes, dando origem ao linfoma. O estômago é a localização
extraganglionar mais frequente4. Em termos etiopatogénicos, a infecção por
Helicobacter pylori(H pylori) parece ser o factor mais importante no
desenvolvimento deste tipo de linfomas.
No entanto, factores genéticos, ambientais ou mesmo nutricionais podem estar,
igualmente, implicados na génese das alterações moleculares observadas1,2,4.
Caracteristicamente, o linfoma MALT H pylori(+) apresenta baixo grau de
malignidade e resposta favorável à terapêutica de erradicação bacteriana ' mais
de 50% em alguns estudos2.
As manifestações clínicas são inespecíficas e incluem a epigastralgia, a
dispepsia, os vómitos e a hemorragia digestiva. A presença de sintomas B
(febre, sudorese nocturna e perda ponderal) é rara4.
O linfoma MALT tem um comportamento muito indolente e permanece localizado por
um período prolongado, sendo frequente a ausência de progressão mesmo sem
tratamento. A disseminação sistémica e o envolvimento medular ocorrem numa
pequena minoria de doentes, casos em que o prognóstico é francamente adverso2.
A terapêutica do linfoma MALT H pylori(+) não é consensual. Existe evidência de
que a erradicação pode ser utilizada como terapêutica única na doença
localizada, sem diferenças observáveis na sobrevida em relação a doentes
submetidos a esquemas convencionais baseados em cirurgia, quimioterapia ou
radioterapia2. No entanto, cerca de 20% dos doentes com doença localizada não
respondem a este tratamento4.
Cerca de 5-10% dos linfomas MALT gástricos são H pylori(-). Para o diagnóstico
definitivo de negatividade, é necessária a pesquisa de anticorpos CagA e de IgG
específicas para o H pylori, bem como a pesquisa de outras espécies de
Helicobacter(H heilmannii, H felis). Não existem orientações específicas para o
tratamento destes doen tes. O papel da erradicação bacteriana (possíveis falsos
negativos) é discutível e as restantes modalidades terapêuticas têm sido
utilizadas com taxas de resposta e de remissão variáveis
3,4
.
A existência de doença disseminada, radiorresistente ou recorrente após um
primeiro tratamento, implica outras estratégias terapêuticas. A monoterapia com
clorambucil ou ciclofosfamida está associada a taxas de remissão completa de
82-100% para a doença em estádio I e de 50-57% para a doença em estádio IV4.
Caso clínico
Doente do sexo feminino, 86 anos, raça branca, natural da Guarda e residente em
Lisboa, reformada (doméstica), não fumadora, internada no serviço de
pneumologia do nosso hospital, em Julho de 2007, devido a quadro de dispneia de
esforço, toracalgia, tosse seca e perda ponderal.
Aparentemente assintomática até cerca de dois meses antes do internamento,
altura em que inicia um quadro de omalgia esquerda com irradiação à região
cervical, que motivou terapêutica com anti 'inflamatórios não esteróides e
paracetamol, sem melhoria.
Cerca de um mês antes do internamento, refere instalação de toracalgia esquerda
de características pleuríticas, associada a tosse seca, cansaço fácil, anorexia
não selectiva e perda ponderal. Por agravamento progressivo, recorreu ao
serviço de urgência central do nosso hospital, tendo ficado internada.
Como antecedentes pessoais há a referir hipertensão arterial medicada,
depressão e gastrite crónica com polipectomia gástrica vários anos antes,
desconhecendo-se exame histológico da peça.
Na admissão ao serviço encontrava-se apirética e hemodinamicamente estável,
eupneica em repouso, com palidez cutaneomucosa e oximetria digital de 93% em ar
ambiente; a semiologia pulmonar era compatível com derrame pleural esquerdo e a
palpação abdominal difusamente dolorosa, sem outras alterações.
A telerradiografia de tórax em PA e perfil evidenciou derrame pleural esquerdo,
consolidação do lobo inferior esquerdo e cardiomegalia (Fig. 1). Do ponto de
vista laboratorial, apresentava anemia (Hb: 8,2g/dL); leucocitose sem
neutrofilia (13 590céls/μL); VS: 109mm; proteína C reactiva: 9,7mg/dL;
neuroenolase específica (NSE): 17,3μg/L; â2-microglobulina: 4,26 mg/L e
antigénio carcinoembrionário (CEA): 5,5 ng/mL. Gasometria arterial (O2 a 2L/
min): pH: 7,44, PaCO2: 44,2mmHg, PaO2: 71,5mmHg, HCO3-: 28,6mmol/L, SatO2: 95%,
lactatos: 19,7mg/dL.
Fig. 1' Radiografi a de tórax PA (A) e perfi l (B), que revela uma obliteração
do seio costo frénico esquerdo, a que se associa uma hipotransparência da
metade inferior do campo pulmonar homolateral com broncograma aéreo, imagens
compatíveis com consolidação do lobo inferior esquerdo com derrame pleural.
Índice cardiotorácico aumentado
Foi efectuada toracocentese diagnóstica, com saída de 400ml de líquido pleural
amarelo-citrino hipercelular, com predomínio de linfócitos, baixo teor em
glicose e bioquímica compatível com exsudado. A pesquisa de células neoplásicas
no líquido foi negativa.
A TC torácica, entretanto solicitada, evidenciou, para além de cardiomegalia e
de derrame pleural esquerdo, bronquiectasias do lobo inferior esquerdo com
padrão em vidro despolido envolvente (Fig. 2). A endoscopia digestiva alta
mostrou um pólipo séssil da grande curvatura, que se biopsou.
Fig. 2' Cortes de TC do tórax, em janela mediastínica (A e B) e janela pulmonar
(C e D), que revelam cardiomegalia, discreto derrame pericárdico, ligeiro
derrame pleural esquerdo e bronquiectasias do lobo inferior esquerdo com áreas
de vidro despolido envolvente
Os primeiros dias de internamento decorreram sem intercorrências. Ao 7.º dia
instalou-se febre persistente de 38ºC, motivo pelo qual foi iniciada
antibioterapia empírica de largo espectro com piperacilina'tazobactam e
linezolide (tendo em conta a realização de técnica diagnóstica com punção
cutânea), que efectuou durante 10 dias. Não foram isolados quaisquer agentes
infecciosos, quer nas hemoculturas seriadas e urocultura, quer no líquido
pleural e biópsia pleural, produtos biológicos colhidos antes do início da
antibioterapia. Ao 15.º dia, houve necessidade de toracocentese evacuadora por
recidiva do derrame, com saída de 600ml de líquido pleural com as mesmas
características (total drenado: 1000ml). Os exames bacteriológicos do líquido
pleural e da biópsia pleural (incluindo pesquisa de micobactérias) foram
novamente negativos.
A biópsia pleural foi insuficiente para diagnóstico e a biópsia do pólipo
gástrico mostrou apenas tecido de pólipo hiperplásico ulcerado.
Foi solicitada TC abdominopélvica, que mostrou uma lesão infiltrativa da parede
gástrica, nódulos hipodensos do baço, volumoso nódulo do lobo esquerdo do
fígado e adenopatias locorregionais (Fig. 3).
Fig. 3' Cortes de TC abdominal (A e B), que revelou uma lesão infi ltrativa da
parede gástrica, nódulos hipodensos do baço e volumoso nódulo do lobo esquerdo
do fígado. Moderado derrame pleural esquerdo
Procedeu-se a biópsia da parede gástrica guiada por TC, que permitiu o
diagnóstico definitivo: infiltração significativa do tecido conjuntivo por
células linfóides, pequenas, CD20 (+), CD10 (-) e ciclina D1 (-) ' achados
sugestivos de linfoma B, subtipo MALT (Fig. 4).
Fig. 4' Aspectos histológicos de biópsia aspirativa da parede gástrica guiada
por TC (A e B), que documentam tecido conjuntivo com extensa infi ltração por
células pequenas, linfóides. Marcação imunoistoquímica positiva para CD20 (+)
Apesar de a pesquisa de H pyloriter sido negativa, a doente efectuou
terapêutica de erradicação com amoxicilina, claritromicina e omeprazol, embora
sem qualquer resposta. Após a alta hospitalar, foi observada em consulta de
hematologia e iniciou quimioterapia combinada com CVP (ciclofosfamida,
vincristina e prednisona) em baixa dose, com melhoria das alterações
pulmonares, nomeadamente regressão franca do derrame; contudo, houve
necessidade de suspensão da quimioterapia por toxicidade hematológica grave e
ileus paralítico. Nos dois meses seguintes, e após instituição de clorambucil
oral em baixa dose, foi reinternada várias vezes por toxicidade medicamentosa e
infecções respiratórias recorrentes. Verificou-se deterioração progressiva do
estado geral, tendo vindo a falecer cerca de três meses após o diagnóstico.
Discussão
Numa doente com gastrite crónica e antecedentes de polipectomia gástrica, o
quadro clínico na admissão era compatível com a presença de neoplasia gástrica.
No entanto, a inflamação crónica da mucosa gástrica constitui igualmente um
terreno favorável ao aparecimento de uma DLP. Quer a inflamação seja
desencadeada pela presença de H pyloriou surja na sua ausência, a gastrite
crónica cursa de uma forma geral com um infiltrado linfocitário reactivo, que a
qualquer momento pode sofrer uma mutação indutora de um clone neoplásico1,6.
Poderá ter sido esta a evolução no caso em discussão. Está descrito o
envolvimento pulmonar pelo linfoma MALT sob a forma de nódulos de dimensões
apreciáveis ou zonas de consolidação.
Em relação ao derrame pleural, pode ser a primeira manifestação de DLP e surge,
com alguma frequência, na evolução clínica destes doentes. A pesquisa de
células neoplásicas no líquido pleural foi negativa e a biópsia pleural
inconclusiva, o que não surpreende, dada a baixa rentabilidade diagnóstica,
quer da toracocentese, quer da biópsia pleural cega nos LNH7. No entanto, a
presença de um exsudado rico em linfócitos e com níveis baixos de glicose, na
ausência de doença autoimune, e após excluídas a pleurisia bacteriana,
incluindo a tuberculose, é muito sugestivo de DLP. Mais ainda, a melhoria das
alterações pleuropulmonares sob quimioterapia aponta para a etiologia
neoplásica ' tal evolução não seria de esperar no caso de lesões secundárias a
outra patologia (nomeadamente infecciosa).
Apesar da inexistência de documentação histológica, e face ao exposto, a
condensação radiológica do lobo inferior esquerdo associada ao derrame pleural
foi enquadrada no contexto de envolvimento pleuropulmonar pela neoplasia.
A endoscopia digestiva alta não permitiu o diagnóstico no presente caso. Tal
pode ser explicado pelo facto de, apesar de haver lesões visíveis da mucosa
gástrica, o infiltrado de células linfóides ser focal e, por vezes, predominar
em profundidade, o que dificulta o acesso endoscópico3. A biópsia percutânea
guiada por imagem foi da maior importância, permitindo chegar ao diagnóstico.
Salienta-se a elevação do NSE, marcador serológico tradicionalmente associado a
neoplasias neuroendócrinas, como o carcinoma pulmonar de pequenas células. A
subida deste marcador na DLP está descrita na literatura, com prevalências que
podem atingir os 20%5, dependendo das séries, o que reforça a necessidade de
interpretar as alterações dos marcadores tumorais em estreita correlação com a
clínica.
O linfoma MALT primário do estômago surgiu, no presente caso, com pesquisa de H
pylorinegativa. Apesar de não terem sido efectuadas as serologias para este e
outros agentes potencialmente envolvidos, que excluiriam definitivamente o
contacto, parece lícito admitir que não existia infecção crónica por H pylori.
A ausência de resposta à terapêutica de erradicação, que não é habitual nos
casos positivos, bem como a progressão extremamente rápida da doença, levam a
crer que se tratasse de um verdadeiro caso de linfoma MALT H pylori(-).
A agressividade do linfoma, com extensa disseminação hepática, esplénica,
ganglionar, pleuropulmonar e pericárdica, aproxima'se do comportamento clínico
dos linfomas difusos de grandes células B, que podem surgir na evolução dos
linfomas MALT. Constitui uma questão que permanecerá em aberto.
Concluímos realçando que o derrame pleural pode ser a primeira manifestação de
doença linfoproliferativa e, neste contexto, o pneumologista assume um papel
importante no diagnóstico e na orientação clínica do doente.