Metastização pulmonar na apresentação de angiossarcoma cardíaco: Caso clínico e
discussão
Introdução
O angiossarcoma e um tumor de origem mesenquimatosa, contudo a etiologia destes
tumores permanece em grande parte pouco esclarecido
1
. O angiossarcoma cardíaco ocorre mais comummente na auricula direita, em
contraste com tumores benignos do coração, mais frequentes na aurícula
esquerda1.
Desenvolvem-se mais frequentemente em homens do que em mulheres e primariamente
na terceira a quinta décadas de vida
2
.
O diagnóstico clínico de angiossarcoma e muitas vezes difícil devido a
inexistência de sintomas específicos associados a patologia.
Os sintomas podem ser do foro cardíaco ou sistémicos, em que a maioria dos
sintomas cardíacos são toracalgia, palpitações e sintomas de insuficiência
cardíaca congestiva. Na ausência de sintomas cardíacas, os sintomas sistémicos
ocorrem em 10% dos casos e incluem febre, sudorese vespertina, calafrios e
perda de peso
3
. A metastização ocorre em aproximadamente 66-89% dos casos na altura do
diagnóstico, de localização predominantemente pulmonar, hepática, óssea,
linfática e do SNC3,
4
. A metastização pulmonar também pode levar ao aparecimento de hemoptises e
dispneia.
Caso clínico
Doente de 35 anos, sexo masculino, raça caucasiana com antecedentes pessoais de
dislipidemia, tabagismo (± 20 UMA) e hábitos alcoólicos moderados (± 80g/dia),
admitido no serviço de urgência em Dezembro de 2007 no contexto de quadro
clínico de pré-cordialgia, lipotimia, tosse produtiva com expectoração mucosa
com alguns dias de evolução. Sem outras queixas relevantes. Ao exame objectivo
apresentava-se consciente, lúcido e colaborante, com bom estado geral, pele e
mucosas coradas e hidratadas, nao cianosado e apirético. Na auscultação
cardíaca apresentava tons cardíacos audíveis, rítmicos, sem sopros ou atritos.
Na auscultação pulmonar apresentava murmúrio vesicular audível e simétrico
bilateralmente, sem sopros ou ruídos adventícios. Exame neurológico sumario sem
evidencia de sinais focais. Realizou electrocardiograma que revelou um ligeiro
supradesnivelamento de ST em todas as derivações, sem outras alterações. A
telerradiografia do tórax não apresentava alterações significativas,
salientando-se do ponto de vista laboratorial, discreta elevação dos parâmetros
inflamatórios, nomeadamente leucocitose com neutrofilia e elevação da PCR
serica.
Observado pela cardiologia, que apos realização de ecocardiograma
transtoracicoque revelou derrame pericardico sem colapso das cavidades ou
alterações da contractilidade segmentar, admitiu-se tratar de quadro clínico de
pericardite subaguda, pelo que foi internado no serviço de cardiologia. Durante
o internamento registou-se melhoria do quadro clínico, acompanhado de
diminuição do derrame pericardico, apos terapêutica com anti-inflamatórios não
asteróides, tendo sido o diagnostico confirmado por serologia positiva a vírus
Coxsackie. A salientar durante o internamento, pneumonia na base direita (Fig.
1) confirmada por TC torácica que mostrou condensação da base esquerda
complicada por derrame metapneumonico, com melhoria apos sete dias de
antibioterapia com ceftriaxone e claritromicina, tendo tido alta ao 14.o dia de
internamento, referenciado para a consulta de pneumologia para seguimento de
derrame pleural.
Fig. 1 – Derrame pleural à esquerda
Observado em consulta poucos dias apos a alta, prosseguiu-se o estudo do
derrame pleural com a realização de estudo analítico, que mostrou ligeira
anemia normocitica normocromica (Hb ' 11,3 g/dl), trombocitopenia de 80 000 ×
109/L e VS de 77mm a 1.a hora. Mantinha ainda elevação da PCR 124 UI/L com
leucograma sem alterações significativas. Restante estudo bioquímico sem
alterações. Após ter recusado internamento para a realização de técnicas
diagnosticas mais invasivas, acabou por realizar toracocentesediagnostica em
Hospital de Dia de pneumologia/ambulatório com saída de liquido seroematico, de
características exsudativas, e ADA dentro dos parâmetros normais, com estudo
microbiológico e micobacteriologico sem isolamentos e com estudo anatomo
patológico negativo para células neoplasicas. Realizou concomitantemente
broncofibroscopia, que não mostrou alterações a nível da arvore
traqueobronquica, tendo sido efectuado lavado broncoalveolar a nível do
brônquio lobar inferior esquerdo, cujo estudo microbiológico e
micobacteriologico não mostrou nenhum isolamento de agente patogénico. O estudo
citologico foi negativo para células neoplasicas e a citometria de fluxo
revelou um ratiode CD4/CD8 de 0,6. Repetiu TC torácicoque mostrou derrame
pleural a esquerda e processo de pneumopatia exsudativa nos segmentos basais.
Concomitantemente, pequenas áreas de opacidade heterogénea sugerindo pequenas
áreas focais de processo exsudativo de significado impreciso ' processo
multifocal. Admite-se derrame pericardico com aumentos das dimensões das
cavidades cardíacas, nomeadamente da parede auricular direita com preenchimento
irregular com focos nodulares quase embolicos. Aspectos a direita compatíveis
com pericardite, tendo recusado novo internamento.
Readmitido em Fevereiro de 2008, no contexto de quadro clínico de pre-
cordialgia típica, febre e dispneia de agravamento progressivo acompanhada com
ortopneia, dispneia paroxistica nocturna e edemas maleolares vespertinos.
Negava na altura anorexia, sudorese vespertina ou perda de peso ponderal. Ao
exame objectivo apresentava-se vigil, colaborante e orientado, nao cianosado,
com palidez da pele e mucosas, polipneico (FR>25 cpm). Auscultação cardíaca com
tons rítmicos e algo diminuídos.
Auscultação pulmonar abolida na metade inferior do hemitorax esquerdo, com
macicez a percussão. Edemas dos membros inferiores no terço inferiores das
pernas. A telerradiografia torácica mostrava derrame pleural esquerdo extenso.
Laboratorialmente com elevação dos parâmetros inflamatórios, com leucocitose
(17,370 × 109/L) e neutrofilia (86%) e PCR de 127 mg/L, bem como bicitopenia,
com anemia normocitica e normocromica de 8,3 d/dL, e trombocitopenia de 64 000
× 109/L. Gasimetricamente com alcalose de hiperventilacao (pH -7,54) e
hipoxemia de 70,8 mmHg com FiO2 a 0,21. Electrocardiograficamente com
alterações inespecíficas da repolarizacao em AVL e V5. Atendendo ao
internamento recente por pericardite, realizou ainda ecocardiograma
transtoracicoque mostrou espessamento e derrame pericardico ligeiro, com
manutenção das dimensões normais das cavidades cardíacas e boa função
ventricular esquerda. Atendendo a existência de derrame pleural extenso
esquerdo e derrame pericárdico concomitante, optou-se por realizar novo TAC
torácico(Fig. 2 ) que mostrou presença de micronodulos dispersos por ambos os
campos pulmonares, admitindo-se contexto infeccioso embólico.
Fig. 2 – TC Tórax: Derrame pleural esquerdo com atelectasia basal. Micronódulos
dispersos. Derrame pericárdico com aumento dimensional da aurícula direita
Concomitantemente, existe exuberante derrame pleural com atelectasia basal
esquerda (não se excluindo infiltrado infeccioso).
Admite-se igualmente derrame pericardico com aumento dimensional das diferentes
cavidades cardíacas, nomeadamente da parede auricular direita, com focos quase
nodulares embolicos (Fig. 3). Múltiplas formações ganglionares mediastinicas.
Realizou ainda no serviço de urgência endoscopia digestiva alta que revelou
estigmas de hemorragia recentes. Internado no serviço de Pneumologia, tendo-se
admitido endocardite subaguda com embolização séptica pulmonar complicada por
derrame pleural e pericardico.
Fig. 3– Ecocardiograma transtóracico – Neoformação hiperecogénica, pouco móvel,
junto ao folheto posterior da válvula tricúspide
Realizou toracocentese diagnostica com saida de liquido seroematico, tendo-se
colocado dreno torácico com saída de 1800cc de liquido pleural progressivamente
mais hemático; colocou-se a hipotese de hemotorax traumatico, pelo que realizou
de urgência novo TAC torácico contrastado.
A analise laboratorial do liquido pleural revelou um exsudado com muito
eritrocitos, impossibilitando a contagem diferencial, ADA de 11,6 UI/L, estudo
microbiológico e micobacteriologico negativo e estudo anatomopatologico
negativo para celulas neoplasicas. A TAC urgente realizada foi sobreponível a
da entrada, mostrando apenas uma diminuição do derrame pleural. Transferido
para o Serviço de Cirurgia Cardiotorácica para videotoracoscopia de urgência, o
doente realizou previamente ecocardiograma transesofagico (ETE)(Fig. 4) apos
indução anestésica, atendendo as suspeitas iniciais de trombo a nível da
aurícula direita e da possibilidade de embolização séptica pulmonar.
Fig. 4 – ETE - volumosa massa retroauricular direita, heterogénea, com
cavitação no seu interior (esquerda) e massa retroauricular direita com invasão
da aurícula junto ao folheto posterior da válvula tricúspide (direita)
O ETE revelou volumosa massa cavitada em posição posterior e lateral a aurícula
direita (52×41 mm), de características infiltrativas e procidente para o
ventrículo direito (25×16 mm) a nível da junção dos folhetos tricúspide septal
e posterior, compatível com provável neoplasia maligna intrapericardica, nao
sendo possível excluir origem pleuroparenquimatosa com infiltração
intracardiaca.
A videotoracoscopiamostrou derrame pleural hematico, sem confirmar lesões
iatrogenicas suspeitas e múltiplos nódulos pulmonares simulando hematomas
intraparenquimatosos e lesão da pleura parietal junto ao diafragma. Efectuada
biopsia pulmonar, pleural e drenagem pleural. A análise anatomo patológica da
biopsia pleural revelou metástase de angiossarcoma, necrosado e com hemorragia.
A biopsia pulmonar revelou metástase pulmonar de angiossarcoma com acentuada
hemorragia e necrose, que se estende a pleura visceral, com provável origem
cardíaca. A população tumoral marcou positivamente para vimentina, CD31 e
focalmente para CD34.
Realizou ressonância magnética torácica que revelou massa tecidular de cerca de
7×4 cm de maiores dimensões com uma extensão craniocaudal de cerca de 6 cm,
fazendo corpo com o pericárdio, que se apresentava espessado e heterogéneo, e
envolvendo perifericamente a aurícula direita, estendendo-se ate ao ventrículo
direito. Derrame pleural bilateral loculado com múltiplas imagens nodulares
dispersas. Marcada heterogeneidade do parenquima hepático ao nível do bordo
superior do lobo direito que podia estar na dependência de patologia
secundaria.
Por agravamento progressivo do quadro clínico de insuficiência cardíaca global
e por edema pulmonar agudo, o doente veio a falecer ao 16.o dia de
internamento.
Discussão
Os tumores cardíacos primários são extremamente raros com uma frequência de
0,00017 a 0,28% numa serie de autopsias
5
.
Em adultos, cerca de 25% dos tumores são malignos e aproximadamente um terço
dos tumores malignos são angiossarcomas. A baixa incidência de tumores
cardíacos primários reflecte a baixa incidência geral de sarcomas na população
em geral e a baixa percentagem do peso do coração (0,5%) comparada com o
musculo (40%).
A apresentação clínica de neoplastias cardíacas primarias e determinada por
vários factores, incluindo a localização tumoral, dimensões, taxa de
crescimento, tendência de nebulização (friabilidade) e grau de infiltração
tecidular.
Tumores intracavitários tendem a obstruir as válvulas cardíacas ou mesmo
grandes vasos. Lesões miocardicas podem afectar o sistema de condução, levando
a arritmias. Lesões pericardicas levam a tamponamento cardiaco
6
.
O angiossarcoma cardíaco manifesta-se principalmente como formação auricular
pediculada
7
, sobretudo na aurícula direita, com tendência para ocorrer na terceira e
quinta décadas de vida, mais comummente em doentes do sexo masculino
8
. Frequentemente estendem-se ao pericárdio, veia cava ou válvula tricúspide,
causando tamponamento cardíaco e/ou sindroma da veia cava superior
9
.
Metástases pulmonares são comuns e habitualmente dispersas aquando do
diagnóstico em 66 a 89% dos casos
10
,
11
. Outros locais de metastizção são os gânglios linfáticos, o osso, o fígado, o
cérebro, a bexiga, o baço, as glândulas suprarrenais, a pleura, o diafragma, os
rins, a tiróide e a pele4.
A história natural e caracterizada por um curso clínico breve e evolução fatal,
mesmo apos a cirurgia e terapêutica adjuvante
12
.
No momento do diagnóstico, 75% dos doentes tem metástases a distancia. A
sobrevida após o diagnostico e, em media, inferior a nove meses12.
Os sinais e sintomas iniciais podem sugerir pericardite, com dor pleuritica,
atrito pericardico e alterações inespecíficas do electrocardiograma
13
. O doente pode apresentar-se com febre, dispneia, sopros cardíacos, perda de
peso, ortopneia, fadiga, anorexia, vómitos, edemas periféricos e sinais de
insuficiência cardíaca direita7.
Frequentemente, há alterações do ECG, como elevações do segmento ST, inversão
da onda T, baixa voltagem do QRS, desvio axial, bloqueio de ramo direito e
fibrilhação auricular7.
Há que estabelecer o diagnóstico diferencial não só entre tumores cardíacos
benignos e malignos, primários e metastasicos, mas também entre massas
neoplasicas e não neoplasicas
14
.
A ecocardiografia cardíaca e segura, não invasiva, acessível e útil na detecção
de massas cardíacas, o seu local de inserção, o padrão de movimento do tumor e
as suas dimensões. Devido a razões técnicas, a ecocardiografia transtoracica
pode apresentar limitações diagnosticas
15
,
16
. A ecocardiografia transesofagica tem uma capacidade de resolução muito
superior na diferenciação de tumores benignos e malignos, que habitualmente
desrompem, infiltram e alteram os planos tecidulares da anatomia cardíaca
adjacente
17
.
Contudo, apenas a tomografia computorizada e a ressonância magnética permitem
uma avaliação do tumor mais detalhada da extensão e possível metastização. A
citologia do fluido da toracocentese, da pericardiocentese ou da biopsia pode
fornecer o diagnostico de malignidade do tumor
18
.
A determinação do grau histológico e útil para a definição do prognostico4.
Os angiossarcomas são considerados como neoplasias malignas de diferenciação
endotelial. Microscopicamente apresentam-se como células endoteliais
pleomorficas e atípicas alinhadas em canais vasculares anastomoticos,
irregulares em tamanho e forma, características estas que os diferenciam de
lesões benignas (ex: hemangiomas, mixomas), que apresentam estruturas
vasculares relativamente uniformes sem atipia4.
A identificação imunoistoquimica de marcadores CD31, CD34 e proteínas
relacionadas com o factor VIII são úteis na confirmação da origem endotelial
destes tumores
19
.
Nao existe um sistema de estadiamento ou classificação TNM para neoplasias
malignas cardíacas, devido a baixa frequência destas lesões
20
.
O tratamento destes tumores e muito limitado. A cirurgia pode ser útil para
ajudar a estabelecer o diagnostico histológico e o alívio dos sintomas com
cuidados paliativos.
O estádio avançado e as dimensões alcançadas pelo tumor são factores limitantes
do sucesso do tratamento cirúrgico. A resseccao completa e essencial na
sobrevivência pós-operatoria7,
21
.
Contudo, na maioria dos doentes, as lesões são irressecaveis, pelo que a
quimioterapia adjuvante e a radioterapia tem sido frequentemente utilizadas com
resultados desapontantes e sem alivio sintomatico13.
O transplante cardíaco tem sido utilizado como tratamento alternativo em poucos
casos22, mas esta opção e controversa devido a sobrevida a longo prazo destes
doentes ser idêntica a dos doentes submetidos a outras formas de tratamento12,
23
.
Neste caso, o doente apresentou-se com um quadro clínico muito sugestivo de
pericardite viral no seu primeiro internamento, com uma evolução rápida para
uma massa auricular direita com múltiplos nódulos pulmonares, mimetizando uma
endocardite subaguda com provável embolização pulmonar séptica complicada com
derrame pleural. Foi a evolução diagnostica da etiologia deste derrame pleural
e dos nódulos pulmonares que levou a suspeição e ao diagnostico do
angiossarcoma, com uma confirmação aquando da realização do ecocardiograma
transesofagico. Contudo, nao foi possível alterar o prognostico do doente, que
a partida se apresentava muito reservado, tal como a literatura aponta nestes
casos.
Devido a rápida evolução do quadro clínico, quase fulminante, o doente acabou
por nao ter oportunidade ou condições clínicas para inicio de radioterapia ou
quimioterapia adjuvante.