Fronteiras do pulmão - Relação com o sistema Gastrenterológico
Introdução
A relação do pulmão com o sistema gastrintestinal é reconhecida há mais de um
século, tornando intuitiva a associação de determinadas entidades nosológicas
respiratórias com a patologia do sistema digestivo.
Efectivamente, podemos falar de um eixo pulmão-tubo digestivo-órgãos anexos,
motivado pela proximidade anatómica entre estes e a relação fisiológica
estreita entre os sistemas circulatórios e os mecanismos neuroendócrinos
afectos a cada um1.
A relação entre a asma e o refluxo gastroesofágico (RGE), por exemplo, é
sugerida, pela primeira vez, em 1892, por William Osler
2
, surgindo ao longo das décadas seguintes dezenas de trabalhos postulando
mecanismos etiológicos diversos, como a microaspiração de ácido gástrico e
fenómenos autonómicos vagais
3
,
4
,
5
.
O entusiasmo desencadeado por estas investigações tem levado muitos autores a
procurar a relação do RGE com outras doenças respiratórias, como sejam a
pneumonia, as bronquiectasias, a fibrose pulmonar idiopática
6
, o insucesso no transplante pulmonar
7
e mesmo a doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC)
8
.
Contudo, é reconhecido que as relações do eixo pulmão-tubo digestivo-órgãos
anexos são substancialmente mais amplas e determinam interacções patológicas
mútuas e variadas do pulmão com o cólon (doença inflamatória intestinal) e
órgãos anexos (cirrose hepática, síndroma hepatopulmonar, pancreatite, entre
outras)
9
.
O presente trabalho propõe-se rever as relações anatomofisiológicas entre o
sistema respiratório e gastrintestinal, bem como as alterações patológicas e
implicações clínicas, terapêuticas e prognósticas das mesmas.
Eixo pulmão-tubo digestivo - órgãos anexos
Não é complicado conceber que patologia do esófago possa condicionar patologia
da traqueia e vias áereas (ou o inverso) apenas pela sua proximidade anatómica.
No entanto, é mais complexo aceitar a relação entre órgãos anatomicamente mais
distantes, como o pulmão, o cólon, o fígado e mesmo o pâncreas, recorrendo
apenas a uma justificação anatómica.
O eixo pulmão-tubo digestivo - órgãos anexos relaciona-se, não só
anatomicamente, mas também através da vasculatura e do sistema neuroendócrino1.
Por exemplo, a incapacidade de filtração por parte do fígado de toxinas
absorvidas ao nível da circulação intestinal (na cirrose hepática) ou a
absorção de outras noxas pelo sistema digestivo (de que é exemplo a
fenfluramina ' anorexígeno associado a hipertensão pulmonar10) permitirá que
estas alcancem facilmente a circulação pulmonar e condicionem lesão local1.
Por outro lado, patologia do pulmão pode ser responsável por lesão orgânica
gastrintestinal, não apenas condicionada por incapacidade do primeiro em
garantir as trocas gasosas que assegurem a viabilidade celular, mas também
porque o pulmão é responsável por diversas funções metabólicas e
neuroendócrinas com repercussão sistémica (mediadores de fase aguda, produção e
regulação de factores neuroumorais, entre outras)1,10.
Salienta-se, ainda, a importância da regulação dos aparelhos respiratório e
gastrintestinal pelo sistema nervoso autónomo a partir de um conjunto de
estruturas neurológicas comuns, frequentemente determinante da fisiopatologia e
expressão clínica das interacções em revisão
11
.
Pulmão e doença de refluxogastroesofágico
A doença de refluxo gastroesofágico (DRGE) é, possivelmente, a entidade mais
investigada para compreensão da relação pulmão-tubo digestivo, mas também a que
mais controvérsia gera no que diz respeito à sua etiologia.
Desde o século xix que, para além da apresentação característica da DRGE por
pirose, regurgitação ácida oral e azia, se reconhecem expressões clínicas
distintas, como tosse crónica, disfonia, pieira e mesmo infecções respiratórias
recorrentes1,2,11.
A associação estreita entre a sintomatologia respiratória e dispéptica pode
entender-se não só pela proximidade da posição anatómica do esófago, estômago e
pulmão, mas também pela sua origem a partir de divisões da mesma estrutura
embrionária (intestino primitivo anterior)11,
12
e inervação autonómica similar pelo X par craniano, o nervo vago11.
O relaxamento transitório do esfíncter esofágico inferior, responsável pelo
RGE, é um reflexo mediado neurologicamente pelo tronco cerebral e nervo vago11.
Postula-se que a presença de ácido no esófago distal induz hiperreactividade e
constrição brônquicas por estimulação dos receptores parassimpáticos luminais
ou por fenómenos de microaspiração crónicos, que são eles próprios responsáveis
por inflamação neurogénica (vagal) da via aérea11,
13
.
Inicialmente, a teoria da microaspiração era detentora de mais adeptos, uma vez
que vários trabalhos demonstraram, por cintigrafia de ventilação pulmonar, que
ocorria aspiração de conteúdo gástrico na presença de RGE
14
, e que esta era mais significativa e correlacionável com a gravidade do RGE em
doentes com sintomas respiratórios
15
.
Contudo, outros autores mostraram que em doentes asmáticos, após infusão
intraesofágica de ácido clorídrico 0,1%, ocorria uma redução significativa do
débito de ponta (PEF) e aumento da resistência das vias áreas, sem evidência de
aspiração concomitante ou de refluxo ácido ao nível do esófago proximal14.
Afirmaram, ainda, que a broncoconstrição induzida pelo ácido intraesofágico era
resultado da estimulação vagal da mucosa, determinante de uma inflamação
neurogénica, autoperpetuadora da patologia obstrutiva4.
Embora com menor frequência, pode ocorrer microaspiração alimentar em doentes
com alterações da motilidade do esófago ou anomalias da tonicidade dos
esfíncteres esofágicos (superior e inferior)
16
. No entanto, constatou-se que muitos doentes com alterações manométricas e
tosse crónica não tinham qualquer evidência de microaspiração4,11.
Associada ou não à asma, a tosse crónica causada pelo RGE, por aumentar as
pressões transdiafragmáticas e promover o relaxamento transitório do esfíncter
esofágico inferior, pode condicionar mais refluxo, criando um ciclo
fisiopatológico vicioso11.
Esta teoria não é, todavia, apoiada por todos os autores. Alguns estudos, ainda
que efectuados em populações diferentes (voluntários saudáveis), mostraram que
o esforço expiratório forçado e a contracção vigorosa da musculatura abdominal
não condicionavam a ocorrência de episódios de refluxo ácido
17
.
No entanto, será importante recordar trabalhos efectuados por Ferrari (1995)
18
, Benini (2000)
19
e respectivos colaboradores, que mostraram que doentes com RGE têm um limiar
tussígeno mais baixo, independentemente de terem ou não queixas respiratórias
habituais, havendo normalização da amplitude do reflexo da tosse após
terapêutica antir refluxo18,19.
Diversas entidades nosológicas e sintomas respiratórios, tanto das vias aéreas
superiores como inferiores, têm sido associados ao RGE.
Além de tosse crónica, alguns doentes referem congestão e prurido nasal,
rinorreia posterior, esternutos, disfonia e rouquidão11,20.
Do ponto de vista patofisiológico, embora a asma seja efectivamente a entidade
mais estudada, trabalhos mais recentes apontam o RGE como factor etiológico
possível em alguns casos de fibrose pulmonar idiopática 6, insucesso no
transplante pulmonar7, DPOC8 e síndroma de apneia obstrutiva do sono (SAOS)27
(Fig. 1).
Fig. 1 – Interacções patofisiológicas entre o RGE e o pulmão
Asma e RGE
Do ponto de vista epidemiológico, a prevalência do RGE é mais elevada no doente
asmático do que na população em geral, variando entre 30% e 80%11.
Além das já referidas relações anatómicas entre a via aérea e o esófago, origem
embrionária partilhada e inervação vagal similar, o doente asmático apresenta,
frequentemente, alterações no gradiente de pressão toracoabdominal e posição do
diafragma11,
21
. Estas modificações predispõem ao aparecimento de hérnia do hiato esofágico e
RGE21.
Tornando mais complexa esta relação, sabe-se que a terapêutica β2 agonista e as
xantinas reduzem a pressão do esfíncter esofágico inferior e os
corticosteróides aumentam a secreção ácida11.
Assim, e atendendo aos factores já detalhados, compreendemos que a asma e o RGE
se perpetuam e complicam mutuamente (Fig. 2), sendo por isso essencial ter em
mente que um dos mecanismos responsáveis pela asma de controlo difícil é,
frequentemente, o RGE não tratado22.
Fig. 2 – Mecanismos de interacção entre a asma e o RGE
Poderia assumir-se que a terapêutica do RGE ' com inibidores da bomba de
protões (IBP) ou cirurgia ' resultasse no controlo eficaz da asma. No entanto,
alguns autores avaliaram o resultado da terapêutica com IBP (omeprazol 40 mg/
dia) na asma de controlo difícil e verificaram que ocorria melhoria do FEV1 e
PEF em apenas 50% dos doentes com RGE
23
. Outros autores compararam a terapêutica médica e cirúrgica para o RGE e
verificaram que se alcançou o controlo da asma em 74,9% dos doentes a quem foi
efectuada fundoplicação de Nissen, contra apenas 9% dos doentes tratados apenas
com IBP
24
Estes resultados mostram-nos a heterogeneidade clínica e etiológica da asma e
do RGE, bem como da multiplicidade de mecanismos envolvidos na relação entre
ambos, cujo controlo não dependerá exclusivamente da inibição da produção ácida
25
.
Exemplificando esta perspectiva, temos os casos de refluxo não ácido
26
, cujo controlo dependerá, não de IBP, mas, possivelmente, de fármacos que
aumentem o tónus do esfíncter esofágico inferior25 ou da cirurgia26.
Doenças do interstício pulmonar e RGE
As doenças do interstício pulmonar constituem um conjunto amplo e variado de
patologias, cuja etiologia não está completamente definida. Além de factores
imunológicos e humorais, alguns autores defendem que o refluxo ácido pode ser
um factor etiológico de lesão intersticial
28
,
29
.
Os estudos efectuados demonstram que a prevalência de RGE nos doentes com
fibrose pulmonar idiopática é muito elevada (87% em algumas séries)
30
e que o tempo de exposição da mucosa esofágica ao ácido gástrico nos mesmos é
significativamente superior ao dos controlos, ainda que apenas 25% dos casos se
acompanhem de sintomas típicos de RGE28.
Os autores dos trabalhos mencionados postulam que, no caso da fibrose pulmonar
idiopática, a lesão instersticial advém de microaspiração crónica de conteúdo
ácido ou não ácido29,30.
Num estudo de quatro casos, efectuado por Raghu e colaboradores
31
ao longo de quatro anos, verificou-se que doentes com fibrose pulmonar
idiopática e RGE, que recusaram terapêutica imunossupressora e foram medicados
apenas com IBP ou efectuaram fundoplicação de Nissen, apresentaram
estabilização da doença respiratória31. Verificou-se ainda que, nos períodos de
suspensão da terapêutica com IBP, ocorriam agudizações da doença respiratória
nos mesmos doentes31.
A relação do RGE com a doença do interstício pulmonar está também patente nos
casos de esclerose sistémica11. Alguns trabalhos demonstram que estes doentes
apresentam esofagite e lesões laríngeas sugestivas de aspiração ácida11 e que
os doentes com RGE mais grave apresentam maior redução da capacidade de difusão
alveolocapilar do CO e mais alterações sugestivas de lesão intersticial na
tomografia computorizada de alta resolução (TCAR) do tórax
32
. Embora permaneça uma área do conhecimento pouco explorada, será útil ter em
consideração a possibilidade de RGE nos indivíduos com doença do interstício
pulmonar, particularmente nos casos de fibrose pulmonar idiopática, uma vez que
a terapêutica dirigida poderá trazer vantagens sintomáticas e prognósticas11.
DPOC e RGE
A investigação recente tem referido que a prevalência do RGE está aumentada nos
doen tes com DPOC grave (57% dos casos)8 e que o primeiro poderá contribuir
para a patogénese e episódios de agudização da doença obstrutiva
33
, uma vez que episódios agudos de refluxo ácido parecem associar-se a episódios
de oxidessaturação33.
Uma vez mais, o RGE nestes casos é, habitualmente, silencioso ' os sintomas
típicos de pirose e regurgitação surgem em apenas um terço dos casos8.
De facto, a DPOC constitui um factor de risco para o RGE: o aumento da pressão
intratorácica (sobretudo nos doentes com hiperinsuflação dinâmica), o
aplanamento da posição diafragmática, os acessos de tosse frequentes e a
terapêutica β 2 agonista são todos promotores de relaxamento do esfíncter
esofágico inferior e refluxo8 (Fig. 3).
Fig. 3 – Relação do RGE com a DPOC
Contudo, a presença de RGE deverá ser investigada nos doentes obstrutivos que
apresentem sintomas sugestivos e não com o propósito de rastreio na população
com DPOC em geral8. Efectivamente, a eficácia do rastreio generalizado de RGE
neste grupo de doentes, bem como os efeitos da sua terapêutica (médica e/ou
cirúrgica) no curso natural e prognóstico da doença obstrutiva, não são, ainda,
conhecidos8,33.
SAOS e RGE
Nas últimas duas décadas têm surgido vários estudos que tentam demonstrar a
associação entre o RGE e o SAOS.
Durante o sono há uma redução fisiológica da peristalse primária, da produção
de saliva e da clearencede ácido do esófago
34
. Associado a este risco fisiológico de refluxo, os doentes com SAOS apresentam
ainda aumento do gradiente de pressão transdiafragmática proporcional ao
aumento da pressão intratorácica durante os episódios de apneia, de que resulta
insuficiência do cárdia e episódios repetitivos de RGE34.
Alguns autores verificaram que a terapêutica com CPAP nasal nos doentes com
SAOS reduzia a gravidade e frequência dos episódios de RGE e que o controlo do
refluxo (com antagonistas dos receptores H2 da histamina) reduzia o número de
microdespertares, mas não influenciava o índice de apneia/hipopneia (IAH)35.
Outros, utilizando o omeprazol, mostraram que a terapêutica do RGE com IBP
reduzia, significativamente (em cerca de 73% à sexta semana de terapêutica), o
número e a gravidade dos episódios de apneia
36
.
Contudo, e apesar dos resultados promissores, ainda subsistem dúvidas quanto ao
papel exacto dos episódios de refluxo ácido e o desencadeadar de apneias e
microdespertares36, sendo esta uma área de intensa investigação.
Transplante pulmonar e RGE
A relação entre o sucesso do transplante pulmonar e a presença e gravidade do
RGE tem vindo a ser objectivada ao longo das últimas décadas
37
,
38
,
39
.
A prevalência de RGE é particularmente elevada após o transplante pulmonar37,
postulando-se que este facto se deva aos procedimentos cirúrgicos em si, à
terapêutica imunossupressora, ou à presença prévia de RGE nestes doentes37,38.
Existe uma associação, ainda não completamente fundamentada, entre a
microaspiração de ácido gástrico e a disfunção do enxerto pulmonar, precocidade
dos mecanismos de rejeição crónica, desenvolvimento de bronquiolite
obliterativa e mortalidade aumentada37,38.
Efectivamente, alguns autores demonstraram que a correcção cirúrgica do RGE
previne a disfunção precoce do enxerto e melhora a sobrevida geral dos doentes
submetidos a transplante pulmonar39.
Pulmão e doença inflamatória intestinal
A doença inflamatória intestinal, reconhecida hoje como doença granulomatosa
multissistémica, pode envolver qualquer órgão11.
O envolvimento pulmonar é pouco frequente, sendo geralmente assintomático e
relacionado com alterações ao nível das provas funcionais respiratórias, lavado
broncoalveolar (LBA) e radiografia de tórax11. Só raramente ocorrem sintomas
que se relacionam com o envolvimento pulmonar específico pela doença de Crohn
(DC) ou pela colite ulcerosa (CU)11 (Quadro I).
Quadro I – Manifestações respiratórias da doença inflamatória intestinal
Será importante ter em mente que muitas manifestações respiratórias da doença
inflamatória intestinal se relacionam com os fármacos imunossupressores
utilizados ou constituem síndromas de sobreposição com outras doenças
granulomatosas, por exemplo, a sarcoidose11.
Doença de Crohn e pulmãoVias áreas
O envolvimento sintomático das vias áreas (VA) pela DC é muito raro, não
ultrapassando 0,2% em algumas séries
40
. Geralmente, estas manifestações da doença granulomatosa sucedem-se ao
diagnóstico da doença intestinal, embora possam ser a primeira manifestação da
mesma e não se correlacionem, necessariamente, com a gravidade e a evolução
daquela.11
O envolvimento da via área superior pode manifestar-se através de inflamação e
ulceração da nasofaringe, hipofaringe, cordas vocais e traqueia subglótica,
condicionando estenose e obstrução11. A terapêutica com corticosteróides
sistémicos permite a resolução das lesões e proporciona, geralmente, remissões
prolongadas11.
O envolvimento traqueobrônquico resulta de processos inflamatórios crónicos,
granulomatosos ou não, condicionantes de espessamento e infiltração da parede
brônquica11. Estas lesões poderão não ter expressão radiológica, mas a
broncofibroscopia permite evidenciar lesões granulosas esbranquiçadas numa
mucosa difusamente eritematosa e edemaciada, que quando graves podem mesmo
causar deformações brônquicas, estenose e fistulização11.
Estas alterações patológicas facilitam a infecção e a supuração crónicas, razão
pela qual o LBA destes doentes tende a apresentar contagens elevadas de
neutrófilos11.
Naturalmente, a expressão clínica destas alterações será de quadros supurativos
crónicos, bem como alterações funcionais obstrutivas que tendem a melhorar
significa tivamente com a terapêutica corticóide inalada e sistémica11.
Na verdade, os corticóides inalados e sistémicos promovem melhoria
significativa das lesões visíveis na broncofibroscopia, embora o seu efeito
seja menor quando existem estenoses e deformações brônquicas.11
O envolvimento bronquiolar, seja por processos de bronquiolite celular ou
constritiva, é raro e não parece relacionar-se com o hábito tabágico11.
Clinicamente expresso por dispneia, tosse e mesmo febre, revela-se
funcionalmente por obstrução e hiperinsuflação e ao nível do LBA por
linfocitose e discreto aumento da relação CD4+/CD8+11.
O diagnóstico final depende da confirmação anatomopatológica por biópsia
pulmonar, mas perante um quadro clínico, endoscópico e radiológico compatível,
poderá ser iniciada terapêutica corticóide sistémica que permitirá a regressão
das lesões e a melhoria significativa da função respiratória11.
Parênquima pulmonar
A expressão da DC ao nível do parênquima pulmonar é variada do ponto de vista
clínico e imagiológico. Quanto ao primeiro, pode ser assintomática ou incluir
queixas de tosse e dispneia. Relativamente ao segundo, pode manifestar-se como
focos de consolidação, infiltrados intersticiais, nódulos ou massas11.
Face a esta inespecificidade de sintomas e aspectos radiológicos, o diagnóstico
de envolvimento pulmonar pela DC requer confirmação histológica11.
Ao nível do parênquima, a DC pode apresentar-se como nódulos necrobióticos,
doença intersticial granulomatosa, pneumonite intersticial não específica
(NSIP), infiltrados pulmonares associados a eosinofilia e pneumonia
organizativa11,
41
.
Nódulos necrobióticos
Expressão rara da DC, estes nódulos cavitados são evidentes na TCAR do tórax,
sobretudo ao nível das regiões periféricas do pulmão. Resultam de necrose
perivascular e podem estender-se por extensas áreas do parênquima. A
sintomatologia é inespecífica e inclui tosse e dispneia
42
.
O seu diagnóstico requer confirmação anatomopatológica, verificando-se
frequentemente remissão clínica e imagiológica mesmo na ausência de
terapêutica11.
Doença intersticial granulomatosa
É a forma mais frequente de lesão parenquimatosa pulmonar pela DC e resulta de
inflamação granulomatosa do interstício, paredes bronquiolares, vasculares e
septos alveolares11.
Manifesta-se por sintomas constitucionais, tanto em adultos como em crianças, e
associa-se frequentemente a tosse produtiva, dispneia e dor torácica
43
.
As alterações imagiológicas mostram alterações reticulares focais ou difusas e,
raramente, nódulos e massas43. O estudo funcional revela alteração ventilatória
restritiva e redução da capacidade de difusão alveolocapilar do CO11,43. O LBA
é, geralmente, hipercelular e de predomínio linfocítico11.
A resolução clínica e radiológica desta entidade depende de terapêutica com
corticosteróides sistémicos, ainda que já tenham sido relatados casos de
remissão espontânea11.
Pneumonia intersticial não específica(NSIP)
Expressão muito rara da DC, resulta da inflamação do interstício pulmonar sem
formação de granulomas41.
As suas manifestações incluem tosse seca e dispneia, e do ponto de vista
imagiológico predominam as alterações em vidro despolido e fibrose
pulmonar11,41.
A terapêutica envolve doses elevadas de corticóides sistémicos e
ciclofosfamida41.
Pneumonite eosinofílica
Constitui uma manifestação específica da DC ao nível do pulmão, embora seja
necessário fazer o diagnóstico diferencial com a toxicidade pulmonar pela
sulfasalazina e a mesalazina
44
.
Consiste numa doença intersticial associada a infiltrados eosinofílicos, com ou
sem eosinofilia periférica, e a terapêutica baseia-se, uma vez mais, na
corticoterapia sistémica44.
Pneumonia organizativa(OP)
Apesar de constituir, mais frequentemente, um efeito adverso da terapêutica da
DC, a OP também pode surgir em doentes não tratados, sugerindo lesão
inflamatória relacionada com a doença intestinal11.
Foram descritos casos de remissão espontânea, mas a terapêutica pode incluir os
corticóides sistémicos e o infliximab11.
Pleura
O envolvimento das serosas é possível na DC, mas são escassos os casos
descritos relativamente ao envolvimento pleural11. Este pode incluir o derrame
pleural (geralmente, exsudado de predomínio neutrófilo) ou o espessamento
pleural11,44.
Fístulas
Embora raras, as fístulas colobrônquicas, esofagobrônquicas e ileobrônquicas já
foram descritas
45
,
46
,
47
.
O diagnóstico baseia-se na clínica (tosse produtiva de expectoração fecalóide e
infecções respiratórias recorrentes) e no estudo radiológico do tubo
digestivo11.
A terapêutica requer a correcção cirúrgica do trajecto fistuloso e os fármacos
específicos para a DC11.
Vascularização pulmonar
É hoje aceite que a DC é um factor de risco independente para o tromboembolismo
pulmonar (TEP), embora a causa para o estado de hipercoagulabilidade que
origina não esteja ainda esclarecida
48
.
Deste modo, face a um doente com DC e sintomas sugestivos, a hipótese de TEP
deverá ser sempre considerada48.
Colite ulcerosa e pulmão
Apesar de se reconhecerem algumas semelhanças na expressão clínica, patológica
e imagiológica, entre a lesão pulmonar na DC e na CU, os estudos efectuados
parecem apontar para maior frequência e gravidade na última
49
.
Assim, a ulceração traqueal e a estenose traqueal, a supuração brônquica, as
bronquiectasias, a pneumonia organizativa e os nódulos necrobióticos são mais
frequentes na CU do que na DC11,49.
O envolvimento respiratório na CU, que diz respeito, na maioria dos casos, às
vias aéreas, pode preceder, ser concomitante ou suceder, por vezes em muitos
anos, o diagnóstico da doença inflamatória intestinal49.
Pensa-se que a colectomia ou a proctocolectomia são factores de risco para o
desenvolvimento de doença respiratória na CU, não sendo ainda clara a acção dos
aminossalicilatos na patogénese da última49.
Vias aéreas
A inflamação das VA (glóticas, subglóticas, traqueia, brônquios principais e
distais), associada ou não a ulceração e estenose, é o padrão mais comum de
envolvimento respiratório na CU49.
Os locais mais frequentes de lesão são as vias aéreas de grande calibre
(traqueia, carina e brônquios principais) e, face às lesões inflamatórias,
estenóticas e ulcerativas, os sintomas habituais são a dispneia, a tosse
(geralmente produtiva), a broncorreia (mucopurulenta ou francamente purulenta)
e as hemoptises11,49.
O envolvimento das vias aéreas superiores pode acompanhar-se de rouquidão e
estridor e o envolvimento distal, ao nível bronquiolar, pode resultar em
queixas de pieira11,49.
A exacerbação da sintomatologia respiratória pode coincidir ou não com a
exacerbação das queixas intestinais, não sendo raro o agravamento rápido dos
sintomas respiratórios basais após proctocolectomia11.
Apesar da expressão por vezes exuberante dos sintomas respiratórios, os achados
endoscópicos podem ser discretos, e incluem a hiperemia e o edema, por vezes
condicionante de redução luminal da traqueia e dos brônquios principais11,49. A
carina também pode estar alargada por edema11,49.
O LBA apresenta, geralmente, predomínio de neutrófilos e a histologia das
lesões é em muito semelhante às encontradas no cólon11.
Funcionalmente, o padrão obstrutivo é o mais habitual nestes casos e a resposta
ao broncodiltador é, frequentemente, negativa11.
Apesar de a radiografia simples do tórax ser, muitas vezes, incaracterística,
na TCAR pode ser evidente a retenção aérea e o mosaico de perfusão, resultado
da obstrução das vias aéreas de menor calibre49. As bronquiectasias e o
espessamento da parede brônquica também podem ser visíveis nos casos de doença
mais grave49. A impactação de secreções nas pequenas vias aéreas pode originar
o padrão de árvore em botão na TCAR49.
A melhoria clínica, funcional e das lesões visíveis por broncofibroscopia,
mesmo nos doentes com bronquiectasias, raramente se alcança apenas com a
terapêutica específica para a CU e requer a corticoterapia inalada em doses
elevadas11. Nos casos mais graves, poderá ser útil a corticoterapia
sistémica11.
Insterstício pulmonar
A doença do interstício pulmonar constitui uma manifestação mais rara da
patologia respiratória na CU, e pode incluir a OP, a NSIP, a pneumonia
intersticial descamativa, os infiltrados granulomatosos e mesmo a pneumonia
intersticial usual (UIP)11.
Geralmente, o LBA destes doentes é linfocítico, ou mais raramente eosinófilico,
ao invés de neutrofílico, como acontece nos casos de atingimento preferencial
da VA11.
A doença do interstício pulmonar na CU exige sempre o diagnóstico diferencial
de toxicidade pulmonar pelos aminossalicilatos, uma vez que esta pode
expressar-se pelos mesmos padrões de lesão intersticial11,49.
A terapêutica com corticóides sistémicos tende a melhorar, substancialmente,
qualquer forma de doença intersticial associada à CU11.
Pleura
Ainda que pouco frequente, a serosite é possível como expressão extraintestinal
da CU, podendo resultar em derrames pleurais e pericárdicos de repetição11.
Embora seja possível a existência de derrame pleural como resultado da
toxicidade pela sulfasalazina (síndroma lúpus -like), muitas vezes a serosite é
independente da terapêutica e tende a acompanhar as exacerbações da doença
intestinal11,49.
A terapêutica baseia-se na corticoterapia sistémica e anti-inflamatória não
esteróide, tendo geralmente bons resultados11.
O pneumotórax e pneumomediastino são entidades muito raras na CU e podem
resultar de perfuração do cólon ou megacólon tóxico, em doentes sem patologia
pulmonar ou com envolvimento bronquiolar subclínico11,
50
.
Pulmão e fígado
Pulmão e fígado relacionam-se não apenas pela proximidade anatómica, entre as
duas superfícies do diafragma, mas também pela partilha de doenças afectas a
ambos (deficiência de α1 antitripsina e fibrose quística, por exemplo),
relações vasculares complexas entre a circulação portal, sistémica e pulmonar,
e a participação própria e interligada em situações de manutenção da
homeostasia corporal e equilíbrio acidobase11.
As entidades eventualmente mais representativas da complexidade desta relação,
ainda que de etiologia, prevalência, fisiopatologia, prognóstico e terapêutica
distintas, são a hipertensão portopulmonar (HTPP) e a síndroma hepatopulmonar
(SHP)11.
Hipertensão portopulmonar
A hipertensão arterial pulmonar (PAP média >25 mmHg em repouso ou 30 mmHg no
esforço, por cateterismo direito) ocorre em cerca de 2 a 5% dos doentes com
hipertensão portal
51
.
O aumento marcado do débito vascular pulmonar nos doentes com hipertensão
portal causa alterações da reologia local, promotoras de vasoconstrição e
microtrombose, bem como alterações da anatomia vascular (hipertrofia da camada
média e proliferação endotelial)51.
As endotoxinas e citocinas libertadas pela circulação esplâncnica, ao fazerem
bypassà circulação hepática, poderão ser promotoras de alterações génicas na
circulação pulmonar, induzindo as alterações descritas.
Apoiando esta hipótese, está o facto de os doentes com shuntsportossistémicos
poderem desenvolver as mesmas alterações vasculares pulmonares dos doentes com
HTPP
52
.
Não parece haver correlação directa entre o desenvolvimento de HTPP e a
existência ou gravidade de doença hepática ou hipertensão portal, do mesmo modo
que nem todos os doentes com hipertensão portal desenvolvem HTPP, o que
pressupõe a necessidade de determinadas características genéticas de
susceptibilidade ainda não completamente identificadas52.
A HTPP é considerada pela OMS como uma categoria de hipertensão arterial
pulmonar, juntamente com as outras formas de doença idiopática, devendo,
portanto, considerar-se um diagnóstico de exclusão51.
A expressão clínica da HTPP não difere da hipertensão arterial pulmonar
idiopática, incluindo dispneia de esforço, dor torácica, edemas periféricos,
palpitações e síncope11.
Funcionalmente, há redução da capacidade de difusão alveolocapilar do CO,
insuficiência respiratória parcial e alcalose respiratória11.
Na ausência de terapêutica, a sobrevida destes doentes é má, sendo em algumas
séries inferior a 10% aos 6 meses11.
A terapêutica médica convencional é escassa e constituída essencialmente pelos
diuréticos de ansa e a espironolactona, já que não se recomenda a
hipocoagulação com dicumarínicos, pelo risco de hemorragia digestiva em doentes
com alterações basais da coagulação, nem os antagonistas dos canais de cálcio,
devido ao aumento do gradiente de pressão venosa hepática11. Nos últimos anos,
a utilização de vasodilatadores pulmonares, como os análogos da prostaciclina,
os antagonistas dos receptores da endotelina (em grupos com determinadas
particularidades) e os inibidores da fosfodiesterase tem revelado resultados
promissores em termos de melhoria clínica, hemodinâmica e prognóstica em alguns
doentes11.
Ao contrário da síndroma hepatopulmonar, a transplantação hepática nos doentes
com HTPP não assegura, necessariamente, a reversão das alterações patológicas e
hemodinâmicas, associando-se ainda a importante risco de mortalidade
perioperatória52.
Síndroma hepatopulmonar
A SHP é definida pela presença de doença hepática, vasodilatação intrapulmonar
e redução da oxigenação arterial, na presença ou ausência de doença cardíaca ou
pulmonar basal.11
Embora mais frequente nos adultos de meia-idade, pode ocorrer na população
pediátrica, e resulta de alterações vasculares pulmonares profundas, com
dilatação dos vasos a nível pré-capilar, capilar e pós-capilar, que permitem a
passagem directa, sem possibilidade de trocas gasosas, do sangue venoso da
circulação arterial pulmonar para as veias pulmonares.11
Estas alterações patológicas condicionam grave desequilíbrio entre a ventilação
e a perfusão pulmonares, redução da vasoconstrição reflexa à hipoxia, redução
da capacidade de difusão alveolocapilar e desenvolvimento de hipoxemia grave11.
Em teoria, qualquer doença hepática aguda ou crónica pode cursar com SHP,
embora as causas mais frequentes sejam a cirrose hepática de qualquer etiologia
e a hipertensão portal.11,52
Postula-se que na génese da vasodilatação intrapulmonar da SHP esteja a
produção aumentada de óxido nítrico (NO), já que alguns estudos têm mostrado
que o valor do NO no condensado do ar exalado se relaciona positivamente com a
gravidade da doença hepática, trocas gasosas e alterações hemodinâmicas, e
normaliza após o transplante hepático.
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Este aumento do NO poderá dever-se à expressão e actividade aumentadas da
sintase do NO, tanto a nível do endotélio capilar, como nos macrófagos, segundo
sugerem alguns estudos em modelos animais.
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Além das queixas típicas da doença hepática crónica, a SHP pode cursar com
sintomas respiratórios característicos, embora não patognomónicos, como
dispneia de esforço, platipneia (dispneia agravada na posição ortostática),
ortodeoxia (diminuição da PaO2 ≥ 5% ou 4 mmHg na transição do decúbito supino
para o ortostatismo), cianose e hipocratismo digital.11
O diagnóstico da SHP é feito pela ecocardiografia transtorácica com injecção de
soro fisiológico agitado (método gold-standard), em que o atraso no
aparecimento das microbolhas, provenientes da agitação do soro, ao nível da
aurícula esquerda, sugere a existência de vasodilatação intrapulmonar, com
retenção das microbolhas na vasculatura do pulmão11.
Outros exames complementares possíveis para o diagnóstico da SHP são a
cintigrafia de ventilação-perfusão pulmonar, a TCAR do tórax e a angiografia
pulmonar.11
A terapêutica desta entidade tem importância crucial, uma vez que a SHP é um
factor prognóstico independente da gravidade da doença hepática basal,
aumentando significativamente a mortalidade destes doentes.11
Apesar de alguns estudos observacionais referirem a embolização arterial
pulmonar e o shunttransjugular intraepático como opções terapêuticas para a
SHP, a transplantação hepática é, à data, a terapêutica mais eficaz, permitindo
a resolução completa da doença em mais de 80% dos casos55.
Conclusões
O conhecimento das relações anatomofisiológicas entre o pulmão, o tubo
digestivo e os órgãos anexos é de primordial importância para o pneumologista,
uma vez que permitirá o diagnóstico e a terapêutica orientada de entidades
nosológicas particulares que se associam, frequentemente, a grande morbilidade
e dificuldade no controlo da sintomatologia respiratória propriamente dita.