Esclerose tuberosa com envolvimento pulmonar
Introdução
A esclerose tuberosa (ET) foi reconhecida pela primeira vez em 1880 por
Bourneville, que descreveu as manifestações neurológicas da doença e, daí, a
denominação de doença de Bourneville
1
. A tríade característica da doença, convulsões, atraso mental e angiofibromas
faciais, foi descrita em 1908 por Vogt
2
.
É uma doença rara, esporádica ou transmitida de forma autossómica dominante,
multissistémica, que se caracteriza pelo crescimento de tumores benignos
hamartomatosos localizados em múltiplos órgãos. Os órgãos mais frequentemente
envolvidos são rim, cérebro, pele, pulmão e coração.
Foram identificadas duas alterações genéticas: uma mutação no braço longo do
cromossoma 9 (conhecida como TSC1' tuberous sclerosis complex 1) e outra no
braço curto do cromossoma 16 (conhecida como TSC2 ' tuberous sclerosis complex
2), presentes em cerca de 80% dos casos
3
.
Afecta igualmente ambos os sexos, sem predisposição por raça, e pode surgir em
qualquer idade, diferindo no entanto as manifestações da doença de acordo com a
idade de apresentação. A incidência é de cerca de 1:6000
4
.
O diagnóstico é clínico e baseado nos critérios revistos pela Tuberous
Sclerosis Alliance(TS Alliance) e pelo National Institutes of Health(NIH) em
1998 (Quadro I)
5
.
Quadro_I – Critérios de diagnóstico da esclerose tuberosa revistos pela
Tuberous Sclerosis Alliance (TS Alliance) e pelo National Institutes of Health
(NIH) em 1998
Considera-se definitivo o diagnóstico de ET na presença de dois critérios
majorou um majore dois minor.O diagnóstico é provável na presença de um
critério majore um minor. A ET é considerada possível na presença de um
critério majorou dois ou mais critérios minor.
Relato de caso
Os autores apresentam o caso de uma doente de 52 anos, não fumadora, com
antecedentes conhecidos de epilepsia na infância, pré-eclampsia e
angiomiolipomas renais diagnosticados desde a adolescência, mantendo vigilância
em consulta de urologia. Sem novas crises de epilepsia desde os 16 anos. Sem
hábitos medicamentosos. Sem antecedentes familiares relevantes.
Referenciada à consulta de Pneumologia na sequência de alterações na TAC
(tomografia axial computorizada) torácica, realizada para avaliação da doença,
que evidenciou área em vidro despolido no lobo superior esquerdo e inúmeras
formações microquísticas dispersas por ambos os campos pulmonares (Fig. 1).
Assintomática e sem alterações ao exame objectivo.
Fig. 1 –TAC (tomografi a axial computorizada) torácica evidenciando área em
vidro despolido no lobo superior esquerdo e formações microquísticas dispersas
pelos dois pulmões
Apresentava anemia normocítica normocrómica, velocidade de sedimentação de 15mm
na 1.ª hora, marcadores víricos e serologias negativos, função hepática e renal
e estudo imunológico sem alterações. Estudo funcional respiratório com FVC
(forced vital capacity) de 2,61 L (95,4% prev); FEV1 (forced expiratory volume
1 second) de 2,44 L (105% prev); IT (índice de Tiffenau) de 93,5%; TLC (total
lung capacity) 98,8%; VR (volume residual) 112,4%; VR/TLC 113,7%. Difusão do
monóxido de carbono normal (92% prev). Gases do sangue arterial (FiO2 21%): pH
7,412; pO2 80,4; pCO2 34,5; HCO3 19,7; sO2 96,6%. Broncofibroscopia sem
alterações, com microbiologia e citologias para células malignas negativas no
lavado brônquico. Repete TAC abdominal, mantendo os angiomiolipomas renais já
conhecidos (Fig. 2). Realizou ressonância magnética cerebral que demonstrou
tuberosidades corticais, em localização frontal paramediana e temporal
posterior direitas e nódulos subependimários calcificados nos ventrículos
laterais (Fig. 3).
Fig. 2 – TAC (tomografi a axial computorizada) abdominal evidenciando
angiomiolipomas renais bilaterais
Fig. 3 – RM (ressonância magnética) cerebral - tuberosidades corticais e
nódulos subependimários
Concluiu-se pelo diagnóstico de ET de acordo com as recomendações diagnósticas
da TS Alliance e do NIH
3
: linfangioleiomiomatose, tuberosidades corticais, nódulos subependimários e
angiomiolipomas renais.
A doente mantém-se em vigilância e assintomática, sem novas alterações
radiológicas.
Discussão
Na ET, as alterações cutâneas e neurológicas são as manifestações mais comuns,
respectivamente 95 e 90% dos doentes
5,6
.
As manifestações neurológicas podem traduzir-se por convulsões, alterações
psiquiátricas e comportamentais, alterações do desenvolvimento ou atraso mental
e dependem essencialmente do tamanho e localização das tuberosidades corticais,
nódulos su-bependimários e astrocitomas de células gigantes subependimários. As
tuberosidades corticais não apresentam localização preferencial por nenhum
lobo. Os nódulos subependimários encontram-se na parede lateral dos ventrículos
e, em 5 -10% dos casos, podem degenerar em astrocitomas de células gigantes.
As manifestações cutâneas mais comuns são os angiofibromas faciais, máculas
hipomelanocíticas, fibromas ungueais, periungueais ou gengivais e placas de
shagreen(zonas de pele descolorada mais espessa e áspera no dorso,
particularmente na região lombossagrada). Esta doente não apresentava nenhuma
alteração cutânea.
As alterações renais são o terceiro achado clínico mais frequente e podem
ocorrer como angiomiolipomas renais (>80% dos doentes com ET)7, quistos renais
simples, rins poliquísticos e carcinoma de células renais. Os angiomiolipomas
renais habitualmente são múliplos e bilaterais. A presença de sintomas, como
dor, náuseas ou vómitos, está geralmente associada aos tumores com dimensões
superiores a 4cm. O risco de hemorragia devido à formação de aneurismas também
está aumentado nos tumores de maior diâmetro.
As alterações cardíacas manifestam-se em cerca de 50-60% dos doentes com ET,
habitualmente durante a gestação ou no primeiro ano de vida, e habitualmente
sob a forma de rabdomiomas, podendo causar sintomas essencialmente por
obstrução ao fluxo ou por alterações do ritmo. No entanto, a maioria são
assintomáticos e acabam por regredir espontaneamente nos primeiros anos de vida
8,9
.
As alterações oftalmológicas são referidas em 50 a 80% dos doentes, dependendo
das séries
7,10
.
A alteração pulmonar mais frequente é a linfangioleiomiomatose (LAM). Surge
quase exclusivamente no sexo feminino a partir da terceira ou quarta décadas de
vida. O envolvimento pulmonar, previamente considerado uma manifestação rara,
com uma prevalência inferior a 3%
11
, pensa-se actualmente poder ter uma maior prevalência.
Um estudo recente que rastreou por TAC torácico mulheres com ET sem sintomas
pulmonares demonstrou alterações císticas em cerca de 40%
12
.
Na LAM, as células musculares lisas sofrem uma proliferação anormal,
comprometendo os bronquíolos, linfáticos e capilares. A elasticidade pulmonar
vai reduzindo, com consequente diminuição da capacidade vital e aumento do
volume residual. A LAM traduz-se pela presença de cistos nos pulmões, únicos ou
múltiplos, variando de dimensões entre alguns milímetros até vários
centímetros. A maior parte dos doentes manifesta-se com dispneia, pneumotórax,
hemoptises ou, mais raramente, quilotórax.
A tríade clínica completa é incomum em doentes com envolvimento pulmonar, como
aconteceu com esta doente.
No caso clínico apresentado não se observaram manifestações de todos os órgãos
normalmente envolvidos na doença. Houve predomínio de envolvimento renal,
neurológico e pulmonar.
A ET condiciona uma diminuição da sobrevida, sendo a doença renal e os tumores
cerebrais as principais causas de morte. O prognóstico dos doentes com
envolvimento pulmonar sintomático é reservado, sendo frequente a doença
progressiva com insuficiência respiratória.No entanto, actualmente sabe-se que
existem formas variadas da doença, algumas mais frustres e com um curso clínico
mais favorável, como é o caso desta doente, até à data.
A ET deve ser encarada como uma doença crónica multissistémica, sendo os
objectivos do tratamento a melhor qualidade de vida possível com o menor número
de complicações e efeitos secundários.
Deve ser fornecido o tratamento de acordo com os sintomas, nomeadamente
medicação anticonvulsiva e tratamento cirúrgico, se possível.
Até à data não existe nenhum tratamento eficaz para a LAM ou ET, à excepção do
transplante pulmonar na fase terminal da doença. Devido à maior prevalência da
LAM na mulher em idade reprodutiva, pensa-se que os estrogénios possam ter um
papel na progressão da doença, pelo que alguns doentes recebem tratamento
hormonal (progesterona), apesar de não ter sido demonstrado de forma conclusiva
o seu benefício
13,14
.
Novas terapêuticas, como a rapamicina, apresentam já os primeiros resultados
positivos. São necessários, no entanto, mais estudos para se confirmar eficácia
e segurança
15
.
A resposta aos diferentes tratamentos testados é variável de doente para doente
e nenhum tratamento demonstrou eficácia em todos os doentes com LAM.