Características clínicas de doentes com neoplasia do pulmão e neoplasias
primárias síncronas ou metácronas com outras localizações
Introdução
O cancro do pulmão apresenta, actualmente, na União Europeia, uma incidência
anual de 52,5/100 000 (82,5/100 000 no sexo masculino e 23,9/100 000 no sexo
feminino) e uma mortalidade anual de 48,7/100 000 (77,0 no sexo masculino e
22,3 no sexo feminino), sendo a principal causa de morte por cancro
1-2
. É sabido que o número de sobreviventes de vários tipos de cancro nos Estados
Unidos da América triplicou desde 1971, e está a crescer 2% ao ano
3
. No universo dos doentes com diagnóstico de neoplasia, a sobrevivência aos
cinco anos é de 66%, enquanto nos doentes com cancro do pulmão é de 16%1-5.
Propiciado por este facto, a incidência de segundas neoplasias, síncronas ou
metácronas, tem vindo a aumentar nas últimas décadas, o que se correlaciona com
factores genéticos do hospedeiro, com factores ambientais em relação com
exposição a factores de risco, com a terapêutica oncostática da primeira
neoplasia e com a interacção de todos estes factores
6-9
. Neste domínio é interessante verificar que as segundas neoplasias são a
primeira causa de morte entre algumas populações sobreviventes de cancro5.
Deste modo, o conhecimento das características da população que apresenta
coexistência de neoplasias pode ser importante para o estabelecimento, no
futuro, de programas especiais de follow-uppara determinados subgrupos
identificados como tendo risco acrescido.
Neste contexto, realizamos um estudo retrospectivo em que avaliamos as
características de doentes com o diagnóstico de neoplasia do pulmão que tinham
paralelamente outra neoplasia, concomitante ou não.
Material e métodos
Foi realizado um estudo retrospectivo, referente ao período de 2000-2007, no
qual foram estudados 44 (4,2%) processos de um universo 1046 doentes da Unidade
de Pneumologia Oncológica do nosso hospital, que foram identificados como tendo
pelo menos duas neoplasias.
Nesta população avaliaram-se características demográficas, hábitos tabágicos,
antecedentes familiares de relevância oncológica, localização da primeira e
segunda neoplasias, histologia, estádio, terapêutica e sobrevivência.
As variáveis foram analisadas tendo-se utilizado métodos de estatística
descritiva, nomeadamente tabelas de frequência e média, desvio-padrão, máximos
(máx) e mínimos (mín) para variáveis continuas.
Resultados
População
No período estudado avaliaram-se 44 doentes que corresponderam a 4,2 % do total
dos registos da unidade no período referido (n=1046). Oitenta e nove por cento
(n=39) eram homens e 11% (n=5) mulheres. A idade média da população foi de
70,1±10 anos (máx: 85 anos; mín: 47anos) – Quadro I.
Quadro I– Sexo e idade da população estudada
Na população estudada, 86,3% (n=38) eram fumadores ou ex-fumadores, sendo todas
as doentes do sexo feminino não fumadoras (Quadro II). Nos doentes com hábitos
tabágicos, 42,1% (n=16) eram fumadores activos, a carga tabágica média foi de
66 ± 29,5 UMA (máx: 150, mín: 20). Em 40,9% (n=18) dos doentes não havia
registo de história familiar e, naqueles em que tal ocorria, verificou-se que
65,4% (n=17) tinham história familiar de neoplasia relevante.
Quadro II – Hábitos tabágicos (n=44)
Primeira neoplasia
No sexo masculino, a doença oncológica manifestou-se em primeiro lugar como
neoplasia da próstata (27%; n=11), do cólon (14%; n=6), da laringe (14%; n=6) e
da bexiga (9%; n=4) – Fig. 1.
Fig. 1 – Localização da primeira neoplasia no sexo masculino
No sexo feminino (n=5), duas doentes tinham neoplasia do útero, uma neoplasia
da mama, uma neoplasia do ovário e outra leucemia linfocítica crónica.
O grupo histológico das primeiras neoplasias distribuía-se de acordo com a Fig.
2, sendo que eram essencialmente neoplasias epiteliais (93% de carcinomas).
Fig. 2 – Histologia da primeira neoplasia
No que diz respeito à terapêutica efectuada, verificou-se que 56,8% (n=25)
fizeram cirurgia, 40,1% (n=18) radioterapia (RT), desconhecendo-se doses e
campos exactos de irradiação; no entanto, 55,6% (n=10) tiveram exposição do
órgão da segunda neoplasia a radiação; 18,2% (n=8) fizeram quimioterapia (QT) e
18,2% (n=8) outras terapêuticas, nomeadamente hormonoterapia na neoplasia da
próstata ou da mama ou quimioembolização no carcinoma hepatocelular.
Segundas neoplasias
O intervalo de tempo médio entre a primeira e a segunda neoplasia foi de
61,0±64,9 meses (máx: 240 meses, mín: 0 meses), havendo registo de oito
neoplasias íncronas. No grupo de doentes estudado, o cancro do pulmão foi em
geral a segunda neoplasia (97,7%, n=43).
Noventa e cinco por cento (n=42) eram carcinomas do pulmão de não pequenas
células (Fig. 3).
Fig. 3 – Tipo histológico da segunda neoplasia (CPC– carcinoma
pavimentocelular; CPNPC– carcinoma pulmonar de não pequenas células; CPPC–
carcinoma pulmão de pequenas células ; Carc– carcinoma; dif– diferenciado)
A maioria (82%, n=36) dos doentes tinham o diagnóstico de segunda neoplasia em
estádios avançados da doença – estádio IIIB/IV– Fig 4.
Fig. 4 – Distribuição da segunda neoplasia por estádio (TNM)
No que diz respeito à terapêutica da segunda neoplasia, foi realizada
terapêutica com intenção curativa em 25% (n=11) dos doentes, sendo que para os
restantes foi elaborado um plano de tratamento com intenção paliativa. Dos
doentes tratados com intuitos curativos, três ( 27,3%) foram submetidos apenas
a cirurgia, três (27,3%) realizaram terapêutica combinada (cirurgia +
terapêutica complementar) e um fez RT torácica e quatro (36,4%)
quimiorradioterapia.
Dos restantes 33 doentes tratados com intuitos paliativos, 14 (42,4%) apenas
foram elegíveis para terapêutica de suporte (incluindo RT torácica paliativa,
RT óssea e cranioencefálica); os restantes 19 fizeram quimioterapia, na maioria
dos casos usando regimes combinados com platinos.
Dos dados de sobrevivência de que dispomos, salienta-se que quatro doentes
permanecem vivos, sendo duas do sexo feminino, não fumadoras, uma com neoplasia
da mama e outra com neoplasia do ovário anteriores, com tempo após o
diagnóstico da segunda neoplasia superior a três anos, sem evidência de
recidiva e sem terapêutica antineoplásica actual, e dois são doentes do sexo
masculino, fumadores, um com o diagnóstico de neoplasia do cólon e outro da
próstata com diagnóstico recente de neoplasia do pulmão.
Nos restantes, a sobrevivência média foi de 8,6 +/– 8,24 meses (máx: 32, mín:
1); o doente com sobrevivência máxima (32 meses) apresentava 85 anos, era ex-
fumador e tinha um carcinoma do pulmão de não pequena células, estádio IB
submetido a RT, tendo história de neoplasia do cólon operada há quatro anos.
Nos dois doentes em que a neoplasia primária foi pulmonar (respectivamente, um
adenocarcinoma e um carcinoma pavimentocelular), as segundas neoplasias (um
carcinoma pavimento celular da laringe e um carcinoma do pulmão de pequenas
células) apareceram após um intervalo superior a nove anos, apresentando-se
ambas em estádio avançado; a sobrevivência foi de um e sete meses,
respectivamente.
Discussão/Conclusões
A cancro do pulmão é uma das neoplasias mais frequentes, sendo a principal
causa de morte oncológica no mundo1-2.
Sabendo-se que a incidência de neoplasias coexistentes tem aumentado nas
últimas décadas, o presente estudo pretendeu caracterizar a população de
doentes com neoplasia de pulmão diagnosticada na nossa unidade que apresentaram
em alguma altura da sua vida outra neoplasia
2
,3.
No período estudado, constatámos que 4,2% dos doentes tinham neoplasias
múltiplas, valor coincidente com o de outras séries (0,8-5,2 %)6,
7
,
10
.
A população analisada tinha uma média de idade elevada (70 anos) e uma alta
percentagem de homens (88,6%, n=39), valor de magnitude semelhante à de estudos
epidemiológicos de cancro do pulmão em Portugal, o que se correlaciona com o
facto de os homens ainda estarem mais expostos ao factor de risco principal, no
âmbito do cancro do pulmão, que é o tabaco
11
.
Na população geral, cerca de 85% dos doentes com neoplasia do pulmão têm
hábitos tabágicos, sendo este também um factor de risco para o aparecimento de
segundas neoplasias1,
12
. Na presente série, 86,3% dos doentes apresentavam hábitos tabágicos com carga
tabágica média elevada. Curiosamente, nenhuma das mulheres do estudo tinha
hábitos tabágicos; no entanto, na população feminina global este valor é da
ordem dos 47%, podendo esta divergência ser justificada pelo número limitado de
doentes do sexo feminino nesta amostra
13
. O controlo do tabagismo, como causa de cancro prevenível, é claramente uma
prioridade na prevenção do cancro do pulmão e de outras neoplasias malignas
14
,
15
.
Em termos globais, a incidência da neoplasia do pulmão começou a decrescer nas
últimas décadas, devido à diminuição dos hábitos tabágicos, relacionada com
múltiplas campanhas antitabágicas e consultas de desabituação tabágica15. No
entanto, verificamos que a percentagem de hábitos tabágicos na população
analisada se mantém muito elevada, sendo ainda mais significativa se
verificarmos que, dentro do universo de doentes com hábitos tabágicos, 42,1%
(n=16) mantinham-se fumadores activos, apesar de um diagnóstico prévio de
cancro. Este facto salienta a necessidade, na população em geral, e em especial
na subpopulação com diagnóstico prévio de neoplasia, de incrementação de
medidas de cessação tabágica, com o objectivo primário de prevenção do cancro.
Outro facto a realçar na presente série foi a grande percentagem de doentes com
história familiar de neoplasia (65,4%, n=17). Seria importante analisar, em
estudo posterior, se alguns destes doentes teriam síndromas de susceptibilidade
familiar para neoplasia, ou algum marcador molecular e/ou genético que lhes
confira susceptibilidade aumentada para virem a sofrer de cancro.
Como foi referido, as segundas neoplasias podem estar relacionadas com sequelas
do tratamento da primeira neoplasia, nomeadamente com a radioterapia ou a
quimioterapia6.
O cancro do pulmão, que foi primordialmente a nossa segunda neoplasia, tem
risco estimado associado a radioterapia (risco relativo a 1Gy de 1,0-2,0/ano e
risco excessivo x104 pessoa/ano/Gy 0-4,6)
8
,
9
,16.
Nesta série, 18 doentes fizeram RT para a primeira neoplasia, sendo que dez
tiveram exposição do órgão da segunda neoplasia, podendo-se especular
relativamente à relação entre tratamento anterior e o segundo cancro.
Dezoito por cento (n=8) dos doentes fizeram quimioterapia; contudo, não é
possível fazer qualquer tipo de análise neste ponto, dada a ausência de
informação relativamente aos esquemas utilizados.
No que diz respeito à localização da doença oncológica, esta manifestou-se em
primeiro lugar em locais cuja incidência global de neoplasia é elevada, como a
neoplasia colorrectal e a neoplasia da próstata, e em localizações com factores
de risco semelhantes aos do cancro do pulmão, como as neoplasias da cabeça e
pescoço ou da bexiga, que estão associadas ao tabaco1-2,9. Verificou-se que o
diagnóstico da segunda neoplasia foi em geral feito em estádio avançado da
doença, com sobrevivência curta após segundo diagnóstico. Este facto
provavelmente correlaciona-se com a constatação de que a segunda neoplasia
apareceu após um intervalo longo livre de doença (62,9± 64,9 meses; máx: 240
meses), quando a vigilância era menos apertada.
Deste modo, defendemos que se deve ter especial atenção ao rastreio de
neoplasias frequentes e com factores de risco semelhantes em doentes com
história prévia de doença maligna, mantendo-se um seguimento prolongado.
Apesar de a população analisada ser muito heterogénea, o que nos coloca
dificuldades na obtenção de conclusões, este trabalho permite-nos especular, de
acordo com outros autores, que a incidência de neoplasias síncronas ou
metácronas aumenta com a idade e correlaciona-se com factores de risco
tradicionalmente implicados na patogénese do cancro, como o tabaco e como o
tratamento da primeira neoplasia5,6.
Deste modo, em doentes com diagnóstico prévio de cancro, parece-nos essencial:
– Manter vigilância e seguimento clínico apertado e prolongado;
– Identificar em cada doente factores de risco para cada neoplasia e tomar
medidas preventivas. Assim, seria oportuno construir um algoritmo de risco
personalizado que nos possibilitasse vigiar melhor estes doentes. Um exemplo de
proposta seria:
• Fazer vigilância do tumor primário de acordo com o recomendado;
• Implementar hábitos saudáveis, ex: dieta, exercício físico
• Controlo de factores de risco:
– Cessação tabágica
– Cessação de hábitos alcoólicos
– Evitar a obesidade
• Rastreios de acordo com as normas internacionais:
– Cancro do colo do útero:se doente sexualmente activa, citologia anual, até
três resultados negativos, e depois cada dois ou três anos; – Cancro da mama:
primeira mamografia entre 30-40 anos e depois cada um ou dois anos até
esperança de vida ser inferior a 10 anos;
– Cancro da próstata:na raça negra, desde os 40-45 anos, e na raça caucasiana a
partir dos 50 anos utilizando PSA com exame digital anual, até esperança de
vida ser inferior a 10 anos;
– Cancro do pulmão:incluir em protocolos de rastreio investigacionais;
– Carcinoma hepatocelular:se doença hepática crónica com risco elevado de
carcinoma hepatocelular realizar ecografia hepática, eventualmente com alfa
fetoproteina bianualmente.
– Cancro do colo-rectal (CCR):
• Se risco standard,iniciar rastreio aos 50 anos, por exemplo com colonoscopia
cada 10 anos;
• Se história pessoal de pólipo adenomatoso, fazer vigilância de acordo com
achados com colonoscopia;
• Se história familiar:
– PAF (polipose adenomatosa familiar) ou HNPCC (cancro colorrectal não
polipósico hereditário): rastreio intensivo, aconselhamento e teste genético;
– CCR ou adenoma em um familiar directo com menos de 60 anos ou dois familiares
directos: iniciar vigilância aos 40 anos ou com 10 anos menos em relação à
idade em que ocorreu o diagnóstico no familiar com aquela patologia;
– Se síndroma de susceptibilidade identificada, vigiar de acordo com o
recomendado.
Ter especial atenção ao risco particular de segundas neoplasias inerente aos
regimes de quimioterapia e campos de irradiação realizados no tratamento da
primeira neoplasia e monitorizar apertadamente sinais de alarme. Em alguns
casos, antecipar os rastreios referidos, como em doentes com linfoma de Hodgkin
submetidos a radioterapia torácica, em que se deverá iniciar rastreio com
mamografias, cinco a oito anos após aquela terapêutica5-16
-23
.
Dado que a incidência de doentes com neoplasias múltiplas está a aumentar, o
que tem relação directa com o número cada vez maior de sobreviventes de cancro,
e uma vez que as segundas neoplasia poderão ser consequência de factores de
risco ambientais, sequelas de tratamentos anteriores, características do
hospedeiro e interacções entre ambos, é essencial que se identifiquem os
doentes com diagnóstico de neoplasia em risco acrescido de uma segunda doença
oncológica, havendo inclusivamente, neste âmbito, recomendações
internacionais3-9, 6.
Neste sentido, seria importante a caracterização do ponto de vista molecular e
genético deste grupo de doentes, nomeadamente a tentativa de identificação de
mutações que eventualmente os possam predispor para a existência de neoplasias
múltiplas.