Tumor maligno da bainha dos nervos periféricos do pulmão: A propósito de um
caso clínico
Introdução
Os sarcomas correspondem a um grupo heterogéneo de neoplasias, dos quais os
tumores malignos da bainha dos nervos periféricos (MPNST) fazem parte. Outrora
também conhecidos como schwannomas malignos, neurofibrossarcomas, sarcomas
neurogéneos ou neurilemomas malignos, a actual designação de MPNST parece ser a
que maior consenso reúne na comunidade médica
1
. Tal deve-se ao facto de a célula de origem destes tumores não estar ainda
completamente esclarecida, admitindo-se contudo que a maioria advém das células
de Schwann1,2. Estes tumores tendem a ocorrer sobretudo nas extremidades e só
muito raramente ocorrem na cavidade torácica
3
.
Dada a particularidade destas neoplasias, sobretudo a nível torácico, com
consequente limitação na obtenção de estudos com dados significativos
referentes à sua abordagem, apresentamos o presente caso clínico para motivar a
discussão sobre estes tumores e a actuação clínica mais adequada ao seu
tratamento.
Caso clínico
JRM, sexo masculino, raça negra, 31 anos, camionista, natural do Brasil e
residente em Portugal há oito anos. Encontrava-se assintomático até quatro
meses antes do internamento no serviço, altura em que iniciou queixas de perda
ponderal (cerca de 10 kg) e cansaço. Cerca de duas semanas antes, referiu o
aparecimento de tosse seca de agravamento progressivo, odinofagia, disfonia e
toracalgia posterior esquerda, contínua, sem relação com os movimentos
respiratórios e que aliviava em decúbito lateral esquerdo. Negava outros
sintomas. Automedicou-se com diclofenac, paracetamol, ambroxol e amoxicilina
sem melhoria, motivo pelo que recorreu ao serviço de urgência do nosso
hospital.
Como antecedentes pessoais há apenas a referir que se tratava de um não
fumador, sem hábitos toxicofílicos e não utilizava qualquer terapêutica
farmacológica regular.
O exame objectivo revelava um doente com bom estado geral, vigil, acianótico,
eupneico, hemodinamicamente estável, apirético e com uma saturação de oxigénio
em ar ambiente de 95%. Não apresentava adenomegalias palpáveis e as mucosas
eram coradas e hidratadas. A auscultação cardíaca não apresentava alterações.
Da avaliação do tórax ressaltava a abolição das vibrações vocais e macicez na
percussão do hemitórax esquerdo e na auscultação pulmonar o murmúrio vesicular
estava abolido também à esquerda e não eram audíveis ruídos adventícios. A
avaliação do abdómen e membros era normal. Analiticamente mostrava uma discreta
anemia (Hb=11,8 g/dL) normocítica mas hipocrómica (HGM=26,8 pg) e aumento dos
parâmetros inflamatórios (VS=67 mm; PCR=5,7 mg/dL), ainda que sem leucocitose.
A gasometria arterial em ar ambiente era normal e a radiografia do tórax (Fig.
1) demonstrava uma volumosa massa com preenchimento de praticamente todo o
campo pulmonar esquerdo, condicionando desvio do mediastino para a direita e
uma obliteração do seio costo frénico esquerdo sugestiva de derrame pleural.
Ainda no serviço de urgência realizou ecografia torácica que demonstrou
moderado derrame pleural à esquerda, com aspectos sugestivos de loculação. O
doente ficou internado para estudo.
Fig. 1 – Telerradiografi a de tórax PA (A) e perfi l (B) à data do internamento
No internamento foi submetido a toracocentese com saída de cerca 500 ml de
líquido hemático velho. As características do líquido pleural eram compatíveis
com exsudado com predomínio de neutrófilos e tinha um pH de 7,032, motivo pelo
que ficou com drenagem pleural contínua. Os exames bacteriológicos, micológicos
e micobacteriológicos do líquido pleural foram negativos e o exame
anatomopatológico mostrou-se negativo para células neoplásicas.
Realizou tomografia computorizada (TC) do tórax (Fig. 2) que revelou uma
volumosa massa ocupando a metade superior do hemitórax esquerdo com captação
heterogénea de contraste, não se visualizando o brônquio lobar superior nem o
ramo esquerdo da artéria pulmonar; colapso parcial do LIE; derrame pleural à
esquerda; desvio do mediastino para a direita; adenopatias em localização pré-
traqueal e paracardíaca anterior. Posteriormente realizou uma
broncofibroscopia, onde se evidenciava na árvore brônquica esquerda um esporão
do lobo superior alargado, segmento apicoposterior diminuído de calibre e
segmento anterior com uma massa gelatinosa. Na biópsia brônquica documentou-se
neoplasia fusocelular de padrão neural.
Fig. 2 – TC de tórax à data do internamento
Dos vários marcadores tumorais pedidos (á -fetoproteína, â2 -microglobulina,
NSE, CA 15.3, CA 19.9, CEA, CYFRA -21 e SCC) apenas o NSE se encontrava
aumentado (25,7 ug/L; VR<16,3 ug/L).
No decurso da marcha diagnóstica assistiu-se a um agravamento rápido do estado
clínico, caracterizado por toracalgia refractária à terapêutica médica e
aparecimento de dispneia em repouso, de agravamento progressivo.
Radiologicamente apresentava um aumento do volume da massa, com maior desvio
con-tralateral do mediastino (Fig. 3). Não havia evidência de doença
extratorácica.
Fig. 3 – Telerradiografia de tórax PA duas semanas após o internamento
Por apresentar este agravamento clínico e imagiológico e se tratar de um doente
jovem e sem diagnóstico definitivo, foi, em reunião multidisciplinar, proposto
a cirurgia. Foi submetido a uma toracotomia esquerda de urgência, verificando -
se que o lobo superior e segmentos do lobo inferior estavam destruídos pelo
tumor (Fig. 4).
Fig. 4 – Destruição pulmonar pelo tumor (A). Massa tumoral ressecada (B)
Verificava-se hemorragia activa ao nível dos ramos apicais da artéria pulmonar,
que se laquearam. Decidiu-se no procedimento por uma pneumectomia esquerda.
Laqueação da artéria pulmonar esquerda e encerramento do brônquio principal. As
veias pulmonares esquerdas estavam invadidas pelo tumor, tendo-se procedido à
abertura do pericárdio, isolamento das veias pulmonares e clampagem da aurícula
esquerda (AE). Ressecção em bloco das veias e parte da AE, que foi encerrada
com “prolene 5:0” (Fig. 5).
Fig. 5 – Encerramento das veias pulmonares superior e inferior a nível da AE
Finalmente, foram ressecados parcialmente o pericárdio e a pleura parietal,
permitindo que do ponto de vista cirúrgico a ressecção tumoral fosse
considerada completa (Fig. 6).
Fig. 6 – Aspecto final pós-pneumectomia radical com ressecção parcial do
pericárdio e pleura parietal
O estudo morfológico da peça ressecada mostrou uma proliferação fusocelular,
com padrão fasciculado (Fig. 7) e diferenciação neural, isto é, alternância
abrupta entre áreas celulares e áreas mixóides (Fig. 8). Presença de necrose e
16 mitoses/10 CGA.
Fig. 7 – Neoplasia fusocelular, padrão fasciculado. H&E x 400
Fig. 8 – Diferenciação neural. H&E × 400
Observou-se imunorreactividade intensa e difusa para vimentina (Fig. 9) e
positividade focal para S100 e EMA (Fig. 10). Negatividade para CD99, MNF116,
CK7, calretinina, LCA, AML, CD34, miogenina e desmina.
Fig. 9– Positividade intensa e difusa para vimentina
Fig. 10 – Imagem onde se evidencia o marcador neural S100 focalmente positivo
Os estudos de biologia molecular, realizados no Instituto Português de
Oncologia de Francisco Gentil, em Lisboa, não revelaram alterações
diagnósticas, nomeadamente a análise por FISH não revelou rearranjo dos genes
EWS e SYT e a análise por CGH revelou a presença das seguintes alterações
cromossómicas: ganho total do cromossoma 19 e ganhos parciais das regiões
13q21.2, 17q11.2-q12, 22q11.2, 22q13.1-q13.3. Considerou-se que se tratava de
um sarcoma com padrão morfológico e fenotípico compatível com tumor maligno da
bainha dos nervos periféricos. Do ponto de vista microscópico, havia igualmente
infiltração da pleura parietal por tecido de neoplasia do mesmo tipo.
Perante o diagnóstico de sarcoma de subtipo MPNST em estádio anatómico III B e
fisiológico com performance status1 (ECOG), com tumor totalmente ressecado, o
doente foi submetido a 4 ciclos de quimioterapia (QT) adjuvante com
doxorrubicina e ifosfamida. O tratamento foi bem tolerado, tendo tido como
efeitos secundários alopecia de grau 1 e episódios autolimitados de náuseas
grau 1, que cederam à terapêutica antiemética. Como intercorrência há a referir
que ao 8.º dia após o último ciclo o doente esteve internado três dias por
neutropenia grau 4 associada a diarreia líquida. Foi medicado com G-CSF e
terapêutica sintomática, com resolução do quadro clínico.
Posteriormente, e coincidindo com o reaparecimento de toracalgia à esquerda,
realiza RM torácica, que demonstra loca pós-pneumectomia expandida por líquido
não puro, e à periferia apical e lateral da cavidade observavam-se nódulos
sólidos inferiores a 1 cm e que captavam o contraste injectado (Fig. 11).
Fig. 11 – RM torácica onde se evidenciam nódulos à periferia
Iniciou tratamentos de radioterapia torácica externa com dose total de 66 Gy em
33 fracções, com melhoria da sintomatologia. A RM torácica de controlo
documentou uma importante melhoria, quer do volume de líquido, quer em relação
aos nódulos pleurais (Fig. 12).
Fig. 12 – RM torácica realizada antes (A) e após (B) tratamentos de
radioterapia
Actualmente o doente encontra-se em seguimento em consulta há 18 meses, estando
assintomático.
Discussão
Segundo dados epidemiológicos dos EUA, a incidência dos tumores malignos da
bainha dos nervos periféricos na população em geral é de 0,001%, o que
corresponde entre 5 a 10% do total de sarcomas de tecidos moles diagnosticados
anualmente2,
4
. Na maioria das séries verifica-se uma incidência igual nos dois sexos;
contudo, em alguns estudos parece haver um ligeiro predomínio nas mulheres1,4.
A idade de diagnóstico varia entre os 20 e os 50 anos, sendo que, nos doentes
com neurofibromatose tipo 1, também conhecida como doença de von
Recklinghausen, estes tumores geralmente são diagnosticados mais cedo1,4,
5
.
São conhecidos dois factores de risco para este tipo de tumor. O primeiro é a
presença de neurofibromatose de tipo 1 (NF1), uma vez que têm um risco 4600
vezes maior de contrair estes tumores quando comparados com a população em
geral4. Além disso, 50 a 60% dos MPNST ocorre em doentes com NF1. O segundo
factor de risco conhecido são os tratamentos prévios de RT, sendo, nestes
doentes, em regra diagnosticados após 15 anos do tratamento inicial2. A
frequência da localização não varia com a existência ou não de NF14. Tal como
nos restantes tumores neurogénicos, estes podem ocorrer em todo o tórax; no
entanto, são encontrados habitualmente no mediastino posterior, no ângulo
costovertebral
6
.
Os MPNST tendem a surgir como uma massa cujo aumento de dimensões é
progressivo, a que se associam frequentemente sintomas, como dor e défices
neurológicos sensoriais ou motores, secundários à compressão de um nervo1,4,
7
. Estes sintomas tendem a persistir durante meses ou anos5.
Em termos imagiológicos, a ressonância magnética é o exame de eleição, uma vez
que tem a capacidade de distinguir os tumores de tecidos moles neurogénicos dos
não neurogénicos1. No entanto, apesar de existirem algumas características que
sugiram malignidade, este método tem limitações na sua distinção2,
8
. A tomografia computorizada mostra especial importância quando estes tumores
têm localização retroperitoneal e na procura de metástases2. A tomografia de
emissão de positrões (PET scan) poderá ter um papel na detecção da
transformação maligna dos neurofibromas1.
A terapêutica destes tumores continua a ser sobretudo cirúrgica5. A ressecção
cirúrgica radical com margens livres de doença é o procedimento de escolha1.
Esta vai depender sobretudo da sua localização, na medida em que este
procedimento é possível em 95% dos tumores nas extremidades, mas apenas em 20%
dos que apresentam localização paraespinhal2. A RT é usada cada vez mais, dada
a grande recorrência local destes tumores; no entanto, apesar de aumentar o
tempo livre de doença, ainda é controverso se tem impacto significativo nas
taxas de sobrevida a longo prazo2. Tal como a maioria dos sarcomas de tecidos
moles, também os MPNST são tipicamente resistentes à QT. Apesar dos escassos
dados publicados, a QT encontra-se geralmente indicada em crianças e jovens
adultos com tumores com mais de 5 cm, irressecáveis ou com metástases na altura
do diagnóstico1. Os tratamentos de primeira linha baseiam-se sobretudo em
esquemas de doxorrubicina e ifosfamida, enquanto os de segunda linha, muito
mais indefinidos, estão descritos com gemcitabina/docetaxel ou carboplatina/
etoposido
9
.
Os MPNST, comparativamente aos restantes sarcomas de tecidos moles, têm uma
taxa de recorrência local maior, ocorrendo em cerca de 20-40% após a ressecção
cirúrgica
10
,
11
,
12
. Destes, 75% ocorrem nos primeiros dois anos de seguimento da doença12. Os
principais factores de risco de recorrência local são a existência de margens
de ressecção positivas e a sua localização (cabeça e pescoço)11. A metastização
é frequente e é feita principalmente por via hematogénea13. Esta ocorre
sobretudo para os pulmões e, por ordem decrescente de frequência, para os
tecidos moles, osso, fígado, cavidade abdominal, glândulas suprarrenais,
diafragma, mediastino, cérebro, ovários, rins e retroperitoneu4.
A sobrevida global aos 5 anos é pequena, variando desde os 12,8% aos 16%,
dependendo do estudo em causa4. Os factores de mau prognóstico são: localização
do tumor (cabeça, pescoço e tronco), a sua dimensão, diferenciação histológica,
margens cirúrgicas positivas e a presença de NF11.
O caso clínico que descrevemos corresponde a uma situação muito rara de um
grande tumor maligno da bainha dos nervos periféricos de localização torácica
sem antecedentes de NF1 e sem ter realizado tratamentos prévios de RT. Além
disso, a sua localização torácica torna-o uma entidade ainda mais rara. A sua
apresentação clínica e idade de aparecimento é a descrita para este tipo de
tumor, sendo o quadro de dor muito provavelmente secundário a compressão
nervosa. O doente foi ubmetido a ressecção tumoral total com intuito life-
saving, na medida em que o rápido rescimento da massa comprometia as estruturas
vizinhas, condicionando dor e dispneia, e, desta forma, foi possível
caracterizá-lo histologicamente. Uma vez que se trata de um tumor esporádico,
sem antecedentes de NF1, a sua caracterização histológica foi difícil e
demorada. Dada a sua grande dimensão, foi submetido a QT com o esquema habitual
para os sarcomas e, posteriormente, RT. Finalmente, o prognóstico deste doente
é mau, dado o subtipo histológico do sarcoma, a sua localização e a sua grande
dimensão – sem dúvida o mais importante factor de prognóstico.