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EuPTCVHe0873-21592010000300013

EuPTCVHe0873-21592010000300013

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioLife Sciences
Great areaHealth Sciences
ISSN0873-2159
ano2010
Issue0003
Article number00013

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Enfarte da gordura epipericárdica - A propósito de um caso clínico

Introdução Jackson et aldescreveram pela primeira vez, em 1957, uma entidade conhecida como enfarte da gordura pericárdica 1 . É uma condição benigna rara, de causa desconhecida, com 22 casos descritos na literatura 2 , 3 , 4 ,5, 6 ,7, 8 , 9 , 10 . Em todos eles a sintomatologia é comum, caracterizada por uma dor pleurítica aguda associada a densidades paracardíacas bem definidas na radiografia do tórax semelhante a uma massa justacardíaca. Noutros exames imagiológicos, como a TC torácica, que permite a caracterização da lesão e a sua localização precisa, é evidenciado o seu conteúdo adiposo de baixa densidade e o envolvimento do pericárdio1,4,5.

Os autores apresentam um caso desta entidade rara e, a propósito, fazem uma revisão do tema.

Descrição do caso clínico Doente de 48 anos, enfermeira, fumadora até cerca de seis meses, internada a 20/07/08 no Serviço de Pneumologia por queixas de cansaço e de toracalgia, que agravava com a inspiração profunda, a nível do hemitórax esquerdo. Trata-se de uma doente com antecedentes conhecidos de patologia gastroesofágica com hérnia trans-iatal, gastrite crónica atrófica, bulbite erosiva e hipomotilidade gástrica, de atopia com rinite alérgica aos ácaros e gramíneas e com o diagnóstico de síndrome de fadiga crónica. Encontrava-se medicada com ciclobenzaprina e trimetazidina.

Meses antes do internamento refere agravamento das queixas de cansaço habitual, que não valorizou, e, cerca de uma semana antes, inicia quadro de dor a nível do ombro esquerdo e de toracalgia no terço inferior do hemitórax esquerdo, de características pleuríticas e que melhoravam com o recurso a anti- inflamatórios. Refere ainda aparecimento de tosse seca e de sudorese. Para investigação do quadro realiza, em ambulatório, radiografia do tórax (Fig. 1), que revelou presença de um derrame pleural, localizado à esquerda, confirmado por TC de tórax e que mostrou moderado derrame pleural esquerdo, com componente atelectásico passivo e presença de condensação parenquimatosa com broncograma aéreo, patente a nível lobar inferior esquerdo, presença de vidro despolido adjacente, espessamento focal pericárdico e densificação da gordura epicárdica adjacente. Na avaliação analítica salientava-se uma proteína C reactiva (PCR) elevada de 4,2 mg/dL, pelo que lhe foi iniciado antibiótico (amoxicilina/ / ácido clavulânico). A doente foi internada no nosso serviço um dia depois, por estas queixas, para investigação.

Fig. 1 Telerradiografia do tórax postero anterior (A) e perfi l (B), que revelou derrame pleural, visível a nível do ângulo costo frénico esquerdo

No internamento não se salientaram alterações ao exame objectivo e o derrame pleural foi considerado pequeno, sem indicação para toracentese. Dos exames complementares realizados, o electrocardiograma foi normal, com ritmo sinusal e analiticamente salientava-se elevação dos d-dímeros (1,34 mg/dL), resolução dos parâmetros inflamatórios alterados nos primeiros exames realizados (PCR) e marcadores das conectivites negativos; a gasometria arterial não apresentavam alterações. Face à história clínica e à elevação dos d-dímeros foi considerada a hipótese de um tromboembolismo pulmonar, realizando uma nova TC tórax com contraste endovenoso (Fig. 2). Este exame excluiu essa hipótese e revelou presença de derrame pleural à esquerda e de espessamento do pericárdio e densificação da gordura epipericárdica, compatível com o diagnóstico de enfarte da gordura cardiofrénica epipericárdica. Efectuou ecocardiograma transtorácico com estudo doppler, onde foi evidenciada uma pequena e fina lâmina de derrame pericárdico circunferencial, sem repercussão hemodinâmica.

Fig. 2 Corte de TC de tórax em janela do parênquima pulmonar (A) e em janela mediastínica (B), que revelou espessamento do pericárdio e densificação da gordura epipericárdica (seta)

Durante o internamento a doente teve uma evolução favorável e rápida. Manteve- se hemodinamicamente estável, apirética, sem aparecimento de novas queixas e com resolução do quadro de tosse e de toracalgia com o uso de analgésicos. Teve alta medicada apenas com tratamento sintomático, para alívio da sintomatologia álgica

Discussão O espaço cardiofrénico é ocupado por gordura, mas pode ser sede de lesões de outra natureza. A TC é o exame de excelência para caracterização destas massas, contudo a ressonância magnética (RM) do tórax também pode ser útil 11 . A gordura epipericárdica acumula-se em redor, mas mais na porção anterior do coração, e aumenta com a idade. Tem maior volume em mulheres, doentes idosos, obesos, diabéticos e naqueles que fazem corticoterapia 12 , 13 ,14. Estudos recentes sugerem que possivelmente o aumento da gordura epipericárdica aumenta o risco cardiovascular15.

O diagnóstico diferencial de uma massa do espaço cardiofrénico inclui neoplasia pericárdica primária ou secundária, neoplasia do pulmão, gordura epipericárdica, hérnia de Morgagni, lipoma, lesão granulomatosa, quisto pericárdico e quisto broncogénico7, 16 . A presença de uma massa com conteúdo líquido sugere quisto e gordura com densidades lineares (representando os vasos do omentum) favorecem o diagnóstico de hérnia de Morgagni16.

O enfarte da gordura pode ocorrer em diversas localizações no corpo humano. foi descrita na mama, gordura peripancreática, na apendagite epiplóica, na gordura subcutânea e na gordura epipericárdica3.

A etiologia da necrose da gordura epipericárdica e do espaço cardiofrénico é desconhecida, sendo sugeridos o trauma, a isquemia e a obesidade como factores predisponentes, mas casos mais recentes têm descrito situações semelhantes em doentes magros7,10,17. Uma torção aguda de um pedículo vascular da gordura epipericárdica com isquemia e necrose foi descrita em dois casos5, 18 . Uma hipótese colocada recentemente é a de aumento da pressão intratorácica por uma manobra de Valsalva com elevação da pressão capilar e venosa, que poderá levar à necrose hemorrágica4. Uma terceira hipótese é a de alterações estruturais preexistentes do tecido adiposo de suporte, como lipoma, lipomatose ou hamartoma, que poderia ser vulnerável aos batimentos cardíacos e ao movimento do diafragma4.

Em todos os casos descritos os doentes eram adultos, com idades compreendidas entre os 23 e os 67 anos1-19. A apresentação clínica é a de uma dor aguda pleurítica grave, que pode mimetizar a dor de enfarte do miocárdio ou do enfarte pulmonar decorrente de tromboembolismo pulmonar. Em geral é autolimitada, durando dias a semanas, mas pode recorrer ou pode até durar vários meses1,5. A maioria dos doentes nos casos descritos era moderadamente obesa. O ECG era normal, com excepção de três doentes, um que mostrava pericardite em resolução, outro com bloqueio completo de ramo direito5 e outro com taquicardia auricular paroxística2. Radiologicamente existe evidência de uma opacificação justacardíaca na radiografia do tórax posteroanterior,  predominantemente do lado esquerdo. Pode ocorrer derrame pleural associado. A TC do tórax permite a localização precisa, assim como a caracterização destas lesões. As principais características na TC são a de uma lesão adiposa de baixa densidade, encapsulada e localizada anteriormente ao pericárdio. Estas lesões possuem alterações inflamatórias que se apresentam como linhas densas, espessamento do pericárdio adjacente, que indicam que a necrose ocorre no epipericárdio, a nível da gordura mediastínica adjacente ao folheto parietal do pericárdio. Foi também descrito um caso de uma lesão com calcificações à periferia da lesão2, à semelhança de outros, onde está descrita necrose crónica calcificada dos apêndices epiplóicos 19 , 20 . A RM também pode mostrar a massa com sinal de gordura, como apontado nalguns relatos1,4,5. Apesar da clínica e dos exames imagiológicos fazerem suspeitar de uma lesão desta natureza, muitos casos necessitam de cirurgia para o diagnóstico definitivo1,5,7,10,17,18. As alterações morfológicas e patológicas são dependentes do tempo da lesão e do estádio da inflamação. A toracotomia mostra uma massa amarela fixa ao pericárdio rodeada por inflamação.

Histologicamente e nas fases iniciais, as células adipócitas necróticas são rodeadas por infiltração de macrófagos lipídicos e neutrófilos; após dias, é observada uma proliferação de fibroblastos, com aumento da vascularização e infiltração por linfócitos e histiócitos na parede necrosada; com o tempo, as células adiposas necrosadas são substituídas por macrófagos espumosos e são encontradas células gigantes de corpos estranhos, sais de cálcio e pigmentos do sangue; por fim, a lesão resolve com tecido de cicatrização5.

No caso que apresentamos, a doente era adulta, sem factores de risco conhecidos, não era obesa e não apresentava trauma recente. A sintomatologia clínica e radiológica foi típica, sendo o diagnóstico presuntivo estabelecido pela TC de tórax. Não havia evidência de alterações estruturais na gordura epipericárdica ou pedículo vascular descrito. Apesar de não haver diagnóstico histológico confirmado, acreditamos que a evolução clínica e os achados radiológicos permitem estabelecer o diagnóstico com elevado grau de segurança.

O follow-upradiológico mostra, geralmente, uma resolução espontânea destas alterações11. Devido à sua evolução benigna e autolimitada, o tratamento aconselhado é sintomático e conservativo3,11, como nas situações de apendagite epiplóica abdominal3. É importante ter em mente este diagnóstico diferencial raro de uma dor pleurítica e que se apresenta como uma massa pulmonar paracardíaca com derrame pleural, pois as suas características radiológicas e clínicas sugerem um diagnóstico presuntivo, podendo evitar-se técnicas diagnósticas mais agressivas.


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