De um novo paradigma na gestão dos enfermeiros
– a espiritualidade no local de trabalho
Introdução
As questões relacionadas com a pessoa humana têm
sido fulcrais na evolução científica, nos seus mais
variados ramos. Da biologia à medicina, da sociologia
à psicologia, da enfermagem à gestão. O conceito de
pessoa, as suas capacidades, as suas características
e o reconhecimento da sua dignidade tem vindo a
alterar-se e, por conseguinte, também a provocar
mudanças em vários campos do saber científico. No
caso da saúde, a pessoa que, durante e logo após
a Segunda Guerra Mundial, era entendida quase
que como um somatório frio de órgãos e reacções
fisiológicas a situações extremas (como infelizmente,
as experiências eticamente escandalosas levadas a
cabo neste período permitiram demonstrar) tem
vindo a afirmar-se como um ser digno de respeito
pela sua dignidade, um ser que procura a felicidade na
sua vivência mundana, ética, e estética, e que procura
um sentido para a sua vida. Na gestão, as pessoas que
eram consideradas, inicialmente, “mão-de-obra” numa
visão desfragmentada, reducionista e economicista
(porém, admitimos, adaptada ao paradigma desse
tempo), vêm reclamando o reconhecimento pelas
suas capacidades emocionais, cognitivas e humanas,
quer individualmente, quer nas equipas de trabalho,
como seres que são livres, pensam, decidem e têm
necessidades que vão além das relações interpessoais.
A dimensão espiritual no local de trabalho emerge,
assim, nas organizações, porém, pouco explorada nas
organizações de saúde, particularmente nas equipas
de enfermagem. Neste estudo, efectuado no âmbito
de estudos pós-graduados em gestão de recursos
humanos, pretende-se explorar a percepção dos
enfermeiros acerca da espiritualidade no seu local de
trabalho.
Quadro teórico
A espiritualidade no local de trabalho surgiu como tema
de estudo na gestão no início dos anos 80 (Howard
e Welbourn, 2004, p.181). Segundo Rego, Cunha e
Souto (2007a), este é um tema emergente, porém,
muito poucos estudos são efectuados nesta área
específica. Os autores afirmam que «a espiritualidade
dos líderes fecunda a espiritualidade das organizações
(…) ambientes organizacionais espiritualmente
ricos (i.e., que permitem aos colaboradores realizar
trabalho com significado para a vida) podem
conduzir a mais elevados desempenhos individuais
e organizacionais (…) esses ambientes nutrem ou
fomentam a auto-eficácia, o optimismo, a esperança
e a resiliência dos empregados. Em consequência,
estes definem objectivos individuais mais ambiciosos,
envidam maiores esforços motivacionais, resistem
melhor ao stress, são mais perseverantes perante
os problemas e obstáculos e, são mais capazes de
redireccionar os objectivos (…)» (2007a, p.9). Todas
estas competências podem ser classificadas como
transversais, ou mesmo meta-competências, pois são
condição de uma actuação eficaz em matérias mais
específicas, enquadram-se numa dimensão de saberser que, assumindo um ponto de vista integrado,
holístico, da pessoa humana, são determinantes para
os saberes-fazer actuais, tendo em conta o contexto
propiciador de qualidades como a flexibilidade, a
polivalência e o controle da incerteza.
Não obstante este ser um tema emergente no debate
científico na área da gestão, os trabalhos publicados,
em particular aqueles aos quais tivemos acesso,
realizaram-se em organizações que não pertenciam
ao universo da saúde (quadro 1). No entanto,
reconhecemos a importância de um conhecimento
mais profundo deste contexto e entendemos que as
conclusões desses estudos podem contribuir para
guiar os gestores desta área específica na tarefa de
desenhar estruturas e fluxos de um rosto mais humano
que potenciam uma prestação de serviços com maior
qualidade, num melhor ambiente organizacional.
As conclusões dos estudos efectuados, independentemente da metodologia e das amostras,
evidenciam a necessidade e a importância da
espiritualidade no local de trabalho a nível pessoal,
interpessoal e da organização.
A espiritualidade da pessoa humana
As pessoas são “recursos humanos” se entendidas
no seu pleno valor e não como mais um segmento
utilitário de recursos necessários à dinâmica e
funcionamento de uma organização. A organização
“é” fundamentalmente “as pessoas”, porque elas
conferem-lhe desenvolvimento, dinamismo, criação,
transformação e abertura aos novos tempos e aos
novos desafios. Ser pessoa, nas organizações de hoje,
deverá prender-se com a oportunidade de demonstrar
o seu valor, ter oportunidade de realizar-se como ser
humano, ter oportunidade de encontrar, no trabalho,
um sentido transformador para a sua existência e
colaborar na espiritualidade da organização, enquanto
grupo de pessoas com objectivos laborais comuns,
mas, acima disso, iguais em dignidade e humanismo.
Pessoa é “ser em relação”. O ser humano realiza-se
na relação com os outros. O espaço de realização
da pessoa é a própria pessoa nos seus encontros
e relações que não permitem que alguma fique
igual ao que era anteriormente. Como refere
Arduini «O Homem é a realidade mais profunda
e mais complexa que conhecemos no âmbito do
universo natural. Por isso, oferece visualizações
diversas sobre a mesma totalidade» (1989, p.9).
E daí a sua multidimensionalidade. A pessoa não
pode ser vista apenas sob um ângulo, como se uma
perspectiva fosse expressão total do seu conteúdo.
As dimensões físicas, sociais e psicológicas da pessoa
são facilmente reconhecidas, porém, a dimensão
espiritual parece continuar sob um véu de mistério.
O retorno à vivência espiritual é evidente: de uma
forma macroscópica, podemos verificar o aumento
da procura de recursos espirituais e livros de autoajuda nas livrarias (poderíamos dizer que não passa
despercebida a quantidade de livros publicados
na área da gestão, cujo conteúdo é puramente
espiritual, sem que esse termo – “espiritual” sequer
conste no título); a nível microscópico, temos a
procura individual de cada pessoa por um bemestar
abrangente e profundo através de novos estilos
de vida, da adopção de novas formas de viver, de
novos caminhos para encontrar um sentido na vida,
incluindo, obviamente, as suas vivências diárias
interpessoais, em particular, nas organizações. O local
de trabalho é um ponto de encontro entre pessoas
diferentes e, simultaneamente, iguais em essência.
Falar de espiritualidade é falar em “espírito” que, na
sua etimologia, significa “ar” ou “sopro”. No livro do
Génesis, o Homem só se tornou completo após o
“sopro” que o “animou”, porque espírito é “anima”.
A espiritualidade da pessoa humana não encontra
uma definição única (McSherry, 2000; Narayanasamy,
2001; Caldeira, 2002). É individual, universal, dinâmica,
multidimensional e integradora. A espiritualidade é uma
dimensão que confere significado à vivência humana
e dá consistência às nossas experiências. O espírito
humano é interioridade na reflexão profunda e natural
acerca das questões mais íntimas e misteriosas da vida.
É exterioridade sempre que partilha esta condição
de existir, como ser com os outros e com o mundo,
numa relação de responsabilidade. Entendemos que
esta afirmação pode ser percebida igualmente num
contexto organizacional, nomeadamente, nas políticas
de responsabilidade social. O enfermeiro também
é pessoa e poderá começar por compreender a
importância da espiritualidade reflectindo e cultivando
a introspecção acerca da sua própria espiritualidade e a
forma como o local de trabalho é um meio, um espaço,
ou um recurso para tal. A interpretação dos trabalhos
de dois autores (Narayanasamy, 2001 e McSherry,
2000), ambos enfermeiros, que têm investigado as
necessidades espirituais e a espiritualidade na área
da enfermagem, permite sistematizar as seguintes
necessidades espirituais: reconhecimento de um
sentido na vida; amor e relações harmoniosas; perdão;
esperança; confiança; manutenção de crenças e
valores pessoais; manutenção de rituais espirituais e
de criatividade.
A espiritualidade no local de trabalho
Uma pesquisa simples na internet, em qualquer
motor de busca, resulta num leque de sugestões de
âmbitos variados, todos relacionados com “workplace
spirituality”, ou seja, sites de organizações, fóruns de
discussão, resumos e apresentações de livros com
datas de publicação recentes, artigos de opinião ou
artigos científicos. Definir a espiritualidade no local
de trabalho também não é consensual, pois quem a
define é a pessoa e cada uma tem uma visão diferente
da organização e do papel que a organização tem
na sua própria vida. Pela sua pertinência, existem
algumas definições que passamos a apresentar e
comentar. Mckee (2006) refere que Giacalone, no seu
mais recente livro sobre esta temática - Handbook
of workplace spirituality and organizational
performance - apresenta 14 definições deste
conceito. McKee opta por seleccionar a definição
proposta pelo próprio Giacalone que encara
a espiritualidade no local de trabalho como «a
framework of organizational values evidenced in
the culture that promote employees’ experience of
transcendence through the work process, facilitating
their sense of being connected to others in a way that
provides feelings of completeness and joy» (2006,
p.19). Reconhecemos que as dimensões inerentes
à espiritualidade estão presentes nesta definição,
embora sistematizadas de diferentes formas, estão
sempre presentes dimensões como a natureza
individual do fenómeno, a sua universalidade,
complexidade, dinâmica e potencial integrador da
espiritualidade.
Kolodinsky, Giacalone e Jurkiewicz (2008) abordam
três formas de entender a espiritualidade na
organização: a um nível mais basilar, a espiritualidade
na organização pode ser entendida como a simples
aplicação dos valores espirituais pessoais no local e
trabalho; um segundo nível de compreensão implica
a compreensão dos valores da organização; já num
terceiro nível, que os autores denominam interactivo, a
espiritualidade da organização baseia-se na interacção
dos valores espirituais individuais com os valores
espirituais reconhecidos na organização. Este nível é
aquele que mais corroboramos, pois se a pessoa se
concretiza na relação com outras e a organização é um
espaço de relação, então, não podemos considerar
outra forma de entender a espiritualidade no local de
trabalho senão de uma forma interactiva.
Rego, Cunha e Souto definem a espiritualidade
nas organizações como «sendo constituída pelas
oportunidades para levar a cabo trabalho com
significado, no contexto de uma comunidade,
experimentando um sentido de alegria e respeito
pela vida interior» (2007a, p.15). Destes conceitos,
os autores que criaram a escala que utilizaremos
neste estudo, identificaram 5 dimensões relacionadas
com a espiritualidade nas organizações: sentido de
comunidade na equipa; alinhamento entre os valores
organizacionais e individuais; sentido e préstimo/
utilidade para a comunidade; sentido de alegria
no trabalho; e oportunidades para a vida interior.
Reconhecemos que estes autores têm uma visão mais
alargada da espiritualidade. Enfatizamos a inclusão do
sentido de alegria no trabalho e oportunidades para
a vida interior por nos parecerem específicas desta
temática e, provavelmente, constituirão os aspectos
mais subjectivos, mais difíceis de medir e, por isso,
com maior probabilidade de ser questionada a sua
cientificidade.
Existem dois conceitos que se relacionam com
a espiritualidade na organização, mas não têm o
mesmo significado, ou seja, não esgotam o seu
sentido. O primeiro é o conceito de “valor espiritual”.
A espiritualidade na organização relaciona-se com
os valores espirituais, mas não é somente isso. Os
valores espirituais que podem ser mencionados são: a
honestidade, a confiança, a temperança, a prudência,
a honradez e a compaixão. Os valores espirituais
apelam a uma postura ética, pois baseiam-se no
respeito intransigente pela pessoa humana e pela
sua dignidade. O segundo conceito é o conceito de
“liderança espiritual”, central na investigação de Fry
(2005) e fortemente relacionado com a transformação
organizacional. A liderança espiritual, segundo o autor,
promove a motivação e inspira os colaboradores
numa perspectiva transcendente e numa cultura
baseada em valores altruístas no sentido de produzir
um clima de trabalho motivacional, de compromisso
e produtivo.
As organizações como sistemas abertos e o
conceito de holismo
As organizações, formadas e transformadas pelas - e
devido às - pessoas são consideradas organismos vivos
e, por isso, em constante interacção e transformação.
Não se pode dizer que uma organização é a soma
dos seus departamentos, dos seus colaboradores, ou
das suas divisões. Uma organização é uma entidade
que só pode ser assim definida estruturalmente, mas
tal nunca abarca o seu sentido intrínseco, pois este
resulta sempre em algo maior do que a soma das
partes. Por exemplo, um hospital como “organização”
não é a soma dos serviços médicos, cirúrgicos, de
apoio, administrativo, limpeza e outros. Também
não é definido pelos seus objectivos, funções e visão.
Falar da organização implica atender a um conjunto
de variáveis que todos sabemos estar implícitas
mas, paradoxalmente, não lhes reconhecemos lugar
objectivo.
As organizações têm uma identidade a que nos
atrevemos chamar “teia invisível” que liga todas
as partes e que, não sendo visível e objectivável, é
fundamental para o funcionamento do todo. Essa teia
tem fios de vários tipos (valores, crenças, motivação,
desempenho, identidade) mas de uma natureza
(espiritual).
A cientificidade da espiritualidade nas
organizações no século XXI
Fry (2003) afirma que a liderança espiritual é a
performance de excelência nas organizações do
século XXI. O mesmo autor indica as quatro razões
principais que poderão causar a não aceitação desta
temática pela comunidade científica: a inexistência
de um conceito consensual e aceitável; instrumentos
de medida pouco adequados; desenvolvimento
teórico limitado; e questões legais. Aponta ainda
o reducionismo da espiritualidade à religião como
um obstáculo a ultrapassar, pois a religião está num
plano horizontal da espiritualidade e os agnósticos,
por serem seres espirituais, poderão alimentar a sua
espiritualidade através de outros caminhos, como por
exemplo, com as relações interpessoais. Kolodinsky,
Giacalone e Jurkiewicz (2008) referem que o
conhecimento científico que está em construção
e desenvolvimento referente à espiritualidade
nas organizações é, frequentemente, rotulado de
subjectivo e sem rigor científico. Este é, de facto,
um dos obstáculos que os investigadores terão que
ultrapassar. A argumentação não poderá sair do
campo da subjectividade, pois a subjectividade faz
parte da natureza do conceito “espiritualidade”, o que
não significa que não seja possível criar indicadores
comuns e constructos que permitam a sua medição
a um nível mais objectivo. São disso exemplo as
escalas apresentadas na revisão dos estudos atrás
sistematizada que, apesar de serem consideradas
ainda insuficientes, já permitem a obtenção de dados
quantificáveis relacionados com a espiritualidade nas
organizações.
Os benefícios de um novo paradigma
Rego, Cunha e Souto (2007a) citam Brown, por
afirmar que a espiritualidade no local de trabalho é
uma espécie de cura para os males da gestão moderna.
Pelas ideias que temos vindo a apresentar até
aqui, podemos afirmar que a espiritualidade na
organização promove o bem-estar a nível individual e
organizacional. Assim sendo, consideramos que uma
gestão que tenha em conta a espiritualidade poderia
contribuir para o aumento da criatividade das pessoas,
as quais melhorariam o seu poder de comunicação,
aumentariam o seu comprometimento nas equipas
através de um sentimento genuíno de confiança,
adoptariam comportamentos éticos e teriam
possibilidade de se desenvolver moralmente, pois
sentir-se-iam mais identificadas com os objectivos e a
visão da organização. Desta forma, as pessoas tentam
encontrar sentido, paz, harmonia e, fundamentalmente,
felicidade, tal como afirmam Marques, Dhimane
King (2007). Se considerarmos que as organizações
se personificam através das suas “pessoas”, então as
organizações terão que acompanhar estes desejos. Ao
criar ambientes espirituais, as organizações estarão a
promover o bem-estar, o equilíbrio, o dinamismo, o
empenho, o sentido de identidade e de necessidade
da organização para a realização pessoal e, em última
análise, a felicidade interna e externa, ou seja, dos
colaboradores e dos clientes.
As organizações de saúde
As organizações de saúde, mais especificamente
as que se dedicam à prestação directa de cuidados,
têm um “objecto de trabalho” que não é senão, o
mais complexo e peculiar, a pessoa humana. Neste
contexto, a especificidade é essa: trabalhar com
pessoas humanas para e com pessoas humanas
doentes. Isto implica que os processos de tomada
de decisão sejam particulares, pois não são da
mesma natureza do que aqueles relacionados com a
decisão da cor de uma nova marca de sapatos ou de
um novo clip comercial para uma empresa, embora
com reconhecida importância. Quando a vida está
em jogo de decisão, não há outros problemas que se
assemelhem a essa complexidade. Aos colaboradores
destas organizações, em particular aos enfermeiros,
solicita-se um cuidar humanizado durante o seu
tempo de trabalho, num contexto que é, quase
sempre, de confronto com o sofrimento de pacientes,
famílias e de climas organizacionais de insatisfação, se
atendermos à actualidade relativamente às alterações
na carreira e pretensão de alterações remuneratórias.
Dos enfermeiros espera-se uma prestação de cuidados
humanos, ou seja, atendendo a todas as dimensões da
pessoa. Tal como na gestão, na área da enfermagem
têm aumentado os trabalhos de investigação acerca do
lugar e importância da espiritualidade. O encontro do
enfermeiro e da pessoa que precisa de cuidados tem
sempre a “doença” como contexto (seja na vertente
de prevenção, tratamento ou reabilitação) e a doença
ou situações de sofrimento são, indubitavelmente,
oportunidades de questionar a vida e reflectir sobre
as questões últimas do seu sentido. Então, para
a prestação de cuidados holísticos, o enfermeiro
deverá entender, também, a espiritualidade da pessoa
humana. O enfermeiro convive com o sofrimento e,
porque conviver é “com viver”, é-lhe difícil não pensar
na sua própria vida e momentos de sofrimento. As
equipas poderão desempenhar um papel catalisador
nestes processos, pois a partilha destes problemas
aumenta o sentido de espírito de equipa e poderá
reduzir a probabilidade de Burnout. Lembramos a
obra do enfermeiro Queirós (2005), na qual o autor
descreve o Burnout como presente no local de
trabalho dos enfermeiros. O local de trabalho dos
enfermeiros é de natureza espiritual. Trabalhar com
a vida humana é um desafio e uma forma inequívoca
de perceber que a pessoa é um ser vulnerável e que a
vida tem um fim. De uma forma esperada ou súbita,
a morte aparece como uma realidade inexorável.
Conviver com este aspecto e estar implicado nestes
processos poderá ser causador de sofrimento às
equipas de saúde e em particular ao enfermeiro que
acaba por encontrar no rosto dos que cuida a sua
própria vulnerabilidade e finitude. A capacidade de
desmembrar estas situações, entendê-las e aprender
com elas, passa, sem dúvida, pela sensibilidade dos
gestores. Porque gerir “gente que cuida de gente” é
menos difícil para quem apresenta um perfil cuidador.
Gerir “gente que cuida de gente”: gestores
cuidadores
Gerir “gente que cuida de gente” deve ser, acima
de tudo, um trabalho de coerência, pois existiria
um desequilíbrio desumano entre exigir cuidados
humanizados, e de qualidade, quando a gestão
das pessoas a quem se solicita essa postura não
se baseia, também ela, em princípios humanos. A
gestão de pessoas numa organização de saúde pode
ser o ponto de partida ou a meta de um rosto mais
humano na saúde e, simultaneamente, um ambiente
mais humano nas equipas e nas organizações. Porque
se humanizar é tornar mais humano, tornar mais
humano é espiritualizar.
Metodologia
Propomo-nos explorar e compreender a percepção
que os enfermeiros têm acerca da espiritualidade
no local de trabalho. Partimos da seguinte questão
de investigação: “Qual a percepção dos enfermeiros
acerca da espiritualidade no seu local de trabalho?”.
O instrumento de colheita de dados foi um questionário
constituído por duas partes e que foi respondido por
40 enfermeiros a frequentar o curso de complemento
de formação em enfermagem, constituindo uma
amostra por conveniência. A primeira parte apresenta
nove questões fechadas, relacionadas com as variáveis
de atributo, uma questão aberta acerca da vivência
espiritual e duas questões fechadas de opinião acerca
da temática. A segunda parte do questionário foi
constituída pela escala de avaliação da espiritualidade
no local de trabalho (Rego, Cunha e Souto, 2007a).
A escala é constituída por 19 afirmações, distribuídas
em 5 dimensões, com 6 níveis possíveis de resposta
tipo Likert. As dimensões são as seguintes: sentido
de comunidade na equipa (inclui itens relacionados
com o espírito de equipa, o zelo mútuo entre os
membros e o sentido de comunidade e de propósito
comum); alinhamento do indivíduo com os valores
da organização (inclui descritores relacionados com
a compatibilidade dos valores e da vida do indivíduo
com os valores da organização); sentido de préstimo à
comunidade (inclui itens relacionados com a utilidade
e importância do trabalho à comunidade); alegria no
trabalho (inclui itens relacionados com o sentido de
alegria e de prazer no trabalho); e oportunidades para
a vida interior (inclui itens relacionados com o modo
como a organização respeita a espiritualidade e os
valores espirituais do indivíduo).
A colheita de dados foi efectuada em Novembro de
2008. Foi entregue uma carta de esclarecimento aos
participantes, salvaguardando as questões éticas
inerentes ao estudo, bem como, as instruções de
preenchimento. Foi entregue juntamente com o
questionário em envelope fechado a devolver após
o preenchimento numa caixa colocada na sala. De
referir que a investigadora não estava presente.
A aplicação do instrumento de colheita de dados
foi aprovada pelo Reitor da Universidade onde os
participantes se encontravam em formação.
Os dados foram analisados através da estatística
descritiva, determinando-se frequências absolutas,
frequências percentuais e medida de localização,
nomeadamente a média e moda. Esta pesquisa
decorreu no decurso de uma pós-graduação em gestão
de recursos humanos, pelo que, o tamanho da amostra
e o tratamento descritivo dos dados constituem
limitações da mesma, não obstante, reconhecermos a
sua importância na visibilidade de uma temática cuja
investigação é ainda exígua em enfermagem.
Resultados
Através da análise estatística dos dados é possível
saber que os respondentes têm uma média de 41
anos e 75% são do sexo feminino, dado este que vai ao
encontro da natureza predominantemente feminina
da profissão. Os sujeitos da amostra, em 82% dos
casos, desempenham as suas funções profissionais
em contexto de cuidados de saúde diferenciados, ou
seja, em contexto hospitalar. A amostra é heterogénea
relativamente ao tempo de serviço, pois os sujeitos
têm entre 6 e 30 anos de serviço. Porém, verificamos
que a maioria desempenha funções entre 11 e 20
anos. No que diz respeito aos dados resultantes
das respostas às questões abertas colocadas,
constatámos que, embora 87% da amostra tenha
considerado a espiritualidade no local de trabalho
um fenómeno importante, as respostas tendem a
fixar-se equilibradamente em posições extremas,
nomeadamente, entre os sujeitos que pensam “muitas
vezes” e os que “raras vezes” pensam na questão da
espiritualidade no local de trabalho, como podemos
verificar no gráfico 1.
A questão relacionada com a vivência espiritual obteve
79% de respostas, sendo notório o reducionismo da
espiritualidade à religião, pois entre os respondentes,
93% referiram apenas a sua religião e os restantes
referiram viver a sua espiritualidade na família e nas
alegrias do quotidiano.
Relativamente à escala podemos verificar os resultados
apresentados no gráfico nº2, distribuídos por cada
dimensão. Nesta segunda parte do questionário,
contámos com 38 sujeitos da amostra, visto dois não
terem respondido. Ao analisar a espiritualidade no
local de trabalho para cada dimensão considerouse “baixa” para um resultado igual ou inferior a 3,
“moderada” para um resultado entre 3 e 5 e “alta” para
um resultado igual ou superior a 5. Assim, podemos
verificar que em todas as dimensões o resultado foi
“moderado”. Uma atenção especial para a dimensão
“sentido de préstimo à comunidade” que se encontra
num nível elevado. Na apreciação do gráfico nº2
destacamos a dimensão “alegria no trabalho” com 4,6.
Discussão
A maioria dos participantes do estudo exerce a sua
profissão em contexto de internamento e têm maior
probabilidade de encontrar utentes e famílias sujeitas a
situações de elevado grau de sofrimento agudo. Mesmo
as doenças crónicas podem apresentar períodos
de agudização. Estas situações são promotoras de
introspecção e promoverão no enfermeiro, de forma
mais ou menos explícita, esse pensamento. Por
outro lado, os profissionais de cuidados de saúde
primários vivenciam uma continuidade de cuidados,
quer na vertente preventiva, quer na de reabilitação,
muitas vezes durante anos, tornando-se elementos
próximos do doente e da família. Embora de
natureza diferente, os problemas vivenciados pelos
clientes podem suscitar no enfermeiro sentimentos
que o levem a pensar a vida e o seu sentido. Um
ambiente organizacional favorável deverá repercutirse na qualidade das actividades desenvolvidas
pelo enfermeiro, bem como, no sentido ético que
reconhece na sua intervenção. Como afirmam Rego,
Cunha e Souto (2007a, p.10), quando os profissionais
encontram no seu trabalho significado para as suas
vidas, esse trabalho transforma-se de emprego
em vocação. O resultado da dimensão “alegria no
trabalho” poderá parecer dissonante, já que, atrás
expusemos que o enfermeiro trabalha em contexto
de sofrimento. Aqui reconhecemos uma vertente
espiritual, na visão transformadora do sofrimento
em alegria, não por menosprezo dos sentimentos
das pessoas, mas pela oportunidade de ajudar essas
pessoas a ter mais qualidade de vida e bem-estar. A
este propósito, no estudo transversal que efectuaram
com 30 enfermeiros de uma unidade semi-intensiva
e de uma unidade de oncologia, Pedrão e Beresin
(2010) encontraram scores positivos no nível de bemestar espiritual dos enfermeiros.
De referir, ainda, que a totalidade da amostra tem
um vínculo estável com a organização (todos os
sujeitos pertencem ao quadro). A amostra é toda
constituída por enfermeiros graduados. A experiência
profissional que estes enfermeiros contam permitenos afirmar que já terão vivenciado múltiplas situações
e contextos de ambiente organizacional diferentes,
transformando-os. Pelos resultados da escala, e nesta
população, poderíamos dizer que os enfermeiros
com vínculos laborais seguros percepcionam a
espiritualidade no local de trabalho como moderada.
A homogeneidade da amostra nestes dois indicadores
de caracterização não nos permite perceber se outros
tipos de vínculos laborais terão outra expressão nos
resultados, configurando uma limitação do estudo.
O “sentido de préstimo à comunidade” foi a dimensão
que se destacou e associamos este fenómeno à
natureza cuidadora da profissão de enfermagem,
tradicionalmente ligada a uma vertente caritativa que
persiste nas bases de formação profissional e na ética
da relação com a pessoa doente.
De salientar que na questão aberta, relacionada
com a vivência espiritual, apenas dois enfermeiros
abordaram a espiritualidade numa vertente não
religiosa, o que nos parece uma visão reducionista
de um conceito tão abrangente e complexo. Como
afirmam Marques, Dhiman e King (2007, p. 35), é
possível uma liderança e um ambiente organizacional
espiritual sem que se siga alguma doutrina religiosa
particular.
Esta constatação poderá implicar a necessidade de
uma melhor definição prévia de espiritualidade em
trabalhos futuros.
Conclusão
A espiritualidade é uma dimensão da pessoa
humana, conferindo-lhe uma natureza interpretativa
relativamente às suas vivências. Seja qual for a forma
como se caracteriza - ateu, agnóstico ou espiritual – o
ser humano necessita encontrar sentido na sua vida
e respostas às questões que esta vai colocando, de
forma mais ou menos súbita.
Porque o Homem pensa, decide e faz-se pessoa nas
relações interpessoais, caracteriza-se igualmente por
uma vertente social, onde se concretiza. Nesta esfera
social poderemos encontrar o mundo do trabalho e,
em particular, as organizações.
As organizações são organismos vivos, porque
são constituídas por pessoas que entre si tecem
teias de relações e comunicação que, em si
mesmas, configuram a organização. Nestes tempos
conturbados, em que a noção de estabilidade e
perenidade se esbateu, cada vez mais a busca de uma
vantagem sustentável se baseia na definição clara de
uma visão e de uma missão motivadoras que sirvam
de base à construção de uma identidade distintiva.
Uma gestão capaz de motivar os colaboradores
será certamente uma das formas mais eficazes de o
alcançar. O local de trabalho, dada a importância de
que se reveste, quer para o trabalhador individual,
quer para a sua organização, quer para a comunidade
em que se insere, deverá ser encarado não apenas
como uma fonte de rendimento monetário, mas
também de realização pessoal e social. Porque as
organizações são constituídas por pessoas que
necessitam satisfazer necessidades de amor, pertença,
desenvolvimento e préstimo.
A espiritualidade no local de trabalho é um tema
relativamente recente na investigação da gestão
de recursos humanos, entendidos, também por
isso e cada vez mais, como “pessoas”. Neste virar
de século, em que muitas descobertas e avanços
já foram conquistados, segue-se uma fase da
descoberta interior da própria organização. Não
importa somente a imagem exterior, mas também
– ou mais – a imagem interna, entenda-se o clima
favorável ao desenvolvimento, realização e bem-
estar das pessoas. Neste estudo, com uma amostra
constituída por enfermeiros, considerou-se de
interesse compreender a sua percepção acerca da
espiritualidade no local de trabalho, caracterizado
pelo valor da saúde, sofrimento e vida, bem como,
de profissionais aos quais o profissionalismo faz
imperar uma atenção às pessoas na sua totalidade.
Percebeu-se que este fenómeno é percepcionado
pelos enfermeiros e, assim deverá ser atendido pelos
gestores. Sugere-se mais investigação relativamente à
percepção dos gestores, em relação à espiritualidade
no local trabalho, como também, estudos acerca
da satisfação das equipas com liderança espiritual e
repercussões na produtividade.
Reconhecendo as limitações desta pesquisa
considera-se um contributo para o despertar, para o
aprofundamento do conhecimento, pois trata-se de
um tema emergente no debate científico na área da
gestão e os trabalhos disponíveis foram realizados
em organizações que não pertenciam ao universo da
saúde.