Avaliação renal de hipertensos pela clearance de creatinina num centro de saúde
de Teresina-PI, Brasil
Introdução
No Brasil são cerca de 17 milhões de portadores de hipertensão arterial, dos
quais 35% estão na faixa de 40 anos ou mais. Esse número continua crescente,
seu aparecimento está cada vez mais precoce e estima-se que cerca de 4% das
crianças e adolescentes também sejam portadores (Brasil. Ministério da Saúde,
2005). É razoavelmente comum, facilmente diagnosticada e tem prognóstico
reservado quando não tratada. Dado o seu caráter assintomático, poderá existir
pouca adesão ao tratamento (Santos e Gomes, 2010). A Hipertensão Arterial
Sistémica (HAS) quando não devidamente controlada pode trazer ao indivíduo
graves consequências à saúde, como as relacionadas com o sistema renal
(Teixeira et al., 2005).
A presença de HAS constitui fator importante de progressão (Ajzen e Shor,
2005). Conforme inquéritos realizados pela Sociedade Brasileira de Nefrologia
(SBN) em 1996/97, as principais doenças reportadas como causas de Insuficiência
Renal Crónica Terminal (IRCT) em pacientes incidentes são: hipertensão arterial
(24%), glomerulonefrite (24%) e diabetes mellitus (17%) (Barros et al., 2006).
Dessa forma, o desenvolvimento da hipertensão arterial e a presença de história
familiar associados com a presença de obesidade, dislipidemia e tabagismo
acelera a progressão da Doença Renal Crónica (DRC) que determina lesão, perda
progressiva e irreversível da função dos rins. Esse diagnóstico baseia-se na
identificação dessas lesões, presença de alterações de sedimento urinário e na
redução de filtração glomerular avaliado pela clearance de creatinina (Brasil.
Ministério da Saúde, 2005).
Para haver uma prática eficaz na redução da morbimortalidade por DRC em
pacientes com hipertensão arterial, é necessário que o enfermeiro esteja apto a
avaliar a função renal dos pacientes, pois a prevenção ainda é a melhor forma
de reduzir a progressão da doença.
Dessa maneira, este estudo tem como objetivo geral avaliar a função renal de
pacientes com hipertensão arterial pela clearance de creatinina e como
objetivos específicos: identificar os níveis de creatinina sérica e classificar
o estágio da função renal dos hipertensos a partir dos resultados da clearance.
Fundamentação teórica
A filtração glomerular consiste na filtração depuração do plasma pelos
glomérulos, no qual uma das substâncias filtradas é a creatinina, resultante da
degradação da fosfocreatina, um produto metabólico dos aminoácidos, que está
localizado no tecido muscular, onde a mesma é filtrada pelos glomérulos e numa
taxa constante é excretada pelos rins (Timby e Smith, 2005).
O teste do clearance de creatinina é uma medida específica da avaliação da
função renal, principalmente da filtração glomerular, que tem como finalidade
medir a velocidade com que os rins retiram a creatinina do sangue. Por isso
esse teste, além de estimar a Taxa de Filtração Glomerular (TFG), é usado para
avaliar a função renal (Fischbach, 2010). Medir a clearance de creatinina, que
normalmente é de 120-140mL/min, é o meio mais fácil de avaliar a filtração
glomerular (Tortora e Grabowski, 2010).
A estimativa da TFG baseada em fórmulas de cálculo, que levam em conta o nível
sérico de creatinina e os dados antropométricos do paciente, pode oferecer
resultados tão fidedignos quanto a medida da depuração renal da creatinina
(Barros et al., 2006). A equação mais conhecida e simplificada é a Equação de
Cockcroft-Gault representada pela fórmula: Clcr ml\min = (140-idade)*peso*
(0,85, se mulher)\72*Cr sérica (mg\dL). A partir desse resultado, o paciente
pode ser classificado segundo estadiamento da DRC, parâmetro confiável de
avaliação e acompanhamento da sua evolução e tratamento (Brasil. Ministério da
Saúde, 2006).
Em estudo realizado no município de São Paulo, estimou-se que 25% dos pacientes
com Insuficiência Renal Crónica Terminal (IRCT) morreram sem receber tratamento
dialítico em 1991. As principais causas para o encaminhamento tardio são o fato
de a DRC ser frequentemente assintomática (Barros et al., 2006).
Avaliar adequadamente a função renal é fundamental para realizar o diagnóstico
e proceder ao tratamento adequado para a doença renal crónica, bem como a
hipertensão como sua maior causa no Brasil.
Os estudos disponíveis no Brasil não analisaram de modo abrangente os vários
fatores envolvidos na génese da hipertensão, especialmente a associação entre
pressão arterial, excreção urinária de sódio e disfunção renal. Além disso,
ainda não dispõe de estudos populacionais da doença renal nos estágios iniciais
e as atenções se restringem, quase que exclusivamente, ao estágio mais
avançado, quando o paciente necessita de tratamento dialítico ou mesmo
transplante renal.
Segura, Campos e Ruilope (2002) identificaram em hipertensos a prevalência de
défice da função renal de 7,6%, usando como critério a dosagem de creatinina
sérica e de 22,3%, quando usaram a filtração glomerular (FG) pela clearance de
creatinina.
No futuro espera-se que o uso de biomarcadores possa ser útil no diagnóstico da
disfunção renal mesmo antes do desenvolvimento de alterações clínicas e/ou
laboratoriais (Venkataraman e Kellum, 2007). Um biomarcador promissor é a
Cistaina C sérica, cuja dosagem não é afetada pela idade, peso corporal,
inflamação ou infeção (Cheung, Ponnusamy e Anderton, 2008). O que remete a
importância de investigações dessa natureza na realidade brasileira.
Metodologia
Este estudo é caracterizado como pesquisa quantitativa do tipo exploratório, de
campo, e realizado por meio de levantamento de dados, desenvolvido no decorrer
dos meses de novembro e dezembro do ano de 2008 num Centro de Saúde localizado
em Teresina ' PI.
A amostra do tipo não-probabilística intencional foi composta por 27 portadores
de HAS, registados no SIS-HIPERDIA (Sistema de Informação em Saúde '
Hipertensão e Diabetes), sendo que os mesmos não apresentavam diabetes mellitus
associada. Os dados foram extraídos durante consultas de enfermagem. O estudo
foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade Integral Diferencial
(FACID) com protocolo nº 471/08, após prévia autorização da Fundação Municipal
de Saúde (FMS). Além disso, os sujeitos assinaram o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido, cumprindo os requisitos da resolução 196/96 do Conselho
Nacional de Saúde no que se refere aos aspetos éticos da pesquisa envolvendo
seres humanos (Brasil. Ministério da Saúde, 1996).
A colheita de dados ocorreu durante as consultas de enfermagem, por meio de
perguntas fechadas e abertas, as quais se referiam primeiramente à sua
identificação (nome, idade, sexo). Em seguida, era verificado o peso, altura e
Índice de Massa Corporal (IMC). Todos os pacientes já haviam sido categorizados
pelo médico da unidade conforme a classificação da V Diretrizes Brasileiras de
Hipertensão Arterial ' IV DBHA: estágio 1 (leve) ' 140/90 a 159/99mmHg; estágio
2 (moderada) ' 160/100 a 179/109mmHg; estágio 3 (grave): > 180/110mmHg
(Sociedade Brasileira de Cardiologia, 2010).
A creatinina sérica era solicitada durante a realização da consulta. De posse
dos resultados do exame, os sujeitos retornavam ao serviço na data marcada. A
partir daí, era calculado a Clearance de Creatinina (ClCr) utilizando a equação
de Cockcroft'Gault, representada pela seguinte fórmula:
De acordo com a clearance de creatinina, os indivíduos foram classificados em
seis estágios da DRC. O estágio 0 (Clcr > 90) indica grupo de risco sem lesão
renal, com função normal; o estágio 1 (Clcr > 90) indica lesão renal
(microalbuminúria, proteinúria); no estágio 2 (60 ≤ Clcr ≤ 89) pode-se
constatar lesão renal com insuficiência renal leve; o estágio 3 (30 ≤ Clcr ≤
59) aponta para lesão renal com insuficiência renal moderada; e o estágio 4 (15
≤ Clcr ≤ 29) representa lesão renal severa; por fim, o estágio 5 (<15)
determina lesão renal com insuficiência renal terminal ou dialítica (Brasil.
Ministério da Saúde, 2006).
Naqueles que apresentaram ClCr > 90, pesquisou-se a presença de
microalbuminúria e proteinúria para que pudesse diferenciar estágio 0 e 1.
Os pacientes que se encontravam nos estágios 0 e 1 eram orientados a realizar a
filtração glomerular estimada pela depuração de creatinina, pelo menos uma vez
por ano e semestralmente no estágio 2 da DRC. A avaliação trimestral era
recomendada para todos os pacientes no estágio 3. Os pacientes nos estágios 4 e
5 eram encaminhados para o médico da equipe (Brasil. Ministério da Saúde,
2006). Assim, os dados obtidos foram organizados, tabulados e analisados
quantitativamente à luz da literatura utilizando estatística descritiva.
Resultados
Sobre alteração na função renal (>estágio 2), ocorreu em 76% (16) no género
feminino. A lesão renal prevaleceu naqueles com idade igual ou superior a 60
anos constituindo 92% (11) dessa faixa etária. Não houve nenhum paciente
classificado em estágio 1 ou 5, conforme exposto na tabela 1.
Tabela_1 ' Distribuição da função renal segundo sexo e idade. Teresina ' PI,
2008.
Pela tabela 2, identifica-se que 82% (22) dos sujeitos estão acima do peso, 48%
(13) classificado com sobrepeso e 34% (09) com obesidade, sendo que 15
pacientes já apresentam algum grau de comprometimento renal, ao se somar
aqueles acima do peso nos estágios 2 a 4, conforme mostra a tabela.
Tabela 2 ' Distribuição da função renal segundo IMC dos pacientes. Teresina '
PI, 2008.
De acordo com os dados organizados na tabela 3, identificou-se 63% (17) dos
pacientes com creatinina sérica dentro dos valores de normalidade (0,8-1,2),
porém dentre eles apenas 18% (3) não apresentavam lesão renal (estágio 0).
Observou-se também que todos aqueles com níveis de creatinina elevada
apresentaram comprometimento renal.
Tabela 3 ' Distribuição da função renal segundo creatinina sérica. Teresina '
PI, 2008.
Os dados ora apresentados na tabela 4 mostram que 67% (18) dos sujeitos
classificados como estágio leve da HAS, apenas 22% (4) não foram identificados
com lesão renal. Embora somente 1 paciente da amostra (13%) analisada esteja
classificado como estágio grave, observa-se que o mesmo já encontrava-se com
comprometimento renal moderado.
Tabela_4 ' Relação entre a função renal e a classificação da HAS dos pacientes.
Teresina ' PI, 2008.
Discussão
A HAS é hoje um dos maiores problemas de saúde pública no Brasil, atingindo
cerca de 15% a 20% da população adulta e cerca de 13% dos jovens (Teixeira et
al., 2005). É uma das mais frequentes causas de Insuficiência Renal Crónica
(IRC) (Brasil. Ministério da Saúde, 2006), principalmente porque o défice de
conhecimento e a adesão parcial ao tratamento convergem para uma prática
ineficaz do autocuidado (Santos e Silva, 2006), prejudicando o efetivo controle
da doença.
Nesse estudo, o sexo feminino esteve presente em 78% da amostra estudada, sendo
que destas mulheres 76% já apresentavam alguma alteração na função renal
(≥estágio 2). Em relação à idade, observa-se que 92% dos pacientes com idade
superior a 60 anos apresentam IRC mesmo em estágio leve. Em ambos os géneros, a
frequência da hipertensão cresce com o aumento da idade, sendo que o sexo
masculino e a idade avançada conferem maior risco de Doença Renal Crónica (DRC)
(Brasil. Ministério da Saúde, 2006). Percebeu-se alteração na função renal em
pessoas do sexo feminino (tabela_1). Contudo, esse fato pode ser explicado
devido à procura mais frequente por parte das mulheres pelo serviço de saúde
brasileiro (Teixeira et al., 2005).
No que concerne a idade, o envelhecimento causa a perda da função renal.
Estatisticamente, as pessoas perdem 10% do número de néfrons funcionais a cada
10 anos após os 40 anos, portanto, mesmo em pessoas fisiologicamente normais, o
fluxo plasmático renal e a filtração glomerular diminuem 40 a 50% aos 80 anos.
Apesar dessa deterioração glomerular, a creatinina avaliada num mesmo indivíduo
ao longo dos anos será similar, já que essa varia com a massa muscular. Com o
envelhecimento há deterioração glomerular, ao mesmo tempo em que diminui a
massa muscular, preservando os valores de creatinina (Barros et al., 2006).
Além da idade, o peso tem grande influência sobre a estimativa da função renal
pela fórmula de Cockcroft Gault. Dessa forma, o Índice de Massa Corporal (IMC)
torna-se um fator importante; de acordo com a classificação da Organização
Mundial de Saúde os pacientes são categorizados como magreza, IMC menor que
18,5; normal, IMC entre 18,5 e 24,9; sobrepeso, IMC entre 25 e 25,9; obesidade,
IMC entre 30 e 39,9; e obesidade grave, IMC maior ou igual a 40.
A HAS torna-se mais frequente na medida em que a idade avança. E a obesidade,
quando presente, passa a ser determinante para o seu desenvolvimento ou
agravamento (Teixeira et al., 2005), resultando na instalação progressiva da
DRC. Prova disso, é que 82% dos sujeitos da amostra estão acima do peso, sendo
que 68% desses já apresentam algum grau de comprometimento renal.
Apesar do aumento do tecido adiposo determinar uma redução na percentagem de
massa muscular relacionada com o peso corporal, o que leva a uma menor excreção
diária de creatinina quando se compara com indivíduos com peso normal (Silva e
Souza, 2004), isso não se reflete na manutenção da função renal dentro da
normalidade. De ressaltar ainda que independente do diagnóstico etiológico da
DRC, a presença de dislipidemia, obesidade e tabagismo acelera a progressão da
doença (Brasil. Ministério da Saúde, 2006).
Pode-se comprovar ainda que a creatinina plasmática (CrP) normal não é sinónimo
de ausência de comprometimento da função renal, pois tem sido encontrado até
15% de indivíduos com CrP normal e níveis de função renal abaixo de 60 ml/min
(Filho et al., 2008), ou seja, no estágio 3 ou moderado da função renal.
De salientar que todos os pacientes que apresentavam níveis de creatinina acima
de 1,2 encontravam-se com alteração renal de moderada a grave. Pode-se afirmar
que a creatinina plasmática somente alcançará valores acima do normal após
perda de 50 ' 60% da função renal (Brasil. Ministério da Saúde, 2006).
Estima-se que 20% da população adulta brasileira tenha hipertensão arterial, ou
seja, cerca de 21 milhões de indivíduos. Destes, não mais do que 15% teriam a
pressão arterial devidamente controlada, sendo que os demais têm maior
potencial para evoluírem com IRC (Barros et al., 2006). Estudo realizado em um
hospital de Fortaleza-Ceará, Brasil, identificou que 22,6% dos utentes com
crise hipertensiva procuram o serviço apenas em caso de urgência (Souza et al.,
2009), o que também acaba por potencializar os efeitos da DRC.
Apesar disso, 78% dos pacientes como estágio leve já apresentavam algum grau de
comprometimento da função renal (> estágio 2), conforme se viu na tabela_4, o
que confirma a afirmação de que a elevação da pressão arterial, mesmo dentro da
faixa da normalidade, é um indicador de risco crescente de evolução para IRC
(Barros et al., 2006). É preocupante o fato de que, apesar de conhecerem um
pouco da fisiopatologia renal, os hipertensos não a veem como consequência da
hipertensão arterial (Orsolin et al., 2005).
O manuseio da HAS deve ser intensificado em pacientes que apresentam evidência
de proteinúria e perda de função renal (Brasil. Ministério da Saúde, 2005),
pois a principal maneira de evitar a progressão da DRC é o controlo rigoroso da
pressão arterial (Brasil. Ministério da Saúde, 2006).
Por fim, ressalta-se que a técnica de amostragem intencional, aqui usada, não
permite generalizações, porém remete a reflexões validadas no contexto em que
foi realizada a pesquisa, confirmada pela influência direta da hipertensão nas
complicações renais, que já são conhecidas. Sugerem-se estudos mais acurados
com inquéritos populacionais brasileiros.
Conclusão
Constatou-se que os pacientes do sexo feminino e com idade igual ou superior a
60 anos apresentaram maior comprometimento da função renal. Além disso,
percebeu-se que mais da metade dos hipertensos com peso acima do normal tinham
alteração renal. Até mesmo entre os pacientes com HAS no estágio leve, 78%
deles já se encontravam com algum grau de comprometimento renal. Do total, 63%
dos pacientes possuíam creatinina sérica dentro dos valores de normalidade,
contudo apenas 18% deles sem lesão renal. Enfim, 74% da amostra estudada
apresentou alteração na função renal.
Implicações para a prática clínica: os resultados deste estudo contribuirão
para melhorar a eficácia diagnóstica na avaliação e acompanhamento dos
pacientes com hipertensão arterial em unidades básicas de saúde, e, por
conseguinte direcionar cuidados multidisciplinares mais adequadas, com fins de
reduzir as complicações renais.
Acreditando nas potencialidades da atenção básica brasileira, com as suas ações
focalizadas na promoção à saúde, fica o alerta para os profissionais que atuam
nessa área, em especial os enfermeiros, para estarem preparados ao realizar
rotineiramente a avaliação da função renal dos pacientes com HAS, pois essa
patologia acelera a progressão da DRC, representando alto custo para o sistema
de saúde brasileiro além de custo pessoal e psicológico. De posse dessa
avaliação prévia, pode-se direcionar para um diagnóstico precoce das doenças
renais e consequentemente minimizar a morbi-mortalidade advinda da doença. Além
de suscitar a necessidade emergente de estudos com delineamento metodológico
mais acurado sobre a temática.