Diário de bordo: Ventos alísios
Nota Editorial
Diário de bordo - Ventos alísios
Jorge Bento
VIAGEM
Aparelhei o barco da ilusão
E forcei a fé do marinheiro
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...
(Só nos é concedida
Esta vida que temos;
E é nela que é preciso
Procurar o velho paraíso
Que perdemos.)
Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida, a revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.
Miguel Torga
1. Preocupam-me os excessos do futebol. Tal como as claques que se assemelham a
hordas de selvagens, sem cultura e sem alma, por dentro vazios de princípios e
valores, mas cheios de instintos bárbaros e primários. Assusta-me que haja
gente que esgota a vida a brigar por uma equipa. E que se entrega ao futebol a
ponto de se esquecer da sua vida, de outra vida, com outro sentido e elevação.
Sim, essa forma de extremismo e fanatismo religioso dá que pensar e temer. Mas
assusta-me muito mais a comissão liquidatária da alma lusitana - escarolada,
limpa, laboriosa, íntegra, proba, séria e honrada – que se instalou entre nós.
As marcas nobres dessa alma, os traços essenciais e ancestrais que a perfazem e
exaltam estão a ser abatidos e entregues ao desbarato pelo despudor neoliberal.
O pensamento filosófico, na antiguidade como no presente, viu e vê na ilusão o
alimento preferido da felicidade. Tudo quanto seja fonte multiplicadora de
encantamento e ilusão leva a modalidades superiores de configuração da vida e
portanto abeira da felicidade ou, no mínimo, oferece momentos e oportunidades
de concretização desta utopia. Não podemos, pois, deixar de ver o desporto em
geral e o futebol em particular como um campo de sementeira fértil de ilusões
e, por via destas, de vivência de situações únicas e renováveis de felicidade.
Ora é isto mesmo que o Mundial de Futebol constitui para tantas pessoas em
todos os recantos do globo, para mim e milhões de portugueses. O apego ao
futebol traduz descrença no resto. É a única tábua de salvação à vista de um
povo à deriva. Por isso também tenho medo dos tempos seguintes à conclusão do
certame. O vazio promete alastrar. Aonde iremos buscar a ilusão que sustenta a
vida?
2. A hora é estranha. É como se a mortalidade flutuasse no ar e vivêssemos um
intervalo, num lugar que não mais nos reconhece. Como se a sabedoria, a
decência e lucidez voassem pela janela, à medida que a crise se adensa. Todavia
no fundo do nosso íntimo vive a convicção de que o homem volta sempre às suas
próprias necessidades de beleza, verdade e discernimento. Mais, acredito que na
escrita, no ensino e aprendizagem da vida só perdura aquilo que obedece a três
critérios: esplendor ético e estético, força intelectual, sapiência.
Mas é uma crença desmentida pela conjuntura. Este é o tempo de Dom Quixote: de
beirar a transcendência e simultaneamente de sucumbir à desilusão, como se
apenas houvéssemos de alcançar a apoteose no silêncio tranquilo e amargo do
aniquilamento e resignação. Aceitemos, pois, os limites das possibilidades, sem
esquecer as palavras de Hilel: “Onde não houver homens, esforçai-vos para agir
como um homem”. E tendo também em conta a advertência de Tarphon: “Não sois
obrigados a concluir a obra, mas tampouco estais livres para desistir dela”.
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Mantenhamos vivas as convicções ganhas num trajecto esforçado, suado e limpo. E
continuemos a iluminar as noites e dias da dúvida opressora com este clarão de
Mário Quintana: “A vida são deveres que nós trouxemos para fazer em casa”. Para
os guardar e cumprir.
Sei que eles caíram em desuso. Porém é mister que sigamos o rumo traçado, para
não cairmos na farsa e mentira. Os enganadores têm o castigo de ser o que são;
não são nada, falta-lhes identidade. Eis porque devemos passar de cara erguida,
leves e orgulhosos de nós, por entre a multidão desfigurada.
Sim, devemos preferir a dificuldade dorida do dever porfiado à vantagem
indevida do dever contornado. Até porque o homem que a dor não educou não passa
de uma criança. A dor torna-nos mais fortes e por certo mais sábios, cépticos e
prudentes, embora também pessimistas e solitários.
3. Quando olho a conjuntura e as circunstâncias, vem-me à memória o poeta russo
Maiakowski. O poeta acreditava piamente na revolução e que dela sairia um mundo
melhor, mais justo, fraterno e solidário. Pouco a pouco foi percebendo que os
líderes do seu país tinham perdido a alma. O desrespeito e os atropelos brutais
à dignidade física e moral das criaturas eram a regra vigente. Desiludido e sem
esperança, em 1930 rendeu-se e saiu de cena, pondo um fim trágico à sua vida.
Também hoje vivemos tempos dúbios e tristes. Muitos de nós já sentem angústias
e desalentos próximos aos do poeta. Perdemos a confiança em gente que se
afirmava ciosa do bem comum, apostada em combater iniquidades e diminuir as
desigualdades sociais. Tudo o que traduz solidariedade, atenção e respeito do
outro, do semelhante, é destruído sem apelo nem agravo. O doente, o necessitado
e o desvalido são erigidos em privilegiados e como tal vilipendiados e
execrados na praça pública. Por isso vai alastrando uma onda de suspeição,
descrédito e desesperança, em relação aos políticos e ao seu jeito tão baixo de
fazer política. Contudo ela não gera revolta; pelo contrário, redunda em
passividade e desistência, o que é deveras preocupante.
Só que eu sou professor, pertenço à profissão da palavra e da obrigação de a
dizer alto. Não procederei como Maiakowski, nem tampouco fico calado, à espera
que me tirem a voz da garganta e já não possa falar.
Não deixemos que o silêncio dos melhores seja cúmplice do alarido e desvergonha
dos piores! Não percamos a alma, nem permitamos que nos roubem o direito de
sonhar, a vontade de viver melhor!
Sim, é tudo isto que causa dor em mim e em muitos portugueses. Não foi tão
presente enquanto a nossa Selecção esteve no Mundial. Depois veio o pesadelo a
toldar a nossa visão sobre um horizonte onde já não se descortina a ilusão. Da
terra emerge uma cruz com um epitáfio: “Aqui jaz a alma portuguesa. Vendida e
perdida por…” Recuso-me a continuar a ler, porque é longa a lista dos que a
vendem e perdem.
4. Somos poucos e sem peso económico, mediático e comercial, mas fomos longe no
Mundial de Futebol. Na Europa não há admiração pelos feitos desmedidos da nossa
história, mas na Alemanha sentiu-se o vento lusitano. Esse sopro universal que
insufla a inquietação de Portugal, tão bem dito por Miguel Torga, que é o de
não ter medo senão da pequenez, “medo de ficar aquém do estalão por onde, desde
que o mundo é mundo, se mede à hora da morte o tamanho de uma criatura”.
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O papel que nos tocou desempenhar na história da Humanidade ri-se da soberba
europeia. A via-sacra da nossa aventura ingente deixou-nos na pele uma nova
tatuagem e o sudário de uma condição desgarrada; transformou-nos em arlequins
de roupa multicolorida. Somos híbridos, mestiços, polimorfos, ubíquos,
divididos e perdidos na lonjura e na distância. Uma colcha de retalhos e
estilhaços, a revelar a unidade da espécie humana. Antes tínhamos só as marcas
do agro originário; hoje temos traços de outras culturas, somos também
africanos, asiáticos, angolanos, brasileiros, cabo-verdeanos, goeses,
guineenses, macaenses, moçambicanos, timorenses etc. Temos a pátria aumentada e
gememos por todas as suas parcelas no desespero duma opção impossível. Somos
duplos? É claro que não somos duplos, somos isso sim um ser por inteiro, mais
humano, mais solidário, mais comunitário. Somos sim um sujeito mais universal,
um cidadão global e planetário. Como um Cristo de amplos braços. A isso chama-
se ser português.
No decurso da nossa peregrinação e errância houve desencontros com os povos que
connosco se cruzaram. Mas também houve encontros, aproximações, paixões, amores
e sexo insubmissos a pudores da epiderme e a arrogâncias biológicas, redundando
em casamentos que misturaram o sangue e geraram laços e afectos. Por isso somos
Sísifos com as pernas escanchadas sobre o oceano, apostados em secá-lo e unir
as suas margens.
Estava em Cabo Verde quando Portugal jogou com Angola. Alegrei-me com a
vitória, mas não entrei em excesso de festa e euforia. Talvez os angolanos
precisassem mais do que nós de ganhar para porem uma pincelada de alegria em
cima da espessa camada de agrura e incerteza que cobre o seu dia-a-dia. Para
Angola vai, pois, uma saudação de estima e apreço pelo feito realizado, tal
como a minha profunda sintonia com o entusiasmo que varreu o povo angolano.
Em Cabo Verde senti a identificação com Portugal. Ela mantém-se viva, apesar
das vicissitudes da política e do poderoso cortejo de interesses económicos que
tudo fazem para destruir laços antigos e, em seu lugar, colocar outros mais
superficiais e surdos à voz dos afectos. A nossa Selecção também é a de muitos
cabo-verdeanos, mas o Brasil também conquista cada vez mais corações naquelas
paragens. Este facto dá-me satisfação, por ser prova insofismável de que a
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa tem raízes fundas no sentir dos
povos que a perfazem. Ela é uma realidade bem mais sólida e visível nas
atitudes das pessoas do que no cenário político.
Igualmente de Goa, do Brasil, Timor e outras bandas recebi testemunhos da
intensa comunhão lusófona e do apoio activo às selecções do nosso idioma. Foram
deveras comoventes os telefonemas que chegaram de Goa, de Manaus, de Porto
Alegre, de São Luís do Maranhão, de São Paulo e do Rio de Janeiro, a transmitir
a corrente de solidariedade, quer no início, quer após os jogos. Nos locais
mais recônditos do globo havia bandeiras do Brasil e de Portugal a ondular ao
vento do amor, da veneração e admiração. E erguia-se no ar a chama
resplandecente da alma lusófona, grávida e acrescida de sonho e futuridade.
O nosso lugar certo e natural é portanto na imensidão lusófona. É nela que
podemos encontrar arrimo e lamber as feridas provocadas pelas mordeduras dos
canzarrões que defecam no Mundo. Por isso mesmo é que me dói ver responsáveis
políticos, inclusive na área desportiva, exibirem um ar de riso desdenhoso
quando se fala na lusofonia e na sua comunidade. A cara dessa gente não engana;
a sua alma tem os ferros das ganadarias dos mares do norte. Viva o Portugal
multicolorido! Viva a pátria lusófona!
5. Como disse atrás, estive recentemente no meio do Oceano Atlântico, em Cabo
Verde. Ao contemplar aquelas ilhas e o esforço titânico das suas gentes para
dobrarem o destino e a rudeza das circunstâncias, dei-me conta de que não
podemos ser todos iguais; a dimensão telúrica do local do nascimento condiciona
o ser e a obra das criaturas. A grandeza da alma e da autenticidade e ternura
humanas que se derramam na sua face. Realmente a gente de Cabo Verde é
incomparável no tamanho e limpidez da alma e do coração, dos sonhos, do afecto
e generosidade, da alegria de dar, de ser fraterna e de se sentir lusófona.
Aberta ao mistério, à fé e ao milagre da vida, faz brotar das cinzas e fragas
vulcânicas as plantas, flores e frutos que incendeiam de riso, harmonia e festa
o cântico sofrido e magoado da existência. Na falta de água, rega a seca e o
chão com lágrimas de saudade e emoção.
Isto leva-me a considerar irrelevantes as razões e o teor deste texto. Talvez o
devesse deitar fora e escrever de novo. Eis uma sugestão para algo mais lato e
abrangente: para recomeçar o texto da vida e reinventar as margens que o seu
curso deve seguir. Afinal a vida é uma viagem; é nesta que a aprendizagem
acontece e a pessoa amadurece. O saber vem-nos do sabor que a viagem oferece.
Estamos e somos em trânsito, num mar salgado e fundo de vivo encantamento e
ácida desilusão.
Cabo Verde e o exemplo, a música, a fé, a persistência e a diáspora das suas
gentes vão comigo até ao fim da viagem, envoltos na toalha da memória doce e da
sentida gratidão. Bem hajam!
1
BLOOM, Harold (2004): ONDE ENCONTRAR A SABEDORIA? Editora Objetiva Ltda., Rio
de Janeiro.
2
TORGA, Miguel (2002): Ensaios e Discursos. Círculo de Leitores.
Faculdade de Desporto da Universidade do Porto
Rua Dr. Plácido Costa, 91
4200-450 Porto
Portugal
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