Ensaio sobre a cegueira: danos colaterais, mentiras e perversões
Ensaio sobre a cegueira: danos colaterais, mentiras e perversões
Jorge Bento
Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.
(Livro dos Conselhos, in: Ensaio Sobre a Cegueira, José Saramago)
A liberdade, Sancho, não é um pedaço de pão.
Miguel de Cervantes, 1547-1616
1.Nos últimos anos, nomeadamente durante a invasão do Iraque pelos EUA, entrou
no nosso vocabulário uma nova e esquisita terminologia, a propósito de algumas
baixas nos palcos da guerra. Trata-se dos putativos danos colaterais,
ocasionados, na maioria dos casos, por fogo amigo, querendo com isso dizer que
são secundários e provocados sem intencionalidade, mas antes por acaso, por
fatalidade ou por erro, como se fossem uma consequência lamentável, porém não
imaginada e premeditada. Logo são desculpáveis, devendo portanto ser
desvalorizados, ignorados e subestimados. No entanto sobejam razões para
suspeitar que o recurso a tal terminologia e a invocação do argumento nela
contido têm por objectivo negar ou encobrir a cegueira ética, condicionada ou
deliberada. Por isso temos o direito de desconfiar da bondade' da expressão; e
temos a obrigação de pôr em causa aquilo que ela esconde, a começar pela sua
refinada desfaçatez e hipocrisia. [1]
Acresce que os teatros bélicos da actualidade não são todos feitos de aviões,
de bombas e tanques à vista. As formas da guerra são diversas, umas manifestas
e outras camufladas, sub-reptícias e bem mais funestas. O campo de batalha está
hoje em toda a parte, impulsionado pela lógica' e pelos interesses de um
mercado e negócio que não são nada ingénuos ou inocentes; sustentam-se
precisamente no avolumar crescente de vítimas e danos colaterais, não
negligenciáveis, mas, ao invés, contabilizáveis por serem o índice evidente do
lucro e sucesso obtidos.
A linguagem política desta era justifica a acusação de George Orwell; afigura-
se destinada a fazer com que as mentiras soem a verdades, os crimes e atropelos
à lei e à moral pareçam actos respeitáveis, louváveis e confináveis no acervo
dos direitos, garantias e liberdades individuais, enaltecedores e afirmativos
da livre iniciativa. Deste modo a política' (ainda merecerá este nome?)
tornou-se uma tragicomédia sem fim e sentido entre montes de meias-mentiras
(que jamais chegarão a ser meias-verdades!), de omissões propositadas e
maldosas e de intervenções conflituantes e exacerbadas, imprópria para gerar
consenso na denúncia das aleivosias intencionalmente maquinadas e perpetradas
pelo modelo social vigente. Num contexto de relativismo ético e legal, os
principais políticos e interventores mediáticos surgem apostados em cantar as
virtudes da versão prevalecente do mercado, em branquear as suas perversões e
esconder que os danos colaterais são calculados, programados e produzidos de
modo absolutamente objectivo, frio e racional.
Sejamos ainda mais claros e assertivos, sem rodeios na linguagem e sem medo das
palavras e posições: a mentira e a propaganda políticas e mediáticas visam a
conformação total e abrangente de todas as esferas da vida humana a modelos de
organização e funcionamento favoráveis e indutores da produção, em larga
escala, de vítimas ou danos colaterais. Estes são a expressão real e fidedigna
das vantagens e dos resultados almejados e conseguidos com actos intencionais.
Mais ainda, a produção de danos colaterais, abandonados e acumulados ao longo
da trilha do progresso triunfante do mercado neoliberal e financeiro,
transformou-se numa espécie de filosofia-padrão que inspira, irriga, ordena e
baliza o discurso apologético das reformas em todos os campos da actividade.
São o alvo a atingir, o fim procurado, pouco ou muito encoberto ou manifesto, o
fio condutor e norteador das estratégias e medidas. Onde eles não aparecerem em
número significativo, aí estamos perante um caso de falhanço, de desvio e
quebra da norma reguladora do funcionamento da sociedade nos nossos dias.
Os danos colaterais vêem-se em todo o lado e em todos os sectores, já que tudo
se encontra sujeito às receitas impostas pela trama do paradigma produtivista
neoliberal: são as pequenas e médias empresas que não resistem ao garrote dos
potentados do dinheiro; são as editoras e livrarias, as casas do mais variado
comércio obrigadas a fechar portas por não lograrem competir com as grandes
superfícies; são as unidades de prestação de serviços, bem como as
universidades e faculdades de menor dimensão, sem tamanho para os arautos e
reféns de uma gestão de bitola curta e de vista míope; são os clubes
desportivos locais, regionais e nacionais, incapazes de cumprir as exigências
monetárias ditadas pelas circunstâncias; são os ludibriados pelas fraudes dos
banqueiros que contam com a cumplicidade dos políticos e a protecção de um
sistema judicial feito por encomenda; são os cidadãos com salários em atraso ou
reduzidos e com trabalho aumentado, os desempregados, os diplomados sem
expectativa de trabalho decente, os emigrantes ilegais, os frágeis, os pobres,
os sem-tecto, mendigos e pedintes, os adolescentes avessos à escola, os gangs
de jovens, os ladrões de rua e viciados em droga; são, enfim, os que não entram
no topo da pirâmide cada vez mais estreito, ocupado só pelos ricos e poderosos,
definidores do que conta e vale.
Todos são marginais e pertencem ao mundo subterrâneo, à escuridão nebulosa e
sem forma que envolve os que caem fora da hierarquia e ordem vigentes. Todos
são danos colaterais calculados e intencionais, uma sub-classe sem papel
social, falhada e inútil, que nem sequer atinge o estatuto de sócio menor desta
sociedade estribada na aldrabice e insensibilidade. Não têm valor de mercado; e
por isso não recaem sobre eles os olhares do apreço e consideração, da
sensibilidade desperta e inquieta. Não contam; são coisas ou ainda menos. Será
deturpação, exagero ou ficção? Antes fosse!
2.Se olharmos em redor e prestarmos a devida atenção, veremos que a nossa era
está enredada numa teia de manipulações e mistificações, demências e mentiras.
Este ambiente crepuscular e de limbo, despido de inteireza, nobreza e
hombridade, em que habitam os princípios e valores, [2] é propício a que
aprendamos, como diz, Arnaldo Jabor, de cabeça para baixo, a partir do que é
negativo e execrável, porque os canalhas são mais didácticos que os honestos.
O canalha ensina mais ( ) As tramóias e as patranhas de hoje são deslavadas;
não há mais respeito pela mentira. Está em andamento uma revolução' ( ) na
cara da população com o fito de nos acostumar ao horror. Nunca se aprendeu
tanto de cabeça para baixo! Aprendemos que a corrupção, a farsa e demais
iniquidades não são um desvio' da norma, um pecado ou crime; são a norma
mesmo, entranhada nos códigos, nas línguas, nas almas ( ) Aprendemos a mecânica
da sordidez; a técnica de roubar o Estado, a maneira de fazer esgotos à flor
da pele, orgasmos e o emocionante sarapatel entre o público e o privado.
Querem nos acostumar a isso, mas poder ser (oh Deus!) que isto seja bom:
perdermos o auto-engano, a fé. Estamos descobrindo que temos de partir da
insânia e não de um sonho de razão, de um desejo de harmonia que nunca chega.
[3]
Até que enfim ' acrescenta Arnaldo Jabor ' nossa crise endémica está sujamente
clara e nos mostra uma prodigiosa fartura de novidades imundas, oferecendo
temas deliciosos para teses de doutorado sobre nós mesmos!
Obviamente no desporto - notoriamente no futebol - também se mente. Mas ele é,
sobretudo, expressão do quanto nos mentem os protagonistas deste tempo e do
quanto assenta na obscenidade e no mais descarado fingimento a força que os
sustenta.
Sim, os sintomas da alienação e loucura reinantes nesta era foram nítidos nas
aquisições do Real Madrid, na enchente do seu estádio para a apresentação de
Cristiano Ronaldo, tal como na exploração mediática do evento e nas absurdas
cláusulas de outras transferências. Porém são outros os principais sujeitos da
cegueira e insanidade. São os que fazem com que a utopia da democracia se
transforme em dura desilusão. Os que usam todos os ardis para encobrir a
indecência do modo de ser e estar, de exercer o poder para impor, por via
legal, decisões abjectas e reprováveis pela moral. Os que alargam o fosso da
cada vez maior separação entre a lei e a ética. Os que arrotam, medram e
respiram bem na palhaçada hedionda e pérfida da quadratura do círculo de
interesses sujos que nos governam. Os abjectos corruptos e os seus aliados,
defensores e encobridores. Os desavergonhados autores e beneficiários da
promiscuidade entre a política e os negócios. A mixórdia asquerosa de
mentirosos, negadores, vigaristas, defraudadores, trampistas, intrujões,
chupistas, golpistas, tartufos e embusteiros. Os amorais que reclamam para si
privilégios, intocabilidade e honorabilidade e espezinham a dignidade e
humanidade dos outros. Os que tratam as pessoas como meras e rebaixadas coisas
e lhes roubam os requisitos de uma vida própria. Os prepotentes que condenam os
trabalhadores por conta de outrem, os humildes e pequenos ao esbulho dos seus
direitos e ao infortúnio e desdita. Os que pairam acima do desencanto e
desolação desta época putrefacta e se recusam a ver o chão juncado de danos
colaterais. Os que censuram, perseguem, proíbem, reprimem ou vetam o pensamento
divergente, ditam sempre mais exigências, obrigações e restrições para os
outros e para si desenham um mundo de fraude, mentira, impunidade, deleite e
regabofe. Os insensíveis e indiferentes ao sofrimento alheio, avessos a
reconhecer nos outros a condição de seus semelhantes. Os que se situam a si na
casta dos entes superiores e aos ignorados restantes na sarjeta dos dejectos
inferiores.
Esta choldra, que de tudo faz negócio imundo, cria um asfixiante vazio ético e
moral, obrigando-nos a procurar o oxigénio existencial em qualquer sítio, onde
a nossa fome de ilusões possa ser aquietada e sobreviver. É por isso que nos
voltamos para o futebol. Para nos encontrarmos com muita gente que sente como
cada um de nós e se vê desmotivada para expressar indignação e revolta perante
o desvario que marca o nosso destino e ignora as aflições e aspirações, dramas
e agruras das pessoas de bem, honradas, sérias e laboriosas.
Vamos ao futebol, como quem procura pão para a boca. Por isso ansiamos sempre
pelo começo das novas temporadas. Nós, os adeptos, investimos nele a paixão não
correspondida na política e nas actividades que a deviam merecer, por serem
determinantes da nossa vida. Devemos salvá-la e alimentá-la, para que não se
perca e possa ser mobilizada para pleitos nobres e transcendentes. Para tanto o
futebol não devia cometer traição; mas, infeliz e amargamente, está a trair
nesta hora, pela mão dos seus agentes e branqueadores mediáticos.
3.A propósito dos atropelos que abalroam e ferem o sentido de humanidade e
pervertem a razão na hora que passa, podemos certamente apontar o contexto
sócio-político mais lato para justificar a avaliação negativa e o nada animoso
estado de espírito; mas é bom observar o terreno que pisamos na Universidade e
no dia-a-dia das respectivas organizações, porque reproduz os mesmos estigmas e
sintomas.
Garcia Arocha, Reitora da Universidade Central da Venezuela, disse recentemente
numa entrevista ao jornal El Universal, a propósito de uma lei voltada para o
controlo do sector universitário através do termo de eleições nas Faculdades,
que as Universidades jamais vão estar ao serviço de nenhum governo. [4] A
expressão jamais vão estar vale como renovação do imperativo que obriga a
Universidade: não estar ao serviço de nenhum governo, de nenhum sistema
ideológico, de nenhum poder, seja ele sagrado ou profano.
Assim devia ser. Mas não está sendo assim e, ao fazer esta acusação, não tenho
o pensamento fixo na Venezuela ou num tempo passado. Estou a pensar no intento
de domesticação das Universidades europeias que não tem parado de crescer desde
que Margaret Tatcher meteu mãos à obra e apadrinhou o processo. Mais, tenho
sobretudo presente a política oficial em vigor e o rosário de medidas,
apregoadas como reformas' (p. ex. o RJIES e a sua inspiração na doutrina do
centralismo e do neoliberalismo), que tem atingido a universidade portuguesa.
E, ainda mais concretamente, não sou cego à orientação' imprimida, nos anos
recentes, a instituições universitárias, alinhando-as de modo incondicional
pelo reformismo governamental (através da aceitação acrítica do RJIES, do
método de eleição do Conselho Geral e da composição deste, da subtracção de
representatividade nos órgãos de topo às unidades orgânicas mais pequenas, da
nomeação do Reitor e dos Directores das Faculdades, do regime fundacional e do
regulamento dos servidores não docentes); e colocando-as, de maneira mais ou
menos manifesta ou encoberta, nos trilhos neoliberais, obsoletos, imbecis e
imorais, como se na heterodoxia da caduca cantilena de tal doutrina houvesse
mágicas capazes de sublimar os estragos provocados pelas forças e interesses do
mercado. No fundo há como que um envernizamento das suas teses visando
ressuscitar uma ideologia responsável pela destruição das instituições de
solidariedade e dos laços sociais, pelo descalabro moral e económico e pela
perda de sensibilidade e responsabilidade em relação ao outro.
Sim, também se mente, pratica perversão e comete traição na Universidade.E
muito! Quandodela se assenhoram admiradores, filiados ou representantes de
corporações e oligarquias alinhadas pelo pensamento neoliberal dominante.
Quando esses agentes, animados por uma mentalidade e vocação primárias,
obstinadas,fanáticas e jihadistas, porfiam em implementar, obsessivamente e a
todo o custo, aquele pensamento na sua versão mais crua e dura. Ou seja, quando
a missão essencial da Universidade é assim diminuída e rebaixada à função
reprodutora do senso comum actualmente vigente ' um estranho, mas real e
gravoso paradoxo! Quando, por essa via, a Universidade é festiva e
enfaticamente conformada à lógica empresarial e à panóplia de negócios próprios
de um supermercado. Quando tem que vender cursos e cursinhos por grosso e
atacado, a toda a hora criados, modificados e adaptados às ordens do mercado,
como quem vende e muda de camisas ou sapatos. Quando isto se inscreve no
programa e centro das suas obrigações cimeiras! Quando, através dos mecanismos
e medidas da subvalorização e depreciação avaliativas, abdica de contribuir
para a vida criativa, espiritual, intelectual, ética e moral dos cidadãos e da
sociedade e para a reflexão acerca das vias em que esta transita. Quando isto
acontece e está a acontecer cada vez mais, o ambiente torna-se deprimente,
inquietante e irrespirável. E é por conseguinte difícil, para não dizer
impossível, desmentir esta tese de José Saramago: A mentalidade antiga formou-
se numa grande superfície que se chamava catedral; agora forma-se noutra grande
superfície que se chama centro comercial. O centro comercial não é apenas a
nova igreja, a nova catedral, é também a nova universidade.
Portanto igualmente nas várias frentes e vertentes da Universidade se vão
amontoando os danos colaterais da estagnação, regressão e arcaísmo do
pensamento e da razão. Sobre ela abateu-se uma brutal e encarniçada cruzada
destruidora da sua autonomia e liberdade, ardilosamente disfarçada sob um
espesso manto de opacidade, de oportunismo, cinzentismo e golpismo que
paulatinamente lhe toldam o espírito e olhar, mudam e substituem o nome, tolhem
os passos, desfazem a alma, desfiguram o rosto, calam o clamor da indignação e
do protesto, congelam o ânimo e a vontade de acção e intimam à passividade e
resignação.
Tudo o que releva do humano está a perder nela o lugar central, o seu habitat
natural; está a ser atirado para o caixote das coisas inúteis e prejudiciais,
carecidas de remoção, por serem lixo contaminador, pernicioso e perturbador do
novo' regime jurídico e fundacional. Também nela as causas, os ideais,
princípios e valores de teor humanista são hipotecados e calcados com a bota
escura da prepotência e pesporrência neoliberal. Também nela se faz ouvir, tem
assento e dá conselhos e ordens a voz do dono deste tempo de mercado financeiro
depravado e apodrecido, cego, mudo e surdo às dimensões mais genuínas e
relevantes da dignidade humana. Também nela o vírus da nova gripe A (H1N1)
alastra e sofre metamorfoses!
A desmontagem da Universidade, como instância de referência para balizar os
caminhos da ascensão do humano, está em curso, tal como a extinção dos mestres
eminentes na generosidade das ideias e na palavra limpa e flamejante, críticos
e lúcidos, frontais e cristalinos, criadores e idealistas, projectistas e
anunciadores do futuro. Rareiam e definham nela os intelectuais contra-poderes
e livres-pensadores, enquanto sobem de tom os doces e pios avisos e as amigas e
calorosas sugestões' e insinuações para que os inconformados e renitentes' às
inevitáveis' e necessárias' mudanças sejam realistas', não se prejudiquem,
não respeitem muito séria e sinceramente a consciência, dêem mostras de
abertura', flexibilidade', bom senso' e pragmatismo', resignem e se
adaptem, vendam e desqualifiquem, aquietem e contentem com o papel de castiçal
e enfeite das mesas do poder. [5]
4.A fidelidade ao optimismo impõe a resistência. É isto que manda perguntar
pelo substituto da Universidade na missão de elaborar e levantar símbolos,
condições, pressupostos, advertências, proibições e restrições como setas
indicativas das direcções e roteiros de bom senso e sensatez a tomar pela
sociedade. Numa altura em que é fragoroso o clamor do mundo por orientação,
face à iminência e gravidade do declive e naufrágio, a Universidade acomoda-se
a forças que desvalorizam e querem riscar essa tarefa na ementa do novo
figurino.
Obviamente a Universidade não tem a possibilidade, nem deve cultivar a
pretensão de ser uma bússola e traçar um rumo para o presente e futuro da
sociedade. Mas isto não significa que deva aceitar os destinos impostos pelo
abjecto e sórdido sistema financeiro, [6] pelo mercado e consumo de matriz
neoliberal ou que deva incensar e venerar os líderes desses campos e ajoelhar-
se perante outros interesses, poderes e forças de idêntica natureza. Ela tem a
obrigação de não encobrir o desconcerto e o constrangimento que tomaram conta
do mundo, de não se acocorar perante os seus autores, de dar nome aos bois em
todas as coisas, de pôr a nu e discutir todos esses caminhos e intuitos,
expostos ou ocultos, e de alertar para os perigos que eles acarretam para a
maioria das pessoas. Deve mover-se pela causa do bem público e não se
mancomunar com ninguém estranho a esse horizonte.
Numa conjuntura em que são patentes e deveras sentidas as consequências da
desindustrialização e esta lega como herança o desemprego estrutural e
permanente para uma fracção crescente da população, é correcto e decente que a
Universidade se remeta ao silêncio? A Universidade não tem nada a dizer, quando
estamos a assistir ao falhanço clamoroso de um tipo de acumulação desenfreada e
gananciosa - ainda por cima hipocritamente defendido em nome de balizas
pretensamente ancoradas na ética do trabalho e noutras referências morais'! -
que produz ininterruptamente uma ampla sub-classe em contínua expansão e
diversificação de indivíduos empurrados para as franjas de um modo de vida sem
valores comuns? Não lhe compete pronunciar-se, quando isso é o produto
colectivo principal da actividade e do parasitismo do ignóbil sistema
económico-financeiro?! Quando parcelas enormes da população são ignoradas e
destinadas à exclusão, sem nenhum tipo de estatuto de sujeitos e, para cúmulo,
não têm sobre isso qualquer controle ou influência, nem tampouco voz, então a
Universidade cala-se?! [7
]
Numa altura em que a política foi objecto de privatização, isto é, não está
mais ao serviço da comunidade, mas foi colocada às ordens de lobies e grupos
poderosos, delapidadores e usurpadores da coisa pública (eis uma triste
constatação decorrente da fria e objectiva examinação dos factos, aqui e em
toda a parte!), quem levanta a voz da razão pela gente que engrossa a legião
dos danos colaterais? Quem acenderá o lume da inquietação, descongelará a
frieza e acordará para esta medonha realidade a sensibilidade adormecida da
sociedade' bem sucedida, cómoda e principescamente instalada, dos mandarins e
nababos, dos ricos e abastados, afogados na diversão? Quem se insurgirá em face
do largo espectro, sempre em crescimento, de indivíduos incapazes e proibidos
de circular nas avenidas do mercado de consumo e mantidos fora da fronteira e
da norma que esta traça?
Perante o embuste, propalado de forma cavilosa, de que o presente modelo de
estruturação' social oferece a cada um a possibilidade de reger a sua vida e
de escolher o que há-de ser e de que o fracasso, a pobreza, a marginalização
etc. são apenas o corolário de escolhas erradas, de aprendizagens, competências
e habilidades não adquiridas, de responsabilidades não assumidas e de vontades
não exercidas, quem apontará e desmontará o dolo e a pulhice, as petas e tretas
de semelhante e despudorado sofisma?
Quem questionará a imoralidade e falácia da modernização inaugurada por
Margaret Thatcher e estendida a todos os sectores pelo zelo modernizador' dos
trabalhistas ingleses e dos seguidores nos outros países, incluindo o nosso, da
profética e tão apregoada terceira via? Para todas as reformas' foi dada a
explicação não há alternativa, que tudo explica' e tudo e a todos desculpa,
para calar a necessidade de se explicar e a impossibilidade de se justificar. E
para tentar tornar invisível a mão suja do mercado neoliberal e das tropas
escuras que o animam. Lá fora e cá dentro, todas as leis e medidas ditas de
modernização' e reforma' têm servido activamente o fito da decomposição e
fragmentação contínuas dos vínculos sociais e da coesão comunal e do triunfo
da ordem do egoísmo e do consumismo desenfreado sobre a economia social e a
sociedade moral. [8]
(Abra-se aqui um parêntesis para integrar o texto no contexto. O termo
reforma' significa uma mudança ou alteração para melhor. Todavia o afã
reformista tem tentado arrasar tudo quanto encontra na sua passagem e que não
se encaixa no ideário neoliberal. Para tanto entregou-se à produção de uma
parafernália de leis, por grosso e atacado, para dar a impressão de uma
transformação em grande escala. [9] Abatem-se políticas sociais para montar
campos de negócio em todos os sectores. Eis aonde chegamos: a política deixou
de estar ao serviço do interesse público e passou a ser mandada pelos patrões
dos negócios. Não é a economia quem mais ordena; é tão-somente o desprezível
sub-mundo da especulação financeira, das negociatas e afins.
Em favor dessa gula foi necessário produzir pacotes de leis que diminuíssem a
participação e abertura democráticas e acentuassem o centralismo e o controle
burocráticos, em todas as áreas. O poder está cada vez mais concentrado nas
oligarquias e no cume das instituições. À imensa maioria dos indivíduos é
destinado o papel de figurantes num filme com enredo e final ardilosamente
definidos muito acima e bem longe deles. O corporativismo, o lobismo, o
populismo e o caudilhismo estão vivos e sadios; venha o diabo e escolha).
Fechado o parêntesis, regressemos à indagação. Quem falará dos indivíduos como
portadores de direitos e não apenas como contribuintes e entes de deveres? Quem
advogará e dará o exemplo de aplicação do estado social, extensivo a toda a
comunidade, como amenizador da desventura individual? Quem clamará pela
reconversão desta sociedade - cada dia mais abstracta e fictícia ' numa real
comunidade sentida e vivida que substitua a ordem do egoísmo geradora de
uma atmosfera de desconfiança e suspeita mútuas, pela ordem da igualdade que
inspire confiança e solidariedade? Quem despertará o interesse no benefício
comum, numa rede de instituições compartilhadas em que se pode confiar, como
um seguro abrangente e capaz de providenciar a defesa esclarecida contra os
horrores gémeos da miséria e da indignidade e contra a brutalidade da
desesperança e a ignomínia da infelicidade? [10]
Sem esse seguro, sem esse amparo e protecção, os impiedosos desafios da vida
não funcionam como a oficina em que se forjam a autoconfiança, o senso de
dignidade humana e a auto-estima. Sem ele, não se pode esperar das pessoas a
disponibilidade para o engajamento que alimenta a democracia. Sem ele, a
democracia perde a razão de ser, afunda-se e destrói-se em todo o regime
político que não seja ou recuse ser um estado social.
Dito de outra maneira, é o estado social que sustenta a democracia e defende a
sociedade dos danos colaterais', fatalmente ocasionados e multiplicados, sem
tal controle e garantia, pelo mercado de consumo neoliberal. Zygmunt Bauman
explicita assim a interdependência entre os direitos políticos e os sociais:
Sem direitos sociais para todos, um número grande e provavelmente crescente de
pessoas vai achar que seus direitos políticos são inúteis ou indignos de
atenção. Se os direitos políticos são necessários para estabelecer os direitos
sociais, estes são indispensáveis para manter os direitos políticos em
funcionamento. Os dois tipos de direito precisam um do outro para
sobreviverem. [11]
Não há outro método para evitar a erosão da solidariedade humana e o
desaparecimento dos sentimentos de responsabilidade ética. [12] Sem estado
social a ideia de comunidade queda-se ao nível da abstracção e não conhece o
solo da sua concretização institucional. [13]
Ou seja, a democracia inspira-se e realiza-se na concretização do estado
social, visando atender as fragilidades dos mais fracos; se renunciar a este,
renuncia a si mesma, torna-se dispensável e inútil. Por isso mesmo importa
ressuscitar o significado original, inicial e essencial da democracia', que
fez dela a bandeira, o fervor, o grito, o entusiasmo e o lema da batalha com
que os indivíduos explorados, excluídos e sofredores lutaram por direitos
políticos e sociais.
Defender a democracia e avivar-lhe as tonalidades sociais não será tarefa da
Universidade? Julgo que sim e julgo também que uma universidade atenta contra
isso ao privilegiar os fortes (sejam eles unidades orgânicas ou pessoas), ao
restringir os direitos dos seus servidores, nomeadamente os não docentes,
tratando-os como sujeitos menores e como se fossem estranhos e até nocivos ao
seu bom funcionamento. No mínimo, exemplifica como se colabora na destruição da
democracia e do congénito estado social.
5.Em síntese, a Universidade parece imersa num sono, não se apercebendo do
perigo de estar a ser arregimentada e deformada. Já afloram os alicerces da sua
desfiguração como escola técnico-profissional. A ciência é desvirtuada e
despromovida a técnica e a investigação subordinada aos ditames de uma
alienante e idiota competição ou luta pela sobrevivência, destinada a alimentar
e sustentar servilmente a absurdidade consumista e voraz dos rankings,
focalizando-se nisso a sua finalidade suprema e despindo-se da inspiração
filosófica, humanista, imagética, poética, sagrada e transcendental. [14] O que
conta é o imediato e mero fazer, entendido este na acepção simplória do
operacional, desprovido do fundamento da palavra lógica e racional, ética e
estética, da consciência inquieta e vigilante acerca dos meios e dos fins, da
apetência e competência para ligar o acto e o pensamento, para intervir,
criticar e questionar, para divergir e propor opções e rupturas, tomar partido,
assumir posições e compromissos, criar e renovar utopias, ser livre e senhor. O
conhecimento de orientação, que funda o saber, o sabor e o sentido da vida, é
desconsiderado, abandonado e até combatido, ridicularizado e perseguido. Ah!,
este dano não é colateral, mas central e de proporções e ilações assaz
funestas, ainda não inteiramente imagináveis, a requerer, com todo o cabimento
e urgência, um ensaio sobre a cegueira; antes que a poeira do abandono se
adense e soterre o que teima em respirar e resistir.
A Universidade não deve pôr de lado a prudência e a lucidez de pensar a longo
prazo; nem inebriar-se com o seguidismo em moda e passar apressadamente para as
fileiras do modernismo, reformismo e do egoísmo' neoliberais, sem coração e
sem alma; tampouco deve enterrar o legado recebido como se fosse o indesejado e
pesado fardo de um passado frustrado e sem futuro. Nenhum Reitor devia cair na
tentação de lidar com ela e tudo fazer para a configurar, como se estivesse a
conjecturar e costurar o projecto de si mesmo no leito do encantamento pela
miragem neoliberal.
Esse projecto apenas vinga num clima de apatia e desencanto face à política e
de falta de disponibilidade para o compromisso e o envolvimento nos assuntos
públicos e institucionais. Qualquer cúpula universitária tem o dever de se
incomodar com esta realidade e apostar na sua alteração, em vez de tirar
proveito dela. Se o não fizer, o seu triunfo é soturno e trágico; é o das
mentes retrógradas que sempre tentaram amordaçar a Universidade, domesticá-la e
conformá-la aos seus desejos insaciáveis. Ademais não se distancia das balelas
e do arrazoado do pensamento único e vulgar do senso comum, difundido e
generalizado pela máquina de propaganda mediática, controlada e manipulada
pelos diversos poderes e correntes do mercado neoliberal. É esta a função
substantiva da Universidade? Não lhe compete elaborar um discurso de
contraponto? Compraz-se no desempenho do papel de cabo de ordens?
Contra isto a memória convida a lembrar que os golpes decisivos do avanço
social na história humana nunca surgiram do lado da submissão e sujeição aos
potentados e receitas vigentes. Questionar a ordem estabelecida, o estado das
coisas, as verdades feitas e as esparrelas e soluções montadas, propaladas e
impingidas ' eis uma peça inalienável do património universitário. A missão da
Universidade não é produzir quadros que engrossem as fileiras da demissão
cívica e do activismo do consumo' aparentemente apolítico. Produzir quadros
com as exigências, marcas e virtudes que o conceito de cidadão reclama ' isso
deve continuar a ser a sua meta cimeira.
Retomo Arnaldo Jabor: Só nos resta a praga. Meu desejo é maldizer Contudo,
além do aprumo cristão me proibir a queda nas maldições, sou um otimista
inveterado; fico procurando algo de bom em toda esta impingidela, depredação
e deprimência. Mas não espero que isso surja espontaneamente, sem a acção
correspondente. A esperança (passiva e demissionária) tem de ser extirpada
como um furúnculo maligno. Através deste escracho, pode ser que entendamos a
beleza que poderíamos ser! [15]
Assim creio que, um dia, o futuro terá outro semblante; a cerração deste tempo,
de festa e riso para uma minoria e de angústia, decepção, desilusão e
inquietude para a maioria, não durará para sempre. Para tanto requerem-se
esforços e tomadas de atitudes, visando A Implosão da Mentira, título de um
extenso poema de Affonso Romano de Sant' Anna, do qual deixo aqui o Fragmento
1:
Mentiram-me. Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente. Mentem
de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
Que acho que mentem sinceramente.
Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes. Alegremente
mentem. Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.
Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.
Sei que a verdade é difícil
e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à democracia
pela ditadura.
[1] BAUMAN, Zygmunt (2008): Vida para consumo: a transformação das pessoas em
mercadorias, p.149-190. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro.
[2] Sem valores não se pode construir nada, Lech Walesa, in: Jornal Público,
p.3, 01.09.2009.
[3] Arnaldo Jabor: Aprendemos de cabeça para baixo, Jornal do Comércio, Caderno
C, p.6, Recife, 25 de Agosto de 2009.
[4] In: Diário de Pernambuco, Recife, 15 de Agosto de 2009.
[5] Repare-se nesta deprimente constatação, que é simultaneamente uma pesada
acusação vinda de fora do terreno universitário: Tempos houve em que os
intelectuais eram verdadeiros contra-poderes. Hoje ( ), os intelectuais servem
apenas para enfeitar os poderes. ' João Pereira Coutinho, jornal Correio da
Manhã, Lisboa, 25 de Julho de 2009.
[6] A maneira como os bancos ganham dinheiro é tão simples que é repugnante,
segundo o insuspeito economista norte-americano John Galbraith (1908-2006). In:
Jornal Público, P2, p.3, 2 de Setembro de 2009.
[7] Segundo o relatório Education at a Glance, referente e 2007 e da autoria da
OCDE, o desemprego de longa duração afecta 51 por cento dos desempregados
portugueses com diploma universitário e idades entre os 25 e 34 anos. Nos
restantes países da OCDE esta taxa é de 42 por cento. (In: Jornal Público, p.
2, 8 de Setembro de 2009).
[8] BAUMAN, Zygmunt, ibidem, p.183.
[9] O ponto da situação é exactamente igual ao resumido, deste modo, por Tácito
no seu tempo (cerca de 55-120): Plurimae leges, pessima republica ' muitas
leis, péssima república.
[10] BAUMAN, Zygmunt, ibidem, p.177-178.
[11] Ibidem, p.179.
[12] Ibidem, p.181.
[13] Atente-se no modo como o Partido Socialdemocrata sueco se distancia da
política neoliberal inaugurada por Margaret Thatcher, prosseguida por John
Major e consolidada pelos trabalhistas de Toni Blair e por todos os pregoeiros
da dita terceira via. No programa de 2004 pode ler-se esta exaltação dos
benefícios da solidariedade humana e nas respectivas instituições: Todo mundo
é frágil em algum ponto do tempo. Precisamos uns dos outros. Vivemos nossas
vidas no aqui e agora, juntamente com outros, envolvidos de forma involuntária
pelas mudanças que ocorrem. Seremos mais ricos se todos pudermos participar e
ninguém for deixado de fora. Seremos todos mais forte se houver segurança para
todo mundo e não apenas para uns poucos.
O mesmo é dizer que a justiça e a solidariedade sociais, por um lado, e a
eficácia económica e a aptidão para a modernização, por outro lado, não
precisam de ser colocadas em oposição ou desacordo. Pelo contrário, como
sublinha a proposta social-democrata dos suecos, a procura da coesão social é
a pré-condição necessária para a modernização por consentimento. (Ibidem,
p.179-180)
[14] A ciência sem consciência destrói a alma, disse Rousseau (1712-1778).
(Não é isto que está a acontecer?) E Teixeira de Pascoaes (1879-1952) disse o
mesmo, de outra forma: A essência das coisas é de natureza poética, e não
científica; é isso que as espiritualiza e abeira da alma.
[15] Arnaldo Jabor, ibidem.
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