Hora de balanço
Hora de balanço [1]
Jorge Olímpio Bento
1. Este acto marca formalmente o termo de um ciclo da vida da Faculdade.
Olhamos para trás e sentimos nostalgia e saudade. E porquê? Porque foi um
período bom, de exemplar empenhamento, de inexcedível brio, de intensa
dedicação e entrega, de transbordante paixão e, exactamente por isso, de
extraordinário desenvolvimento.
Significa isto que encaramos o futuro com reservas? A resposta manda sopesar o
presente, porque só há presentes. E intima-nos a dizer que estamos a viver um
tempo de retrocesso civilizacional, de encolhimento espiritual e moral, de
atropelo dos valores e ideais humanistas, de abandono da coesão social, de
regressão do pensamento e da razão, de progressão do senso comum. Um tempo em
que as pessoas de carácter, de rectidão e princípios têm a vida mais
dificultada do que os espertos, oportunistas, trapaceiros e vigaristas.
Friedrich Nietzsche dizia da sua era, 1844-1900, o seguinte: A nossa época,
embora fale tanto de economia, é esbanjadora: esbanja o que é mais precioso, o
espírito.
O que dizer desta nossa época dessacralizada, do angustiante contexto de
desesperança e devastação do espírito? Tudo é baba sem consistência; a falta de
transcendência ética e estética turva as mentes e adensa o caos.
Há um efectivo apagão intelectual em Portugal. Ou será que o país deixou de
ter gente capaz de pensar para além da espuma da conjuntura? ' afirma e
pergunta Leonel Moura. [2]
A isto responde João Pereira Coutinho com esta deprimente, mas justa acusação:
Tempos houve em que os intelectuais eram verdadeiros contra-poderes. Hoje ( ),
os intelectuais servem apenas para enfeitar os poderes. [3]
Estas e outras citações de teor afim são trazidas diariamente à colação, na
tentativa de nos acordarem de uma letargia excessivamente prolongada. De muitos
lados surge um apelo, convidando a reagir às últimas décadas de cultura anti-
intelectual, onde a obsessão do fazer, da velocidade e da eficiência foi
exibida no espaço público como antítese positiva da reflexão, do pensamento,
das ideias. Uma assunção primária que dá que pensar, precisamente, pelo mundo
que estamos a gerar. Talvez seja, então, chegada a hora de meditar antes de
fazer. De não nos instalarmos. De pensar, caminhando.[4]
Ou seja, este tempo e as circunstâncias, que o perfazem a ele e a nós, lembram-
nos que a Universidade é o lugar, por excelência, da palavra, do dever de
romper o silêncio e de tomar posições. É o lugar onde devemos apreciar a
diferença e diversidade e sentir horror ao gorduroso odor do estábulo, tal
como proclamava Nietzsche. E onde devemos agir segundo a definição de Jean
Jacques Rousseau, 1712-1778: De todos os animais, o homem é aquele a quem mais
custa viver em rebanho.
Sim, na acrópole da Universidade é mister que discursem homens livres,
desalinhados e fugitivos, a sete pés, da irracionalidade e uniformidade da
manada. Não por teimosia ou exibição, mas por inquietude e obrigação. É nela
que o local, particular e singular incorporam o universal, abrangente e geral.
A observância deste mandamento começa por um olhar para dentro dela. Esse olhar
apurado desperta a consciência para a necessidade de reflectir e inquirir leis,
orientações, normas e regulamentos que afunilam e pervertem a missão da
Universidade, assim como atentam contra os direitos e a dignidade dos que nela
laboram.
Há que parar e questionar o frenesi reformista que por aí campeia como um culto
fundamentalista. É altura de perguntar pelo que se está a ganhar e a perder.
Ganhos vislumbram-se poucos; danos são muitos, substanciais e colaterais. Estão
em perda, sobretudo, a credibilidade e a elevação moral.
Não haverá nisto pessimismo e criticismo a mais? Há, antes, recusa em alinhar
com um optimismo que, como advertiu Voltaire (1694-1778), assenta na mania de
sustentar que tudo está bem, quando está mal, que tudo está a ser feito para um
fim melhor, quando está a servir intuitos inconfessos.
Mas são de rejeitar as reformas? No mínimo não se pode pactuar com a
deturpação do verbo reformar'. Reformar não é destruir. Ao invés, é reavivar,
melhorar, reforçar, aumentar e transmitir a herança recebida: o apego a
princípios e valores, ao saber, à racionalidade e reflexão, ao debate e uso do
pensamento, ao cultivo da liberdade, da justiça, decência e ética, ao avanço do
bem comum, da solidariedade e do direito a uma vida digna em todas as idades, à
avaliação e reconhecimento do mérito, à rejeição do fácil e falso, das ideias
feitas, da manipulação e alienação, do populismo e demagogia.
A ênfase renovadora deve cuidar desta herança, de a aprimorar e não de a
debilitar e sepultar. A Universidade tem uma longa história de farol da
liberdade, ocupada e incumbida de clarear caminhos; não será agora que vai
capitular e tornar-se cúmplice da escuridão e da passividade.
Para tanto é desejável que, nesta hora e antes de tudo, a Universidade não
abdique de ser res publica, tenha autonomia e voz, reflicta acerca do que já é
e do mais que quer ser, das coisas' intangíveis e da medida dos valores
humanos e universais em que se revê. Que, em primeiro lugar, fale dos fins, da
vocação e incumbência que lhe toca cumprir. Que não seja omissa na questão da
qualidade dos quadros que lhe cumpre formar.
Deve elevar-se o estudante à altura do saber e da inteligência, da ética e da
estética? Ou deve o ensino descer ao nível da ignorância e estupidez, da
boçalidade e incivilidade, da rasura e indigência cultural?
As Universidades estão obrigadas a formar pessoas cultas, que se meçam e
sobreponham ao seu tempo. A formar quadros realmente superiores: Ilustrados e
iluminados para exceder a vulgaridade e a banalidade, hermeneutas capazes de
inteligir a sua área e de a situar no plano da vida e no contexto sócio-
cultural, à altura do seu tempo, disponíveis para viver a sua inteligência e
para viver a partir da faculdade maravilhosa que é a de perceber a própria
limitação.
2.A gente só enxerga o que está preparada para ver ' diz e bem Bernardo
Carvalho, escritor brasileiro. E Alvin Tofller adverte que é curial pensar nas
coisas grandes, quando fazemos as pequenas.
Ora é duvidoso que o paradigma concebido por Bolonha prepare para ver para além
do óbvio. É legítima a suspeita de que não ajuda a enxergar o mundo dominado
pela obsessão da instantaneidade, pelo espectáculo do instantâneo. Está
apostado em somar aprendizagens e conhecimentos, mas parece fazê-lo subtraindo
a consciência.
Por este caminho, a formação desfigura-se em instrução, pior ainda, em má
instrução. A formação, no conceito clássico, subentende a capacidade ou
competência para diferenciar, distinguir, qualificar as coisas e os factos. A
instrução'anestesia e mostra tudo igual, como um alcoólico a quem todas as
bebidas sabem ao mesmo, conquanto tenham álcool. Nesta conformidade a massa
bolonhesa torna os indivíduos gordos e obesos de conhecimentos, mas não repara
que eles podem ficar magros e até esqueléticos em termos de ética, sabedoria,
lucidez e humanidade.
A instrução em vigor, digamo-lo sem rodeios, inspira-se nos modelos de sucesso
político, mediático e financeiro em alta, gera anorexia ética e moral,
unilateralidade no pensamento e acção. Contribui para engrossar o caudal de uma
conjuntura, rotulada por Hans Küng, da moral perdida ou desmoralização ou
desorganização moral. E corre o risco de resvalar para a produção de um novo e
inquietante tipo de sujeitos: instruídos, mas dependentes e timoratos,
receosos, assustados, manipuláveis. Deste jeito o tipo de instrução
oficialmente consagrado
Degrada a pessoa para capital humano,
Favorece a obediência cega,
Garante um certo entontecimento no interesse da funcionalidade.
É, pois, imperioso advogar uma formação' de sinal contrário. Que celebre
matrimónio ou união de cumplicidade e reciprocidade com a cidadania e
liberdade. Uma formação que não favoreça a indigência espiritual, que estimule
o progresso intelectual e moral, que capacite a pessoa a
Ver o mundo com outros olhos,
Tomar decisões fundamentadas,
Agir com responsabilidade,
Questionar o sentido das coisas e dos factos,
Fomentar a empatia, solidariedade e preocupação com os outros,
Assumir a coragem para dizer NÃO,
Estabelecer uma ordem consigo e com o mundo.
3.É próprio da natureza das coisas que elas sejam diferentes umas das outras.
No entanto para todas elas está a ser hoje recomendado o mesmo figurino. E
assim surgem receitas para configurar a Universidade segundo os ditames de uma
visão empresarial e gestão industrial, com alcance curto e distorcido. É
patente a tentação de absolutizar nela o paradigma produtivista, de a querer
proletarizar, de proletarizar e despir de estatuto intelectual os seus
docentes. Se não tomarmos o devido cuidado, o SIADAP ' Sistema Integrado de
Gestão e Avaliação do Desempenho na Administração Pública que, com o seu
inominável regime de cotas, trata os funcionários como objectos sem alma e
sentimentos, sofrerá uma ligeira metamorfose para avaliar os docentes com uma
parafernália de instrumentos que modificarão o cerne, a essência e o alvo do
seu exercício profissional. Os enormes desperdícios de tempo e o concomitante
desvio de energias para atender os requisitos da avaliação, vão irremediável e
radicalmente alterar as funções e metas fulcrais dos professores.
Até agora vigorava um sistema de avaliação que, não sendo perfeito, se centrava
no essencial da actividade e profissionalidade dos docentes, no ethos da sua
autonomia e liberdade científicas e criadoras. Doravante espreita o perigo do
periférico e do secundário passarem a central, com sequelas funestas para as
dimensões intelectual, cultural, espiritual e humanista da docência
universitária.
Face a este quadro impõe-se avivar no conjunto dos deveres o de dizer NÃO à
adesão acrítica, demissionária, passiva e silenciosa a tudo quanto atente
contra a dignidade das pessoas e o clima sadio das instituições, a tudo quanto
promova a queda no absurdo.
O percurso dos docentes universitários está sobejamente balizado por
avaliações. Pode ser melhorado, mas não precisa da introdução de obstáculos
destinados a desviá-los do seu itinerário lógico e principal e a enredá-los em
empecilhos desvirtuadores da sua condição. A não ser que se assuma
explicitamente que o docente universitário deve ser pura e simplesmente
equiparado ao operário ou proletário de uma linha de montagem, tendo que
registar continuamente o número dos parafusos e artefactos produzidos. E que se
defenda uma competição sem limites que roube o lugar à sedução pela beleza no
relacionamento e trato humanos.
Ademais uma avaliação geradora de conflitualidade, animosidade, desconfiança e
falta de lealdade não cria um bom ambiente. Logo atenta contra a dita e
almejada produtividade, até porque há nela factores de sobra potenciadores de
uma pluralidade de consequências graves em vários campos, a saber:
· A saúde física e mental dos implicados,
· O relacionamento e trato humanos,
· O modo de nos vermos e contemplarmos os outros,
· O funcionamento das instituições,
· O significado e sentido da existência,
· Os princípios e valores estruturantes da cultura, da sociedade e da
pessoa,
· A participação da Universidade na destruição do Humanismo e na
instauração de um modo de vida assente no cinismo, na insanidade e no desvario
infernal.
Não é de bom senso aderir a coisas que detestamos e reprovamos. Se elas nos
suscitam depreciação é porque não são boas. O inferno, tanto quanto o
concebemos, não é coisa boa; por isso mesmo não queremos ir para lá, tudo
fazemos para evitar a queda nesse abismo.
4.Contudo hoje é um dia alegre, soalheiro, de avaliação justa. E portanto
perfeito. Podemos citar com propriedade o Pe. António Vieira: descobrimos
hoje mais, porque olhamos de mais alto; e distinguimos melhor, porque vemos
mais de perto A candeia está acesa e muito clara
O número de docentes, funcionários e estudantes que nesta ocasião enaltecemos e
louvamos vale como amostra de um grupo maior, igualmente merecedor de encómio.
Nesta casa o desempenho elevado constitui a regra e não a excepção. Por isso,
no destaque concedido aos louvados inscrevemos o apreço pela generalidade dos
que fazem a instituição. Tomamos como bitola o aviso de Samuel Johnson, 1709-
1784: A gratidão é um fruto de grande cultura; não se encontra entre gente
vulgar.
Isto contrasta com a conjuntura, que é estranha. É como se a mortalidade
flutuasse no ar e vivêssemos um intervalo, num lugar que não mais nos
reconhece. Como se a sabedoria, a decência e lucidez saíssem pela janela, à
medida que a crise nos aperta. Todavia no fundo do nosso íntimo vive a
convicção de que o homem volta sempre às suas necessidades de beleza, verdade e
discernimento. Mais, cremos que no ensino e aprendizagem da vida só perdura
aquilo que obedece a três critérios: esplendor ético e estético, força
intelectual, sapiência.
Mantenhamos vivas as convicções ganhas num trajecto esforçado, suado e limpo. E
continuemos a iluminar as noites e dias da dúvida com este clarão de Mário
Quintana: A vida são deveres que nós trouxemos para fazer em casa. Para os
guardar e cumprir.
Sei que eles caíram em desuso. Porém é mister que sigamos o rumo traçado, para
não cairmos na farsa e mentira, para não parecermos, como disse Carlos Drummond
de Andrade, cortados ao meio. Para passarmos de cara erguida, leves e
orgulhosos, por entre a multidão desfigurada.
Não tenhamos medo senão da pequenez, medo de ficar aquém do estalão por onde,
desde que o mundo é mundo, se mede à hora da morte o tamanho de uma criatura.
[5]
Não deixemos que o silêncio dos melhores seja cúmplice do alarido e desvergonha
dos piores! Não percamos a alma, nem a hipotequemos a nenhum poder, seja ele
religioso ou profano. Não permitamos que nos roubem o direito de sonhar e de
viver melhor! Não deixemos que venha o pesadelo a toldar a nossa visão e que da
terra se levante uma cruz com este epitáfio: Aqui jaz a ilusão de uma vida
decente.
Não se esqueçam de que só progredimos, se crescermos por dentro, se nos
carregarmos de convicções, de princípios e deveres, se tirarmos o máximo
possível das coisas mínimas em que realizamos a profissão e esgotamos a vida;
se nos construirmos como uma grandeza balizada por matéria e espírito, pela
matéria das nossas realizações conjuntas, pelo espírito dos ideais que nos
animam e congregam. O estímulo tem que nos vir da grandeza que queremos
alcançar, da obra que queremos edificar, do legado que ansiamos deixar. Porque
a criatura é a imagem e a medida da dimensão do criador, sejamos uma
incomensurável disponibilidade!
NOTAS
[1]Este editorial reproduz a intervenção feita na sessão comemorativa do Dia da
Faculdade de Desporto, realizada em 10 de Março de 2010.
[2]Jornal de Negócios, Lisboa, 18.09.2009.
[3]Correio da Manhã, Lisboa, 25 de Julho de 2009.
[4] Vítor Belanciano, Crónica Mista, Jornal Público2, p. 3, 17.02.2010.
[5] Torga, Miguel (2002): Ensaios e Discursos. Círculo de Leitores, Lisboa.
Faculdade de Desporto da Universidade do Porto
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