Saúde e exercício físico como instrumento terapêutico: Que papel para as
revistas científicas?
Saúde e exercício físico como instrumento terapêutico: Que papel para as
revistas científicas?
Physical exercise as a therapeutic tool: What role for scientific journals?
J. Vasconcelos-Raposo
Director da Revista Motricidade ' Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
Neste ensaio apresentamos dois temas que pretendemos interligar. O primeiro,
prende-se, sobretudo, com a promoção do Exercício Físico (EF) enquanto
ferramenta terapêutica que tem sido negligenciada pelo sistema de saúde.
Apresentamos, também, razões para que se possa potenciar os argumentos a favor
da inclusão dos profissionais da Saúde e Exercício nas equipas terapêuticas. No
segundo tema, abordaremos, de forma crítica, o papel que as revistas
científicas poderiam assumir na consolidação da criação dos novos nichos de
actividade profissional, no âmbito da saúde.
Com este ensaio, e com algumas das afirmações nele apresentadas, procuramos ser
provocadores e assim abrir espaço para o diálogo, pois sabemos que o correcto
estará algures entre o que aqui se afirma e o que outros dirão, com o intuito
de sermos todos mais eficientes na redefinição de práticas de investigação e de
divulgação do saber desenvolvido de forma mais eficaz.
A relação entre Exercício e Saúde, tanto física como mental, é algo que vai
para quase 20 anos que tem sido alvo persistente de investigação e objecto de
recomendação por parte das mais prestigiadas autoridades científicas e, no caso
dos USA, pelo próprio Surgeon General. Na literatura da especialidade defende-
se que a actividade física é uma forma eficaz para contribuir para a redução
das mortes evitáveis. Entenda-se como mortes evitáveis aquelas que teoricamente
têm lugar mais cedo no ciclo da vida das pessoas por não adesão a
comportamentos que contrariam os agentes patológicos que conduzem a uma morte
antecipada.
Para os sistemas de saúde, o conceito de "mortes evitáveis" conceito
que reúna consenso, na medida em que tem sido apresentado como um indicador
claro das fragilidades dos serviços de cuidados médicos, ainda que a realidade
não seja essa. As fragilidades são do sistema, mais concretamente são dos
agentes responsáveis que podem ser identificados ao nível das definições de
políticas de saúde, enquanto os médicos são executores dessas medidas. Por esta
razão, importa sermos claros sobre esta matéria e até mais rigorosos na
contextualização do uso deste conceito. Assim, quando falamos de serviços de
cuidados médicos referimo-nos às propostas e políticas de saúde que são
impostas pelo poder político instalado às várias classes profissionais que
intervêm na promoção da saúde e no tratamento de patologias. Em momento algum
do nosso argumento teremos em consideração a relação médico doente, apesar das
problemáticas por nós abordadas terem repercussões nessa relação, na medida em
que, perante o que lhes é disponibilizado, os prestadores de serviços ficam
mais ou menos habilitados a actuar de acordo com o que pensam ser os métodos e
as técnicas mais eficazes para os exames e consequente terapêutica.
O poder político instalado tem por necessidade de agir com um sentido de
obrigação para sobreviver no poder, e por essa razão, os governos alternam-se e
a fraca qualidade de serviços existente tende a permanecer, assim como as
reivindicações dos prestadores de serviços por melhores condições técnico-
profissionais para o exercício das suas actividades. Todas as práticas
políticas são feitas em nome dos cidadãos, mas quando estudamos a qualidade de
vida das populações rapidamente constatamos que as políticas de saúde pouco ou
nada cuidam deles. As políticas de saúde ficam à mercê desta lógica político-
partidária.
Se para os sistemas de saúde o conceito de mortes evitáveis não é consensual,
já para os profissionais dos serviços curativos, assim como para os que
intervêm mais directamente na prevenção, ele é, em geral, da maior relevância.
Para os Psicólogos da Saúde e do Exercício, este é um conceito pilar para a
justificação dos múltiplos campos da sua acção, uma vez que estes enquanto
profissionais são os verdadeiros especialistas no que se refere a mudanças
comportamentais, tanto a nível individual como colectivo. Lamentavelmente, este
facto tende a ser negligenciado quer na formação dos psicólogos como das
instituições que regra geral intervêm no âmbito da saúde.
De uma forma generalizada poderemos dizer que o que está em causa é a
identificação dos comportamentos de risco e as intervenções ao nível da
Promoção/ Educação para a Saúde. As intervenções de carácter preventivo tendem
a privilegiar, entre outros, os seguintes comportamentos de risco: hábitos
tabágicos, dietas ricas em gordura, inactividade física, obesidade, diabetes,
consumo de álcool, entre outros. No seu conjunto estes tendem a ser
responsáveis por mais de 80% dos acidentes cardiovasculares e estão, também,
associados a outras patologias, entre as quais destacamos alguns tipos de
cancro. Estes valores tendem a ser superiores na população com doença mental.
Estes comportamentos são, tradicionalmente, os factores de risco sobre os quais
tendem a recair as acções de promoção e educação para a saúde. No entanto, em
termos históricos, as estratégias de prevenção focadas em intervenções de
carácter monodisciplinar, como a educação alimentar, a adesão a prática de
actividade física e perda de peso, têm-se demonstrado pouco eficazes e
particularmente dispendiosas. Os problemas persistem, tal como sempre existiram
e, em determinados casos, os dados epidemiológicos sugerem agravamento,
independentemente do investimento que tem sido feito tanto ao nível da pesquisa
como das acções para a promoção da saúde.
Importa olhar às eventuais causas para a persistência e, por vezes, agravamento
ao nível da incidência das designadas doenças hipocinéticas. Sabemos que não se
podem fazer campanhas de promoção da saúde sem que estas estejam devidamente
consolidadas em fortes evidências empíricas. Por esta razão, em nossa opinião,
importa analisar a forma como os pesquisadores têm contribuído para a solução
do problema. Para isso, julgamos necessário reflectir sobre a qualidade da
ciência que encontramos publicada. Mas vamo-nos centrar no que acontece no
mundo de língua portuguesa, porque é aquele que prioritariamente nos preocupa.
Quanto à prática científica, o que nos é dado a observar tanto ao nível do que
é publicado como do que verificamos como membros de júris de concursos para a
progressão na carreira académica, ao nível do ensino superior, é que os
aspectos qualitativos dos curriculum vitae (CV), cada vez mais, tendem a ser
relegados para um plano secundário face ao número de publicações. Assim, a
academia, com todos os seus indicadores bibliométricos, acaba por encorajar uma
prática que tem por objectivo o acrescentar de linhas ao CV, independentemente
da qualidade científica que elas possam representar. Aos docentes
investigadores foi exigido que se adaptassem a este jogo numérico e que
desenvolvessem práticas e estratégias que possibilitassem dar resposta às novas
exigências. Com o decorrer do tempo, estas práticas foram sendo legitimadas e
consolidadas consoante encontravam espaço para publicação nas revistas
científicas que neste processo acabaram assumindo o papel de agentes
legitimadores e reprodutores dessa forma de estar na ciência. Mas há nobres
excepções no espaço Lusófono, e não só, tanto ao nível pessoal como das
revistas científicas.
Quanto aos desenhos da pesquisa que pretende estudar a relação entre a prática
de exercício físico e a saúde, constatámos que é escasso o número de estudos
que apresentam de forma detalhada os programas de EF, descrevendo os volumes e
as intensidades, assim como os efeitos respeitantes a cada um dos níveis
destas, enquanto variáveis independentes. Este aspecto é agravado quando
tomamos em consideração o tamanho das amostras e a escassa informação
proporcionada no que se refere aos critérios de inclusão e exclusão dos
sujeitos estudados. Na sua maioria os trabalhos tendem a recorrer às
amostragens por conveniência. Amostras mal caracterizadas associadas à falta de
critérios de selecção acabam por ter um efeito minimizador quanto à relevância
dos resultados produzidos e a consequente utilidade para os profissionais que
integram o sistema de cuidados médicos.
As disciplinas científicas que reclamam um lugar nos domínios da saúde são
várias e tudo indica que continuarão a crescer. No nosso ensaio debruçamo-nos
sobre os contributos que os profissionais treinados especificamente em
exercício e saúde podem dar e quais os caminhos a trilhar.
Os investigadores na área do Exercício e Saúde têm feito progressos científicos
verdadeiramente expressivos. Souberam ultrapassar com sucesso as fronteiras
disciplinares e, de igual modo, estabeleceram inequivocamente a importância da
actividade física como forma eficaz para prevenir doenças e lançaram o debate
sobre a utilização do exercício físico como instrumento terapêutico. Mas,
apesar disto, continuamos a constatar a ausência da inclusão destes
profissionais nas equipas terapêuticas.
Como sempre as respostas podem encontrar-se em múltiplas formulas e
perspectivas. Poderíamos recorrer ao argumento de natureza política ou ao do
cooperativismo da classe médica ou, eventualmente, outros. Julgamos que esses
são argumentos já cansados e que na realidade importa explorar novas fronteiras
para os profissionais do Exercício Físico e Saúde comunicarem eficazmente com
os restantes agentes que intervêm nos cuidados médicos sem se escusarem com
falsas desculpas.
Até hoje, com base na nossa experiência profissional e pessoal, só encontrámos
profissionais, ao nível dos cuidados médicos, que se apresentam curiosos e
desejosos de aprender algo mais sobre o porquê e o como é que efectivamente o
EF tem o efeito terapêutico que a investigação científica sugere. As respostas
a encontrar deverão ser dadas tendo em consideração o "ETHOS" das
classes profissionais envolvidas. Por exemplo, para fazer entender aos médicos
como o EF pode ser um instrumento terapêutico relevante, não basta dizê-lo e
apresentar resultados de investigação que são de carácter generalista. Importa
encontrar um discurso e linguagem que faça com que as evidências empíricas
sejam entendidas à luz das lentes interpretativas que os diferentes
profissionais utilizam, fruto da sua formação científica.
Importa não esquecer que há um recente e crescente interesse dos médicos, e
outros profissionais, pela importância do EF como agente terapêutico. O seu
envolvimento, ao nível da pesquisa representa novos desafios para os
profissionais da EF. Agora mais do que nunca a pesquisa deverá tomar uma nova
roupagem e redefinir as prioridades quanto a unidades de análise. Estudos sobre
a dosagem do exercício físico e os seus efeitos são aqueles que faltam e são
urgentes para a formação dos prestadores de cuidados médicos. Para os
investigadores que pretendem promover o Exercício como terapêutica, importa
entender que os seus argumentos terão de ser feitos nos mesmos moldes a que a
indústria farmacêutica recorre para fazer prevalecer as vantagens dos
medicamentos a propor.
Quando tomamos, entre outros, também estes aspectos, parece-nos evidente que é
urgente repensar a formação académica e científica da nova geração de docentes
e pesquisadores em geral, mas de uma forma particular no que se refere à área
científica da Saúde e Exercício. É urgente modernizar os conhecimentos e os
métodos pedagógicos ultrapassando as práticas vigentes e encontrando novos
formatos de intervenção na formação de pesquisadores.
Actualmente, as instituições de ensino superior estão, ainda, prisioneiras de
métodos que se alicerçam no recrutamento daqueles que os professores definem
como os melhores para os integrar nas suas equipas de pesquisa. Dizer que é
necessário promover a autonomia dos formandos seria esquecer, os últimos 20
anos de carreira como docente, e investigador, e das múltiplas oportunidades
proporcionadas a alunos, guiando-os por novos caminhos na prática científica.
Num olhar retrospectivo constata-se que após um vasto investimento, tanto em
tempo como em recursos financeiros, tanto institucionais como pessoais,
constatamos que a opção desses formados tem sido a de aderirem ao caminho mais
fácil: O da produção de trabalhos que acabam mais cedo ou mais tarde por cair
na mecanização da prática investigativa. Isto é, encontram uma área do
conhecimento em que se dizem especializar e dedicam-se à recolha, tratamento
e escrita de trabalhos que posteriormente são publicados. Mas em última
análise, os contributos para o aprofundamento teórico ficam aquém do que se
pretende com a investigação científica. A perspectiva reprodutiva do saber
perde-se nestas dinâmicas.
Por último, falemos da relevância das revistas científicas neste processo que,
apesar de complexo, nos parece ser de análise relativamente fácil.
As revistas científicas não podem deixar de assumir uma quota-parte da
fragilização que se tem vindo a verificar ao nível da produção científica. Sem
querermos ser exaustivos focaremos cinco aspectos que se nos apresentam como os
mais vulneráveis à aplicação de novas políticas editoriais. Em primeiro lugar,
descuraram os aspectos qualitativos da investigação e ficaram menos exigentes
ao nível da teorização. Em segundo lugar, adoptaram procedimentos em torno dos
quais se refugiam para diluir as suas responsabilidades, delegando para os
peer reviewers a grande fatia da responsabilidade de aceitação para
publicarem os trabalhos. Em terceiro lugar, retiraram-se da discussão
relativamente ao papel que desempenham no desenvolvimento da ciência e
tecnologia e, consequentemente, das sociedades em geral. Em quarto lugar,
assistem passivamente à aplicação de políticas de desenvolvimento científico
que mais se parecem com a promoção de políticas de promoção de colonização
intelectual. Referimo-nos a não tomarem posição colectiva quanto ao facto de
negligenciarem as revistas de língua portuguesa privilegiando as de língua
inglesa, apesar dos governos dos seus países, através das suas agências para o
desenvolvimento da ciência investirem montantes razoáveis no financiamento das
revistas científicas de língua portuguesa. Esta prática parece esquecer aqueles
que são, efectivamente, os níveis linguísticos dos estudantes e da comunidade
científica Lusófona. Tendo a linguagem como elemento de referência, pensamos
ser necessário priorizar o aumento significativo do número de pesquisadores,
para depois se proceder à eventual aplicação de critérios mais selectivos. Em
quinto lugar, as revistas deverão ter um papel activo junto das instituições de
ensino superior fazendo-as repensar o papel discriminativo que têm perante a
qualidade da pesquisa publicada nas revistas de língua portuguesa.
Por último, não poderemos deixar de ser realistas e relembrar que todas estas
mudanças passam, forçosamente, por uma mudança de cultura científica, onde a
qualidade volte a ser o centro do reconhecimento académico e não tanto a soma
de publicações que, infelizmente, numa percentagem elevada, tendem a resultar
de trabalho introdutórios realizados por académicos de nível de graduação e de
pós-graduação, e nem sempre escritos e submetidos sob a supervisão dos docentes
- investigadores, como seria desejável.
Procurando sintetizar o que foi até aqui dito destacaríamos os seguintes
aspectos como sendo aqueles em que as revistas científicas podem e devem ter um
papel activo:
1. É urgente contribuir para a concretização do princípio humanista de que a
saúde é um bem colectivo e individual. Isto implica contrariar as práticas que
a transformam num instrumento político-ideológico.
2. Enquanto membros activos e centrais de uma comunidade científica que é cada
vez mais de natureza universalista, procurar contribuir para o incremento de
melhores serviços terapêuticos. Isto poderá ser feito através da publicação dos
estudos que proporcionam as evidências para a adesão a novas práticas, assim
como abrindo espaço para o debate sobre as necessárias redefinições de
prioridades que coloquem o cidadão em primeiro lugar.
3. Redefinir as políticas editoriais de forma a promover a publicação de
estudos que evidenciem as vantagens económicas que advêm do investimento na
promoção da saúde através do EF.
4. As revistas deverão ter um papel mais interventivo no desenvolvimento e
promoção de uma linguagem científica que facilite o diálogo e a investigação
multidisciplinar.
5. Os editores, através das suas políticas editoriais deverão promover a
inovação metodológica e teórica incentivando a publicação de trabalhos que
visem redefinir as fronteiras científicas.
Em suma, em linhas gerais, neste trabalho, detalhamos aqueles que são os
princípios orientadores para a implementação das políticas editoriais da
Motricidade para os próximos anos, e para a área da saúde, de uma forma muito
particular.