Osteoporose transitória da gravidez
INTRODUÇÃO
A osteoporose transitória foi descrita pela primeira vez na literatura norte-
americana em 1959 por Curtiss e Kincaid[1].
Trata-se de uma patologia auto-limitada, que ocorre em homens de meia idade e
em mulheres no terceiro trimestre da gravidez ou puérperas. Envolve as
articulações dos membros inferiores, principalmente a anca, e menos
frequentemente, o joelho, o tornozelo e o pé[2].
A osteoporose transitória da anca durante a gravidez caracteriza-se
clinicamente pelo início gradual de dor, que agrava com a carga e se traduz em
claudicação. As mobilidades ativas e passivas da anca são normais, com o
aparecimento de queixas álgicas apenas nas mobilidades extremas. Esta
discrepância entre os achados do exame objetivo e a clínica pode ajudar a
distinguir esta condição autolimitada, de outras patologias, tais como tais
como neoplasia, necrose avascular e infecção, evitando assim diagnósticos e
medidas terapêuticas desnecessárias[2].
A complicação mais grave desta patologia é a ocorrência de fratura do colo do
fémur, situação retratada neste artigo através da apresentação de dois casos
clínicos.
CASOS CLÍNICOS
Caso 1
Doente do sexo feminino com 30 anos de idade, primigesta, com 38 semanas e 2
dias de gestação, dá entrada no Serviço de Urgência (SU) com dor e incapacidade
funcional na anca direita após queda na banheira. O estudo radiológico
realizado revelou fratura do colo do fémur direito, tipo IV de Garden[3]
(Figura_1). O estudo analítico da doente era normal.
Na história clínica recolhida a doente referia um início gradual de dor na
articulação coxo-femoral direita desde há cerca de dois meses. Por esse motivo,
teria já recorrido ao seu Médico assistente que a medicou, recomendou repouso e
proteção na carga.
A doente relatava também uma coxalgia esquerda ocorrida há cerca de dois anos e
que à data teria levantado a suspeita de osteoporose transitória dessa anca.
Foi medicada pelo Médico assistente com resolução do quadro clínico.
Foi internada por Obstetrícia para realização de cesariana de urgência. Uma
semana depois a doente foi submetida a artroplastia total da anca direita não
cimentada, cerâmica/cerâmica (Figura_2).
Neste momento tem seis meses de pós-operatório, encontra-se sem queixas álgicas
e deambula sem apoio externo na marcha.
Caso 2
Doente do sexo feminino com 26 anos de idade, saudável, Gesta 2/Para 2;
gravidezes sem intercorrências e ambos os partos eutócicos.
Dois meses após o nascimento do segundo filho sofreu queda de bicicleta de
baixa energia (encontrava-se parada, desequilibrou-se e caiu). Inicialmente foi
observada no SU de outra instituição hospitalar, após o que teve alta com
indicação de repouso e analgesia. Ao fim de dois dias deu entrada no nosso SU,
por persistência e agravamento das queixas álgicas, com incapacidade para a
marcha. Realizou estudo radiológico da bacia que revelou fratura do colo do
fémur, tipo III de Garden[3] (Figura_3).
A doente foi submetida a redução fechada da fratura e osteossíntese com
parafusos canulados (Figura_4). Decorridos seis meses após a cirurgia (Figura
5), deambula com apoio de canadianas, tem rigidez á mobilização da anca
operada, pelo que se encontra em programa de reabilitação fisiátrica.
DISCUSSÃO
A desmineralização da articulação da anca durante gravidez é uma situação que
muitas vezes passa despercebida. Na literatura foram descritos cerca de trinta
casos, quase todos em grávidas no final dos vinte anos de idade e início dos
trinta[4].
Existem diversas teorias que tentam explicar a sua etiologia. As necessidades
aumentadas de cálcio durante a gravidez, associadas a uma possível, malnutrição
materna, pode ser uma das hipóteses. Outros autores têm sugerido que alterações
do fluxo sanguíneo local, fatores virais, metabólicos, inflamatórios,
traumáticos ou neurológicos podem também contribuir para a sua patogénese[5].
Uma outra teoria baseada na biomecânica da articulação da anca, defende que o
esqueleto da mulher, é menos capaz de suportar o aumento do peso corporal
durante o terceiro trimestre da gravidez, ocorrendo uma flexão excessiva da
cabeça e colo femorais. O aumento da carga estimularia a reabsorção óssea e o
aparecimento de microfraturas que podem resultar em fratura patológica[4].
A osteoporose transitória da anca durante a gravidez é uma condição rara e pode
ser sub-diagnosticada devido a queixas frequentes de desconforto pélvico. No
entanto, a presença de dor na anca ou coxa numa grávida ou puérpera, deve levar
o Ortopedista a pensar em fratura patológica, iminente ou real[4]. Outros
diagnósticos diferenciais incluem neoplasias primárias ou tumores metastáticos
(leucemia, linfoma, mieloma múltiplo) doenças inflamatórias e metabólicas,
fratura de stress e osteonecrose da cabeça femoral.
A abordagem seguinte consiste na realização de radiografias e restrição de
carga consoante os sintomas e os achados clínicos e radiográficos. Nos exames
laboratoriais, pode surgir um discreto aumento da fosfatase alcalina, da
velocidade de sedimentação e do nível urinário de hidroxiprolina, alterações
que podem também ocorrer numa grávida saudável[2].
A radiografia convencional geralmente é normal na fase inicial da doença e o
espaço articular permanece intacto durante todas as fases da patologia. Três a
6 semanas após o início dos sintomas, a radiografia revela desmineralização
periarticular e este achado pode manter-se durante semanas após o
desaparecimento da clínica[6].
Em alguns casos de osteoporose transitória da anca há uma perda marcada do
córtex subcondral da cabeça femoral, que é virtualmente patognomónico para a
patologia[6].
A ressonância magnética (RMN) é considerada o exame de escolha para o
diagnóstico desta patologia, demonstrando a presença de edema medular da cabeça
e colo femorais, representado por hiposinal em imagens ponderadas em T1 e por
hipersinal em T2, o que não se verifica em outras formas de osteoporose. Além
disso, a RMN pode revelar a presença de microfraturas na área atingida e
permite o diagnóstico diferencial com outras entidades nomeadamente a
osteonecrose da cabeça femoral. Enquanto na osteoporose transitória da gravidez
o edema medular é autolimitado e existe osteopenia difusa de toda a cabeça e
colo femoral, sem erosão articular ou colapso subcondral, na osteonecrose o
edema de medula óssea sofre uma deterioração gradual, com aparecimento de
lesões subcondrais na porção antero-superior da cabeça femoral e colapso da
superfície articular.
Uma questão importante no caso do parto ser realizado por via vaginal, é que a
presença de uma anca dolorosa e osteoporótica, é um fator de risco para
fratura, pela posição a que a doente fica sujeita.
As fraturas patológicas são uma complicação rara mas representam o pior cenário
desta patologia, dado o elevado risco de necrose avascular da cabeça femoral.
Desde o primeiro artigo publicado em 1959, apenas 12 fraturas patológicas (11
doentes, um bilateral) foram relatadas[2].
O tratamento cirúrgico deste tipo de fratura permanece controverso. É preciso
ter em conta que as fraturas do colo do fémur desviadas apresentam uma elevada
incidência de pseudartrose e necrose avascular[3]. No caso de se optar pela
osteossíntese, a maioria dos autores recomenda a fixação nas primeiras 24 horas
após a lesão, a fim de melhor preservar o suprimento sanguíneo da cabeça
femoral[3].
Relativamente aos casos apresentados: no caso 1 optou-se por realizar
artroplastia total da anca direita, não cimentada, ao 7º dia pós parto. Na
literatura consultada só encontramos referência a uma situação em que o
tratamento da fratura consistiu na realização de artroplastia total da anca não
havendo, porém, referência aos critérios que levaram a optar por essa
estratégia cirúrgica.
Quanto ao 2º caso a opção cirúrgica pela osteossíntese pode ser discutível
porque a fixação foi realizada com mais de 48h após a fratura e a doente
apresentava já uma lise importante ao nível do foco de fratura, por carga
desprotegida. Estes são dois factores que contribuem fortemente para o risco de
necrose avascular da cabeça femoral. A fixação da fratura foi realizada após
uma manobra de redução na mesa ortopédica em rotação interna e abdução, sem
abordagem do foco de fratura.
No pós-operatório tem vindo a verificar-se um colapso ao nível do foco de
fratura, com posicionamento em varo da cabeça femoral (Figura_4). Aos 6 meses
de pós-operatório ainda não existem sinais evidentes de consolidação,
continuando presente o risco de necrose asséptica da cabeça femoral (Figura_5).
Como conclusão, é importante ter em conta que a osteoporose transitória da anca
durante a gravidez é uma condição rara que implica um alto índice de suspeição.
A presença de dor na anca ou coxa numa grávida ou puérpera deve alertar o
Ortopedista para a possibilidade de ocorrência desta patologia e sobretudo para
a presença de fratura patológica do colo do fémur.