Avaliação numérica e experimental da transferência de carga na articulação da
anca com e sem prótese total
INTRODUÇÃO
Desde que Sir. John Charnley em 1958, baseandose em princípios biomecânicos,
abordou a temática da articulação artificial da anca, que o tema da
artroplastia da anca veio a sofrer constantes alterações e avanços, sendo nos
dias de hoje uma das intervenções cirúrgicas mais realizadas e bem-sucedidas em
todo o mundo [1].
As forças que atuam na articulação da anca tornam-na numa das articulações mais
solicitadas do corpo humano, sendo por isso natural que com o passar dos anos
apresente alguns sintomas de desgaste na cartilagem, causando dor e
desconforto, levando posteriormente a uma intervenção cirúrgica[2].
Após a realização da artroplastia total da anca (ATA), o comportamento
biomecânico da articulação sofre alterações devido à substituição da
articulação natural por uma artificial, uma vez que, mecanicamente, a
artificial apresentam características bastante diferentes do osso humano.
De forma a proporcionar um conhecimento biomecânico mais efetivo relativamente
a esta temática, têm sido realizados estudos que combinam técnicas numéricas
com modelos experimentais, permitindo avaliar o comportamento ao nível das
tensões e deformações presentes nas estruturas ósseas[3-7]. O compromisso entre
ambas as técnicas é de grande importância, sendo bastante utilizadas em
diversos estudos biomecânicos uma vez que permitem a validação experimental dos
modelos numéricos, permitindo assim aferir a qualidade dos resultados numéricos
obtidos[4, 8].
É frequente em estudos biomecânicos recorrerse à simplificação do objeto em
estudo de forma a facilitar a computação. Imensos estudos utilizam uma
simplificação da articulação da anca, ou seja, apenas usam o ilíaco ou o fémur
separadamente[6]. Phillips et al[9] por exemplo, embora inclua as ações
musculares presentes na articulação da anca, apenas utiliza como objeto de
estudo o ilíaco. Em Simões et al[10], os autores apenas consideram uma reação
na cabeça do fémur. Este estudo foi realizado com o intuito de analisar a
totalidade da articulação (fémur, ilíaco e cartilagem) por forma a aferir como
o mecanismo da distribuição de carga na articulação se processa quando o modelo
inclui todas as estruturas anatómicas da articulação.
É frequente considerar a cartilagem como sendo um só componente. Embora esta
simplificação possa causar algumas alterações nos resultados obtidos,
acreditamos que não sejam relevantes. Diversos estudos como este consideram a
cartilagem como um único componente[11]. Contudo, existem outros que consideram
a articulação da anca sem cartilagem. Desta forma, foram comparados
experimental e numericamente as deformações principais com dois modelos da
articulação da anca, sendo um natural e outro com implante. Foi também
analisado numericamente a influência que o componente acetabular pode provocar
na distribuição das deformações no osso envolvente.
Desta forma, foram comparados experimental e numericamente as deformações
principais com dois modelos da articulação da anca, sendo um natural e outro
com implante. Foi também analisado numericamente a influência que o componente
acetabular pode provocar na distribuição das deformações no osso envolvente.
MATERIAL E MÉTODOS
Foram usados dois modelos da articulação da anca, um no seu estado natural
(intacto) e outro com um implante total da anca.
Modelo Natural
Na construção dos modelos experimentais foram usados ossos compósitos de um
fémur (ref. 3406) e de um ilíaco (ref. 3405) esquerdos, comercializados
pela empresa Sawbones Pacific Research Labs, Vashon Island, WA, U.S.A. Este
tipo de material é bastante usado em ensaios experimentais, não só por serem
capazes de reproduzir o comportamento mecânico do osso, mas também porque são
invariáveis ao género e não se degradam tão facilmente como o osso real,
garantindo também as respetivas semelhanças geométricas[12-14]. Estas
estruturas ósseas foram escolhidas por permitirem a comparação entre as duas
situações (intacto e implantado).
Para simular a cartilagem foi desenhado um componente em silicone (Figura_1).
Este foi desenvolvido com base na geometria da cabeça do fémur e da cavidade
acetabular. A espessura desta camada foi obtida através de um TAC, sendo
posteriormente criado um molde em poliuretano e usada a técnica de RTV (Room
Temperature Vacuum) para o vazamento do silicone e obtenção da cartilagem.
Neste processo foi usado um silicone VT750 com o CAT 750 como catalisador
misturados na proporção de 10:1 usando MCP HEK Tooling GmbH[15-17].
Modelo Implantado
No modelo com implante foi utilizado um conjunto press-fit Laffit® com haste
femoral de 174 mm de comprimento e cabeça de alumina de 28mm (Figura_2). Este
conjunto articula sobre um componente acetabular de polietileno de 60mm
encaixado numa cúpula em titânio com fixação através de 3 parafusos. Estes
modelos foram implantados experimentalmente por um cirurgião experimente em
laboratório com instrumental adequado.
Medições experimentais
Em ambos os modelos utilizou-se como sistema de medição das deformações através
de um conjunto de rosetas. Baseando-se na condutividade elétrica dos materiais,
este sistema de medição é bastante utilizado em ensaios experimentais [4, 7,
18]. Assim sendo, foram utilizadas 6 rosetas, 4 com Φ3mm de referência KFG-3-
120-D17-11 L3M2S e 2 com Φ1mm com a referência KFG-1-120-D17-11 L3M2S
comercializadas pela Kywoa Electronic Instruments CoTM aplicadas em cada um dos
modelos experimentais.
Nos modelos usados, foram colocadas 4 rosetas em torno da cavidade acetabular,
nos alinhamentos anterior - posterior e superior e duas delas no pescoço do
fémur. A figura_3 mostra a posição de cada sensor colocado no fémur e no
ilíaco.
Condições fronteira
Os modelos experimentais foram colocados na sua posição natural, respeitando a
inclinação sagital e frontal do fémur, 7º e 9º respetivamente. Foi desenvolvido
um sistema de fixação aplicado em cada um dos modelos que restringia o conjunto
na asa do ilíaco (na superfície glútea) e no ramo do ísquio.
A fixação permitia a rotação do fémur na sua zona mais distal, garantindo um
sistema equivalente de transferência de carga (Figura_4).
Em ambos os modelos foram realizados 5 repetições de ensaios experimentais,
tendo sido aplicada uma carga vertical no sentido descendente de 2300 N, que é
uma carga aproximadamente equivalente ao momento de descida de escadas para um
paciente com 70kg [19] e é uma das situações de carga mais críticas.
Modelo de elementos finitos
A modelação dos componentes da articulação da anca natural foi baseada nos
modelos sintéticos da Sawbones® referidos anteriormente. Na articulação com
implante foram modelados todos os seus componentes, a haste femoral e o
componente acetabular. Para tal, foi utilizado o conjunto da articulação
artificial da anca press-fit da Laffit®.
Utilizou-se o software de CAD Catia V5R19 Dassault Systems e ambos os modelos
foram colocados nas suas posições naturais, tendo sido respeitado o
posicionamento natural do implante como na cirurgia in vitro.
Os materiais de cada componente da articulação da anca foram considerados
homogéneos, isotrópicos e com comportamento linear elásticos, propriedades
apresentadas no quadro_I e com um total de 345546 graus de liberdade em cada
modelo.
No modelo intacto foi considerada a interface colada entre o osso cortical e o
osso esponjoso, nos componentes do ilíaco e do fémur. Na interface da
cartilagem com cabeça do fémur e cavidade do ilíaco foi considerada uma
condição de contacto com atrito com a cabeça do fémur de 0,001[19].
No modelo implantado com a prótese pressfit, os constituintes foram
considerados colados, contudo, foi considerada uma condição de contacto entre o
componente de polietileno e o metálico do componente acetabular e entre a haste
femoral e a esfera cerâmica. Foi considerado um coeficiente de atrito de 0,2
entre a esfera cerâmica e o polietileno [20]. Em ambos os modelos de elementos
finitos foram aplicadas mesmas restrições e casos de carga aplicados
previamente nos modelos experimentais.
RESULTADOS
Validação do modelo numérico
Em ambos os modelos foram realizadas 5 repetições com o intuito de validar os
modelos (natural e com implante). O quadro_II apresenta os resultados das
deformações principais dos modelos experimentais obtidos através das leituras
das rosetas de extensómetros.
Quadro_II
A regressão linear permitiu avaliar a correlação entre os resultados obtidos
numéricos e os experimentais. Em ambos os modelos observou-se um valor de R2 de
0,94 para o modelo natural e 0,93 para o modelo implantado. Verificou-se também
os valores de 0,92 e 0,99 para os declives das retas de regressão linear do
modelo natural e implantado respetivamente.
Estes resultados indicam uma boa correlação entre os modelos numéricos e
experimentais, uma vez que os valores estão próximos de 1. Este facto permite
estudar o comportamento biomecânico do conjunto de forma mais completa
recorrendo ao modelo numérico validado.
No gráfico da figura_6 verificamos que existem alguns pontos relativamente
afastados da linha de regressão linear. Esses pontos dizem respeito aos valores
medidos na roseta 4 e podem resultar da geometria irregular da superfície onde
a roseta foi colocada, provocando alguns desvios na leitura e consequente
afastamento da linha de regressão linear (Figura_7).
Modelo intacto
No modelo intacto foi analisada a influência da cartilagem na distribuição das
deformações, quer no ilíaco quer no fémur segundo as direções anterior -
posterior e medial - lateral. Na figura abaixo pode-se observar a
diferença entre as deformações principais mínimas na cabeça do fémur e na
cavidade acetabular no seu alinhamento anterior - posterior. Como se pode
ver, esta diferença é mais acentuada no centro da articulação, fruto do efeito
de absorção da carga por parte da cartilagem (Figura_8).
No fémur, verificou-se um aumento das deformações de cerca de 20% quando não
consideramos a cartilagem. Este aumento das deformações pode em parte explicar
a dor sentida nesta articulação por parte dos pacientes quando ocorre contacto
osso-osso (Figura_9).
Verificou-se, como esperado, um aumento das deformações no fémur no modelo com
cartilagem (Figura_10). Este comportamento foi observado quer no aspeto medial
quer no aspeto anterior. Tal pode resultar do facto de com cartilagem existir
uma maior área para a transferência de carga do ilíaco para o fémur e desta
forma aumentar a solicitação mecânica deste[21].
Intacto V.S. Implantado
A cavidade acetabular foi dividida em 4 secções, a inferior (I), posterior (P),
superior (S) e anterior (A) tal como referido anteriormente.
Comparando as deformações principais ao longo da cavidade acetabular dos dois
modelos, verificamos que as deformações principais máximas diminuem cerca de
15% (Figura_11).
Neste sentido, verificou-se que onde a diminuição é mais acentuada é entre a
posição P e S, registandose diminuições na ordem dos 60%. Existe também um pico
de diferença perto da posição A, onde se registam diminuições das deformações
da ordem dos 80% (Figura_11).
Em relação às deformações principais mínimas observou-se que a principal
diferença ocorreu na zona anterior A, mas também entre a posição P e S.
Outra das formas de avaliar a estabilidade de um implante é através da análise
dos micromovimentos entre o implante e o osso. Neste caso foi feita a avaliação
dos micromovimentos nos alinhamentos anterior - posterior e inferior
- superior (Figuras_12 e 13).
Verificou-se que os micromovimentos no alinhamento inferior - superior
apresentam valores mais elevados na região inferior. Esta observação pode ser
devido ao facto desta região conter um menor suporte por parte do osso
envolvente.
No alinhamento anterior - posterior verificaram-se valores mais baixos no
centro da cavidade acetabular. Neste caso, quer na região anterior quer na
região posterior a amplitude de micromovimentos é bastante semelhante,
registando-se assim uma discrepância para os micromovimentos observados no
centro da articulação.
DISCUSSÃO
Foi possível verificar em ambos os modelos, intacto e modelo com implante, uma
boa correlação entre os modelos numéricos e os modelos experimentais, sendo que
em ambos os casos os valores de R2 e do declive da reta são próximos de 1.
Adicionalmente, e como forma de complementar estes indicadores, foi calculado o
RMSE para ambos os modelos. Usando este indicador, expresso em percentagem, foi
possível observar uma correlação entre modelos numéricos e experimentais com
uma diferença de cerca de 5% para o modelo intacto e de 9% para o modelo com
implante. Estes valores mais uma vez, corroboram o previamente afirmado,
garantindo assim uma boa correlação entre modelos numéricos e modelos
experimentais, permitindo validar os modelos numéricos.
Este resultado é bastante satisfatório, uma vez que Rajesh et al[22] também
obteve uma correlação entre modelos numéricos e experimentais bastante
semelhantes aos valores por nós observados.
A boa correlação entre ambos os modelos é de grande importância porque desta
forma é possível utilizar os modelos numéricos para estudar o comportamento
biomecânico das estruturas envolvidas, o que em alguns casos seria impossível
de ser feito através de técnicas experimentais.
Verificou-se neste estudo, tal como publicado por Dastra e Huiskes, que a as
maiores deformações na articulação natural da anca são na região superior
- anterior da cavidade acetabular[23]. Este resultado, dada a posição
anatómica da articulação confirma o expectável.
Deve ser referido o papel importante que a cartilagem desempenha na
articulação. Embora neste estudo não tenha sido muito aprofundado o
comportamento mecânico da cartilagem, foi possível verificar a importância da
mesma na biomecânica da articulação e na sua contribuição para a distribuição
das cargas. Neste estudo verificouse que uma articulação sem cartilagem
apresenta um comportamento mecânico completamente diferente do obervado com a
articulação saudável, sendo que os níveis de deformação presentes no osso são
completamente alterados pela ausência desta, e que podem em parte justificar a
dor sentida na articulação por parte dos pacientes.
Aquando da necessidade de colocação de implante na articulação da anca é
importante garantir que este seja colocado na posição correta para assegurar a
sua estabilidade primária. É de fácil compreensão que uma articulação natural
(sem implante) não tem o mesmo comportamento mecânico que uma articulação com
implante. Tal está de acordo com alguns estudos realizados para avaliar as
deformações que ocorrem em torno da cavidade acetabular/implante[24,25].
Com este estudo foi possível avaliar as diferenças ao nível as deformações
principais entre um modelo natural e um modelo com implante.
Verificou-se que a distribuição das deformações principais apresenta valores
mais baixos no modelo implantado do que no modelo natural. É principalmente na
região posterior P e superior S que esta diminuição é mais evidente. Isto
significa que esta região pode ser mais afetada com a colocação do implante,
induzindo o efeito de stress-shielding devido à pouca solicitação do tecido
ósseo. Contudo, na restante superfície, embora se registem deformações
inferiores às do modelo intacto, as diferenças não são significativas[26, 27].
Outro fator importante para garantir a estabilidade do implante é a amplitude
dos micromovimentos presentes entre a superfície do implante e o osso. Os
micromovimentos observados no nosso estudo centram-se abaixo dos 100 μm o que
segundo Pillar et al [28, 29] promove o crescimento ósseo e evita o
deslocamento do implante, que é um dos problemas mais observados clinicamente
na revisão da artroplastia da anca.
Os valores mais elevados de micromovimentos foram registados na região anterior
e superior. Comparando os resultados com outros estudos previamente realizados,
quer por Spears et al [30] quer por Bergman et. al [3], verificamos que os
resultados obtidos no nosso estudo são consistentes com os publicados.
CONCLUSÃO
Com base nos resultados obtidos neste estudo podemos concluir que os modelos
numéricos replicam os modelos experimentais com uma diferença de 5% e 9% para o
modelo natural e com implante respetivamente.Este resultado dá-nos confiança
necessária para usar os modelos numéricos na analise da problemática da
artroplastia total da anca e consequentemente o comportamento mecânico do osso.
Através da análise deste estudo foi também possível verificar a importância da
cartilagem na distribuição das deformações e na absorção do impacto das cargas
que se exercem na articulação da anca.
Com base na distribuição das deformações principais é possível afirmar que o
risco de remodelação óssea desfavorável é mais provável de ocorrer na região
posterior - superior do acetábulo devido ao efeito de strain-shielding.
A região posterior do acetábulo é a mais suscetível de perda óssea por ser
menos solicitada. Por outro lado, neste estudo verificou-se que a região onde
existiam os valores mais elevados de micromovimentos é na região anterior -
superior, o que provoca uma maior instabilidade ou o risco de laxação do
implante nessa região.