Correlação clínica e ecográfica em displasia de desenvolvimento da anca
INTRODUÇÃO
A Displasia de Desenvolvimento da Anca (DDA) abrange um amplo espetro de
anomalias anatómicas da articulação coxofemoral, nas quais a cabeça do fémur
mantém uma relação anormal com o acetábulo[1, 2]. A DDA é um defeito
frequentemente encontrado em recém- nascidos, sendo a sua incidência estimada,
pois não existe um método gold-standard para o diagnóstico, de 1,5 a 20 casos
por 1000 habitantes nos países desenvolvidos[1].
Esta patologia inclui várias condições como: anca subluxada, uma anca na qual a
cabeça femoral se encontra mal posicionada em relação ao acetábulo; anca
luxável, onde apesar de a cabeça do fémur se encontrar no local correto pode
ser deslocada através das manobras provocativas; anca luxada, onde encontramos
a cabeça do fémur completamente fora do acetábulo[1].
Vários critérios de risco são considerados importantes para o desenvolvimento
desta patologia, no entanto, não existe uma relação bem estabelecida para todos
eles. São fatores de risco indubitáveis: a história familiar de DDA (OR 4,8,
95% IC 2,8-8,2); a apresentação pélvica ao nascimento (OR 5,7 95% IC 4,4-7,4);
o sexo feminino (OR 3,8, 95% IC 3,0-4,6); e o "estalido" da
articulação coxofemoral no exame clínico (OR 8,6, 95% IC 4,5-16,6)[2]. A DDA
está muitas vezes presente em crianças com torcicolo congénito, no entanto, se
se considerar somente os casos em que a DDA necessita de tratamento, estes
representam apenas 1,7%, revelando assim uma fraca associação entre estas
doenças[3]. A ordem dos nascimentos parece também ser relevante, pois cerca de
60% das crianças que apresentam DDA são primogénitos[4].
No entanto, a maioria dos casos de DDA não apresenta critérios de risco
identificáveis[5].
Um diagnóstico precoce desta patologia é essencial, sendo que a fase de
desenvolvimento em que a criança se encontra leva a diferentes manifestações
clínicas e é determinante para o tratamento[1]. O diagnóstico é feito através
do exame físico e de métodos de imagem, cuja utilização generalizada ou somente
em casos selecionados, é controversa[6,9,19].
O exame físico apresenta uma sensibilidade e especificidade dependente do
examinador[7].
No recém-nascido a estabilidade da anca é testada através das manobras
provocativas de Barlow e Ortolani, devendo ser realizadas por esta ordem. Na
manobra de Barlow tenta-se luxar/subluxar uma anca instável. Na posição supina,
com a anca aduzida e fletida a 90º, o examinador segura os joelhos da criança e
empurra-os posteriormente. Numa anca instável isto irá produzir um
"ressalto" ao deslocar a cabeça do fémur do acetábulo. A manobra de
Ortolani é útil para reposicionar uma cabeça femoral luxada. Esta redução é
conseguida através da abdução suave da anca com concomitante pressão anterior
sobre o grande trocânter. Num teste positivo, o examinador irá sentir um
"estalido" que traduz a recolocação da cabeça do fémur no acetábulo
[10].
Depois dos 3 meses a limitação da abdução é o sinal mais sugestivo de DDA[1].
Outros achados sugestivos são o sinal de Galeazzi (que traduz o encurtamento do
fémur), a assimetria das pregas da coxa e um sinal de Klisic positivo,
normalmente utilizado na investigação de DDA bilateral.
Após o início da marcha, nas displasias unilaterais pode surgir a "marcha
de Trendelenburg" no lado afetado, assim como diminuição da abdução e do
comprimento do membro, sendo que este último pode originar a "marcha em
dedos dos pés" no respetivo lado. Na DDA bilateral, devido á fraqueza dos
abdutores, pode haver "marcha bamboleante". Estas crianças podem
apresentar também lordose lombar excessiva secundária a contraturas bilaterais
dos flexores da anca[10].
O método de imagem escolhido depende da idade do paciente. No início da vida,
quando as articulações coxofemorais são predominantemente cartilaginosas, a
ecografia representa a melhor escolha porque permite avaliar a morfologia
acetabular, a posição da cabeça femoral e a estabilidade da anca. A ecografia é
utilizada normalmente até aos 6 a 12 meses de vida, dependendo do método
ecográfico escolhido[6].
O método de Graf (Quadro_I), uma classificação que se foca na morfologia
acetabular, é o mais utilizado, particularmente na Europa[6]. Neste método, com
a criança em decúbito lateral, são obtidas imagens coronais da articulação
coxofemoral que permitem o cálculo dos ângulos alfa e beta[8], que refletem a
cobertura óssea da cabeça do fémur pelo acetábulo e permitem a avaliação da
subluxação da anca, respetivamente[7].
Apesar da utilidade da ecografia no diagnóstico de DDA ser clara, o seu uso de
acordo com os dados obtidos no exame físico ou independentemente deste,
continuam a gerar controvérsia.
O objetivo deste estudo é relacionar os achados clínicos do exame físico com os
resultados ecográficos, utilizando o método de Graf para a classificação da
instabilidade da anca.
MATERIAL E MÉTODOS
O estudo foi realizado no serviço de Ortopedia e Traumatologia do Hospital de
S. João, no período compreendido entre setembro de 2012 e janeiro de 2013,
tendo obtido aprovação pela Comissão de Ética.
Foram analisados retrospetivamente os registo clínicos e ecográficos de
crianças nascidas entre janeiro de 2010 e janeiro de 2013, orientadas para a
consulta de Ortopedia Infantil com o objetivo de estudar a estabilidade da
anca.
Após obtenção de consentimento informado, foi aplicado o "Protocolo de
Rastreio da DDA" disponível na página da internet da Sociedade Portuguesa
de Ortopedia e Traumatologia, a partir do qual foram obtidos e analisados os
seguintes dados: género; critérios de risco (apresentação pélvica, história de
oligoâmnios, história familiar de DDA, deformidades congénitas do pé, torcicolo
congénito, síndrome polimalformativo); alterações ao exame físico (manobras de
Barlow e Ortolani, limitação da abdução da anca e assimetria das pregas) e
classe ecográfica segundo a classificação de Graf. As ecografias foram
realizadas com o intervalo máximo de duas semanas em relação ao primeiro exame
físico e foram analisadas por radiologistas especializados nesta patologia.
Para comparar proporções foram usados os testes Qui-quadrado ou de Fisher,
conforme apropriado. A concordância foi quantificada através da estatística
kappa de Cohen. Para avaliar a acuidade diagnóstica/discriminativa do método
ecográfico para a classificação de Graf foram calculados a sensibilidade, a
especificidade e o valor preditivo positivo. Toda a análise foi realizada com
recurso ao software STATA (versão 11.1), e o nível de significância foi fixado
a 0,05.
RESULTADOS
A amostra incluída neste estudo constituiu um total de 55 crianças (46 do sexo
feminino e 9 do sexo masculino), com uma mediana de idade de 53 dias (sendo o
valor mínimo de 1 dia e o máximo de 199). Sendo que 30 destas apresentavam pelo
menos um dos critérios de risco considerados, surgindo como o mais prevalente a
apresentação pélvica (n=22).
Das 110 ancas que foram submetidas a ecografia, 30 apresentavam classe de Graf
I, 56 classe IIa, 21 classe IIb ou superior e os dados relativos a 3 ancas não
estavam disponíveis. Em relação ao primeiro exame físico, 48 ancas apresentavam
pelo menos uma alteração no exame físico (16 limitação da abdução da anca; 8
Barlow positivo; 9 Ortolani positivo; 20 Assimetria de Pregas) e as restantes
62 revelaram um exame físico dentro dos parâmetros normais.
Conforme se referiu, 30 crianças que apresentavam pelo menos um critério de
risco, 16 tinham classe de Graf IIa e 9 tinham classe de Graf IIb ou superior.
Quanto ao exame físico, 50%, 15 num total de 30, revelaram um exame anormal.
Identificou-se 48 ancas com exame físico anormal, em que 22 apresentavam classe
de Graf IIa e 16 apresentavam classe de Graf IIb ou superior. Das 76 ancas que
apresentavam alguma alteração na ecografia, 38 apresentavam-se normais ao exame
físico.
Definiu-se 28 ancas como patológicas, (Barlow positivo, Ortolani positivo e
limitação da abdução da anca) ao exame físico, 14 (50%) foram definidas também
como patológicas (≥ IIb) na ecografia. Das 20 ancas definidas como patológicas
na ecografia, 6 não eram patológicas no exame clínico. No entanto, nas 56 ancas
com classe de Graf IIa, 12 (21,4%) eram patológicas no exame clínico.
Na análise efetuada, identificaram-se 16 ancas com LAA, em que 5 (35,7%) eram
imaturas (IIa) e 7 (50%) eram patológicas quando analisadas na ecografia. No
que se refere às ancas com Barlow positivo, contabilizou-se 8, das quais 4
(50%) eram imaturas e 4 (50%) patológicas. Das 9 com Ortolani, 4 (44,4%) eram
imaturas e 5 (55,6%) patológicas. Em relação à assimetria de pregas, 6 (30%)
eram normais, 11 (55%) eram imaturas e 3 (15%) patológicas.
A sensibilidade e especificidade da ecografia tendo como gold standard o exame
clínico foi de 82,6% e 37,7%, respetivamente, considerando uma ecografia
positiva quando esta é igual ou superior a classe IIa de Graf. Contudo, se se
alterar o cut off do teste e se considerar como positivas as ecografias iguais
ou superiores a classe IIb de Graf, os valores de sensibilidade e
especificidade foram 34,8% e 93,4%, respetivamente. Em relação ao valor
preditivo positivo, com a alteração do cut off, este passou de 50% para 80%.
DISCUSSÃO
A pesquisa de sinais de instabilidade da anca é um procedimento que deve ser
realizado desde os primeiros dias de vida da criança até à idade em que inicia
a marcha. Neste estudo, o foco incide principalmente no primeiro exame clínico
realizado por um especialista em ortopedia infantil.
Uma das limitações deste estudo prende-se com a impossibilidade de generalizar
alguns dos resultados obtidos, pois a amostra utilizada, corresponde a crianças
referenciadas ao ortopedista infantil, e desta forma, o seu risco, a priori,
não é igual ao da população geral.
Na amostra analisada, 46 crianças (83,6%) eram do sexo feminino, o que pode
traduzir a documentada tendência da doença para se desenvolver em crianças
deste sexo, com uma proporção de 9:1, chegando mesmo a constituir um critério
de risco[2, 4].
Neste estudo, a distribuição das idades na qual foi realizado o primeiro exame
clínico é muito assimétrica, com uma mediana de 53 dias, ou seja, 7-8 semanas.
Este dado é relevante, pois o prognóstico da DDA depende de um precoce
diagnóstico e tratamento[11]. Importante também é o facto de as manobras e o
método de imagem escolhido diferirem de acordo com a idade da criança, sendo
que apenas até aos 3 meses as manobras provocativas de Barlow e Ortolani e a
ecografia se revelam indiscutivelmente úteis[4].
No que diz respeito aos critérios de risco, a sua relação com o exame clínico
não se mostrou bem definida, dado que 50% das crianças com pelo menos um
critério de risco apresentavam um exame clínico normal e as restantes 50%
anormal. Quando relacionado com a classificação de Graf, nenhuma associação
nítida foi identificada (Quadro_II). Dessi et al, num estudo realizado em
crianças italianas relatou que na maioria dos casos a presença de critérios de
risco por si só não é particularmente significante ou suficiente para um
diagnóstico precoce de DDA[12], dados que parecem ir de encontro aos do
presente estudo. No entanto, é interessante notar que, das crianças com pelo
menos um critério de risco, 70% foram classificadas com Graf classe I ou IIa,
facto que pode traduzir a referenciação baseada na presença de critérios de
risco, mas que na maioria dos casos se mostraram como ancas sem necessidade de
tratamento. Esta ideia foi também demostrada por Sahin et al que relatou que
apenas 10% das crianças com critérios de risco apresentavam DDA[13].
No entanto, é importante ressalvar a ideia de que os critérios de risco são
fundamentais para orientar um possível rastreio, dado que crianças com pelo
menos um critério de risco têm 3 vezes maior probabilidade de desenvolver DDA
do que crianças sem critérios de risco[11].
O rastreio de DDA na população geral é um tema muito discutido e que gera
controvérsia, uma vez que, apesar de a ecografia ser uma ferramenta
indispensável ao diagnóstico e tratamento da doença, a sua utilização quer
generalizada, quer seletiva, acarreta bastantes implicações. Vários estudos
defendem um rastreio universal, alegando que correr o risco de não diagnosticar
é pior do que o de sobretratar[8, 14]. No entanto, uma política de rastreio
generalizado é bastante dispendiosa[15] e tendo em conta que existem outras
formas de rastrear a doença, nomeadamente os critérios de risco associados ao
exame clinico, pode ser mesmo desnecessária[13].
Torna-se então importante relacionar a ecografia e os achados do exame físico.
No presente estudo, foi estabelecida uma relação entre o exame clínico e o
resultado ecográfico demonstrado na tabela 3. Das ancas que apresentavam
alterações no exame clínico, 83% tinham também uma ecografia com alterações,
diferença estatisticamente significativa. Apesar disto, mais de metade (58%)
dessas alterações correspondiam a Graf IIa, o que traduz uma anca imatura. A
história natural das ancas com esta classificação causa polémica relativamente
ao seu tratamento, pois, na maioria dos casos, estes quadros resolvem-se
espontaneamente, tal como descrito no estudo realizado por Adriaan et al que
analisa a história natural de DDA, onde 84,4% dos casos com classe de Graf IIa
se tornaram normais sem tratamento[16]. Este facto foi também relatado por
Dessi et al, onde 94% dos casos de Graf IIa, avaliados um mês depois já eram
ecograficamente normais.
Das alterações ao exame clinico estudadas, a sua relação com a classe de Graf
(Quadro_III) mostrou diferentes cenários.
Quanto à limitação da abdução da anca, o atual estudo revelou que esta é uma
das alterações mais comuns, porém a sua presença não se associa a nenhuma
classe de Graf em particular. Omeroglu et al, no seu estudo prospetivo, mostrou
que a limitação da abdução da anca não é somente o achado clínico mais
encontrado, como também a razão mais comum para a referenciação a um
ortopedista infantil, o que provavelmente acontece devido à ansiedade da
criança durante o exame físico, mesmo que realizado em condições ótimas. Afirma
ainda que a limitação da abdução da anca é um achado importante no exame
clínico, mas nem sempre associado a DDA[11].
A presença de Barlow ou Ortolani positivo, neste estudo, traduziu-se sempre por
uma alteração ecográfica. Estas manobras provocativas são consensualmente
aceites como das mais relevantes para o diagnóstico de DDA nos primeiros meses
de vida[17].
A assimetria de pregas é um achado comum no exame clínico, que quando presente
pode estar associado a um risco quatro vezes superior de desenvolver DDA[11],
no entanto, neste estudo, essa associação não foi clara, pois das 10 crianças
que apresentavam assimetria de pregas apenas 3 (30%) necessitavam de
tratamento. Neste contexto, é fundamental referir que 25% das crianças sem
patologia da anca têm assimetria de pregas e por isso, quando isolado, não é um
achado clínico importante[4].
Se se analisar a relação entre uma clínica positiva, excluindo a assimetria de
pregas, e uma ecografia com alterações (Graf ≥IIa), 93% das ancas com clínica
positiva apresentam-se com Graf superior ou igual a IIa, o que demonstra uma
grande probabilidade de um exame positivo se traduzir por alterações
ecográficas. No entanto, a concordância entre estas duas variáveis não foi
muito elevada (k=0,1903), o que provavelmente é explicado pelo facto de muitas
das ancas que se apresentam como alteradas na ecografia, serem normais ao exame
físico.
Quando analisada a concordância entre uma clínica positiva e uma ecografia que
determina a necessidade de tratamento, ou seja, igual ou superior a IIb de
Graf, esta aumenta consideravelmente (k=0,4671). No entanto, ao contrário do
encontrado por Doguel et al, estudo que refere que das ancas definidas como
patológicas (≥ Graf IIb) apenas 28,37% eram também patológicas no exame clínico
[8], no presente estudo, essa proporção representa 70% das ancas. Diferença
estatisticamente significativa.
Roovers et al num estudo onde compara um grupo de doentes rastreados com
ecografia em diferentes etapas do crescimento e outro pelo exame clínico,
conclui que o rastreio com ecografia deteta mais crianças com DDA do que quando
é aplicado apenas o exame clínico[18], o que corrobora os nossos resultados,
onde encontramos mais crianças com DDA ecográfica do que no exame clínico.
De facto, a capacidade de detetar alterações pela ecografia é alta, com uma
sensibilidade de 82,6%, o que a torna um bom método de rastreio. Porém, com a
alteração do cut off, a sua especificidade aumenta em detrimento da
sensibilidade e a probabilidade de perante uma ecografia positiva existir
realmente doença também aumenta.
Apesar de muitos artigos serem publicados sobre o rastreio desta patologia
todos os anos, este assunto é alvo de contínuo debate e as estratégias adotadas
diferem consoante o local. Nos países germânicos, optam sobretudo por um
rastreio generalizado, enquanto na restante Europa, Austrália, América do norte
e partes da Ásia, o rastreio é seletivo[19]. A American Academy of Pediatrics
recomenda rastreio (ecografia e exame clínico) das ancas a todas as crianças do
sexo feminino com apresentação pélvica, e rastreio opcional para crianças do
sexo masculino com apresentação pélvica e do sexo feminino com história
familiar de DDA[5].
Em Portugal, a Sociedade Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia, recomenda um
rastreio de DDA que consiste na pesquisa de critérios de risco e no exame
físico: se no exame clínico não se encontrar sinais de instabilidade da anca
(Barlow positivo, Ortolani positivo ou limitação da abdução da anca), não há
indicação para realizar ecografia; se o exame clínico não apresentar sinais de
instabilidade mas apresentar critérios de risco, realiza-se ecografia às 6
semanas; se no exame clínico apresentar algum sinal de instabilidade realiza-se
ecografia logo que possível.
A concordância entre exame clínico e ecografia, no presente estudo, não se
mostrou elevada para o tamanho amostral, apesar do aumento que esta revelou
quando alterado o cut off de IIa para IIb de Graf para uma ecografia positiva.
A ecografia pode representar um bom método de rastreio, dada a sua
sensibilidade a detetar alterações, no entanto, não aumenta de forma
significativa a acuidade diagnóstica do exame clínico.