Disestesia peri-incisional após reconstrução do ligamento cruzado anterior:
Comparação entre dois diferentes tipos de enxerto
INTRODUÇÃO
A cirurgia de reconstrução do ligamento cruzado anterior (LCA) do joelho é
procedimento estabelecido na literatura[1]. Estima-se que 200.000 cirurgias de
reconstrução do LCA sejam realizadas anualmente nos EUA[1,2]. As possibilidades
técnicas são variadas com diferentes tipos de substitutos[3]. Das opções
autólogas é descrito o uso dos tendões dos músculos flexores do joelho
(semitendinoso e grácil {ST-G}) [4], o terço central do tendão patelar (TP)[5],
do tendão do quadríceps (TQ)[6] ou a porção anterior do tendão fibular longo
(FL)[7].
O terço central do TP e o ST-G são os mais freqüentemente utilizados[8-10]. Não
existe consenso quanto à superioridade de um ou de outro. Líden et al.
publicaram estudo comparativo entre as duas técnicas com um seguimento médio de
7 anos mostrando similaridade entre complicações e resultados funcionais[11].
Das complicações descritas após a reconstrução do LCA com enxertos autólogos
destacam-se aquelas envolvendo a área doadora[12]. Uma das complicações
descritas é a disestesia periincisional[12-18] Até o presente momento poucos
são os trabalhos avaliando sua presença[11,12].
O objetivo desse estudo é comparar a prevalência da disestesia peri-incisional,
seu tempo de duração, tipo e localização topográfica em dois grupos de
pacientes submetidos à reconstrução do LCA utilizando TP ou ST-G.
MATERIAL E MÉTODOS
Foram avaliados 202 pacientes (216 joelhos) submetidos à reconstrução
artroscópica do LCA do joelho com TP e ST-G no Hospital Madre Teresa de Belo
Horizonte entre 2008 e 2011 pelo autor sênior. A escolha do enxerto foi
aleatória. Como critérios de inclusão consideraram-se pacientes com indicação
de reconstrução do LCA e como critérios de exclusão pacientes com cirurgias
prévias no joelho, déficits neurológicos, dificuldade de compreensão e
incapacidade de resposta aos quesitos da pesquisa.
Os pacientes foram divididos em dois grupos com base no tipo de enxerto
utilizado para reconstrução do LCA: Grupo A - enxerto retirado do terço central
do tendão patelar e Grupo B - enxerto retirado dos tendões flexores (ST-
G). Dos 216 procedimentos realizados, em 111 utilizou-se o tendão patelar e em
105 os tendões flexores. O sexo masculino (162 pacientes - 80.2%) foi o
mais prevalente, assim como o lado direito (129 joelhos - 59.7%), este
seguido pelo lado esquerdo em 87 (40.3%) joelhos e por ambos os joelhos em nove
pacientes. A média de idade para o grupo A foi de 34.7±4.5 anos (variando entre
16 e 58 anos) e para o grupo B foi de 32.4 ± 6.9 anos (variando entre 17 e 51
anos). O tempo de seguimento médio foi de 24.4 ± 12 meses (variando entre 12 e
48 meses).
Os pacientes foram avaliados durante as consultas pós-operatóras subsequentes.
Eram então solicitados a tocar a região peri-incisional e a partir daí
fornecerem informações relativas à perceção sensitiva local. Quando presente, a
disestesia era caracterizada quanto à localização (superior, inferior, lateral
ou medial) e ao tipo (segundo a Escala de Highet). Os pacientes foram ainda
questionados se, em algum momento do pósoperatório, a disestesia esteve
presente e quando houve sua resolução. Teste piloto realizado antes da coleta
de dados não sugeriu perda significativa da precisão das informações por parte
dos pacientes.
Com base nestas informações os pacientes foram classificados segundo a Escala
de Highet[18]:
S0: anestesia;
S1: sensibilidade profunda preservada;
S2: sensibilidade dolorosa e tátil preservada com disestesia;
S3: sensibilidade dolorosa e tátil preservada sem disestesia;
S4: sensibilidade discriminativa presente e
S5: sensibilidade normal.
O estudo foi submetido e aprovado pela Comissão de Ética e Pesquisae o
consentimento informado foi obtido de cada participante. Nenhum incentivo
financeiro foi oferecido aos participantes para participação neste estudo.
A análise estatística foi realizada usando o programa Epi Info 2000 (Centers
for Disease Control and Prevention, Atlanta, GA, USA). Todos os dados foram
testados quanto à distribuição normal usando o teste de Shapiro-Wilk.
Resultados descritivos eram avaliados quanto à média e desvio padrão.
Psteriormente foram comparados usando o teste para duas proporções no software
Minitab versão 14[19]. O nível de significância foi definido como P<0.05 para
todos os testes.
RESULTADOS
Dos 216 joelhos analisados, em 59.3% (128 joelhos) houve algum grau de
disestesia, e em 40.7% dos pacientes não houve relato deste sintoma. Quando
analisados separadamente, encontrou- se 66 joelhos (59.5%) com disestesia no
Grupo A e 62 joelhos (59%) com o mesmo sintoma no grupo B (n.s.).
A distribuição quanto à topografia da disestesia se deu conforme a Figura_1. No
grupo A observaram-se casos com disestesia em mais de uma localização. Das
localizações associadas, observou-se disestesia lateral e inferior em quatro
joelhos, lateral e medial em três, lateral e superior em dois e apenas um
paciente apresentou disestesia nas quatro regiões do joelho. Não houve
disestesia em mais de uma topografia no grupo B.
Segundo a Escala de Highet, todos os pacientes com alteração sensitiva do grupo
A apresentaram Highet S2, já para os pacientes do grupo B, sete pacientes
apresentaram Highet S1 e um paciente Highet S0, com os demais (54 pacientes)
S2. Dos assintomáticos, 18 pacientes operados com TP relataram presença desse
sintoma em algum momento do pós-operatório com resolução espontânea variando
entre um e 24 meses (média de 12.27 meses). Três pacientes operados com ST-
G relataram presença temporária de disestesia, com tempo de resolução variando
entre um e 12 meses (média de 5.3 meses).
DISCUSSÃO
Poucos são os trabalhos comparando TP e ST-G quanto à disestesia após
reconstrução do LCA[11,12). A perda parcial ou total de sensibilidade na área
doadora após a reconstrução do LCA decorre da lesão de um ou mais ramos
infrapatelares do nervo safeno[20]. Segundo Horner e Dellon a seqüência de
recuperação da lesão do nervo periférico se dá inicialmente pela recuperação da
dor e sensação térmica e por último a sensibilidade tátil[21]. Essa recuperação
pode levar poucos dias ou até vários meses[11]. Encontramos tempo médio maior
para recuperação da disestesia no grupo A (12.7 meses) em relação ao grupo B
(5.3 meses). Essa diferença pode estar relacionada ao dano de maior número de
ramos do nervo safeno quando da retirada do terço central do tendão patelar
[21,22].
Busam et al [16] e Cohen et al[23] descreveram a lesão de ramos do nervo safeno
como complicação possível após a reconstrução do LCA, contudo nenhum deles
descreveu sua prevalência. Mochida et al. mostraram a diminuição da
sensibilidade peri incisional em 22% dos pacientes submetidos a cirurgias
artroscópicas simples[24]. Mirzatolooei et al.tentaram preservar os ramos do
nervo safeno através de dissecção meticulosa e obtiveram taxas inferiores de
disestesia quando conseguiam isolar algum ramo desse nervo na reconstrução do
LCA com ST-G (20.5% versus 48.9%)[13]. Hantes et al. mostraram maior
prevalência de disestesia em pacientes operados com enxertos de tendões
flexores (54%) em relação aos pacientes operados com tendão patelar (30%)[12].
Papastergiou et al. encontraram taxas menores de disestesia (39.7%) com STG
quando comparado ao TP[15]. Em nosso estudo, dos 216 joelhos analisados, em
59.3% houve algum grau de disestesia, não existindo, contudo, diferença
significativa quando analisado grupo utilizando tendão patelar (59.5%) com
grupo utilizando tendões flexores (59%).
Alguns autores tentaram relacionar a disestesia com o tipo de incisão. Portland
et al. relacionaram a disestesia com o tipo de incisão (vertical ou horizontal)
na retirada do TP. Encontraram piores resultados com a incisão vertical (59%)
quando comparada com a horizontal (43%)[14]. Papastergiou et al. encontraram
resultados semelhantes[15]. O tipo de enxerto e consequentemente o tipo de
incisão utilizada para sua obtenção parecem ser determinantes para a presença
de disestesia peri-incisional.
Quanto à topografia da disestesia, a prevalência tem relação direta com a
anatomia, uma vez que a porção superior das incisões (onde se observou menor
número de pacientes com disestesia nos dois grupos) parece não fazer parte da
área de inervação do nervo safeno. Apesar disso, Mirzatolooei et al. não
conseguiram identificar esses ramos em todas as tentativas de dissecção dos
mesmos[13]. Estudos anatômicos são necessários para avaliar a localização dos
ramos e suas variações, sua relação com o tamanho da incisão e suas implicações
na prevalência da disestesia após reconstrução do LCA.
Esse estudo apresenta algumas limitações. A primeira que a falta de avaliação
da sensibilidade no pré- operatório poderia tornar os achados pouco confiáveis.
A segunda relacionada ao fato de que as informações colhidas dependeriam
diretamente do entendimento por parte dos pacientes e indicação correta da
disestesia. Apesar deste importante viés, teste piloto realizado antes da
coleta de dados não sugeriu perda significativa da precisão das informações.
CONCLUSÃO
De acordo com o presente estudo não houve diferença estatística na prevalência
da disestesia peri-incisional entre as técnicas de reconstrução do ligamento
cruzado anterior.