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EuPTCVHe1646-21222013000400004

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variedadeEu
ano2013
fonteScielo

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Reconstrução anatómica do LCA com duplo túnel: Onde nos encontramos hoje?

INTRODUÇÃO A reconstrução artroscópica de um feixe único do ligamento cruzado anterior (LCA) com enxerto autólogo como o tendão rotuliano, isquiotibiais ou quadricípite permanece o gold standard no tratamento da rotura do LCA no doente ativo[1,2,3]. Durante os anos 90, a universalidade do conceito de "isometria" defendia a localização postero-superior do túnel femoral na chanfradura intercondiliana (entre as 12 e 1 horas no joelho esquerdo, 11 e 12 horas no joelho direito, com uma flexão de 90º), replicando essencialmente as fibras anteriores do LCA[4]. Estudos anatómicos recentes[5-7] vieram contrariar o conceito anterior, revelando que, ao invés de uma estrutura homogénea de um feixe simples, o LCA compreende dois feixes funcionais independentes, designados segundo a sua inserção na tíbia: o feixe anteromedial (AM) e o feixe posterolateral (PL) (Figura_1). Durante o arco de movimento funcional do joelho, o LCA funciona essencialmente como freio à translação anteroposterior excessiva. Estudos biomecânicos demonstraram ainda que o LCA, mais especificamente o feixe PL, desempenha um papel crucial na resistência às forças rotacionais impostas ao joelho[8]. Na sequência destes estudos, alguns autores questionaram o princípio utilizado na ligamentoplastia tradicional do LCA. Zantop e Fu[9] reportaram resultados insatisfatórios em 11 a 30% dos doentes submetidos a reconstrução do LCA com feixe simples e, numa meta-análise recente, Biau et al[10] revelaram que apenas cerca de 60% dos doentes atingem níveis de recuperação completos após a reconstrução segundo este príncipio.

Adicionalmente, está sobejamente descrita na literatura a incidência de alterações degenerativas 5 a 10 anos após a reconstrução do LCA[11,12]. Jonsson et al[13] associaram o desenvolvimento de atividade cintigráfica subcondral, incapacidade de retorno a níveis de atividade prévios e scores funcionais subjetivos pouco satisfatórios à persistência de um teste pivot-shift positivo, tendo concluído que a eliminação do pivoting poderá ter maior influência na prevenção das alterações osteoartrósicas do joelho do que a normalização da laxidez anteroposterior. Foi com base tanto no conhecimento anatómico atual, que enfatiza a importância do feixe PL na restauração da cinemática normal do joelho[14], como nos resultados menos positivos que foram associados à reconstrução de um único feixe, que surgiu o conceito de reconstrução anatómica do LCA.

Estudos biomecânicos em cadáver revelam que, de facto, a reconstrução anatómica dos dois feixes estruturais do LCA permite restabelecer de forma mais aproximada a estabilidade anteroposterior e rotacional do joelho LCA- deficiente, quando comparada com a reconstrução tradicional[15,16]. Quando consideramos a estabilidade rotacional em particular, estes estudos refletem um melhor controlo com a reconstrução adicional do feixe PL, comparativamente à reconstrução de um feixe simples[16,17]. O conceito cirúrgico de duplo túnel é igualmente suportado por outros trabalhos anatómicos e biomecânicos que relacionam a reprodução do footprint (pegada) nativo com a restauração das funções biomecânicas do joelho[18,19].

A técnica de replicação da anatomia complexa do LCA, através de um procedimento de duplo-túnel, para a reconstrução separada dos feixes AM e PL foi descrita inicialmente por Mott[20] em 1983. Rosenberg e Graft[21], em 1984, introduziram um procedimento assistido por artroscopia utilizando dois túneis femorais e um túnel tibial (Figura_2). Atualmente, são vários os aspetos técnicos e variações ao mesmos descritos na literatura[9,22-26], todavia, importa salientar que nem todas as técnicas duplo-túnel podem ser consideradas reconstruções anatómicas, sendo que alguns autores defendem que apenas reconstruções que incluam dois túneis femorais e dois túneis tibiais poderão ser assim designadas[27]. Apesar da florescência deste conceito nos últimos anos, os ensaios clínicos controlados são ainda raros e os existentes apresentam follow-ups curtos. A transferência intra-operatória da anatomia nativa dos dois feixes do LCA em extensão para a anatomia artroscópica em flexão tem dificuldades associadas com aspetos técnicos fulcrais como a identificação da posição artroscópica correta dos pontos de inserção, direção dos quatro túneis, enxertos ideais e técnicas de fixação[28]. Outra das dificuldades na abordagem da lesão e planeamento da cirurgia passa inevitavelmente, pela ausência de ferramentas que permitam abordar a cinemática complexa da estabilidade ligamentar durante os movimentos pivotantes do joelho in vivo.

PRINCÍPIOS BÁSICOS NA RECONSTRUÇÃO ANATÓMICA DO LCA A anatomia é a base da cirurgia ortopédica. Dentro do conceito de reconstrução anatómica do LCA residem quatro princípios fundamentais. O primeiro é a reconstrução dos dois feixes funcionais do LCA. O segundo passa pela reprodução dos pontos de inserção do LCA nativo através do posicionamento dos túneis na sua verdadeira localização anatómica. O terceiro princípio assenta na obtenção do padrão de tensionamento adequado para cada feixe, sabendo que o feixe AM se encontra tenso durante todo o arco de movimento atingindo um máximo entre os 45 e os 60º, enquanto que o feixe PL se encontra tenso essencialmente em extensão (Figura_1). O quarto e último princípio é advogado por inúmeras escolas[18,29] e defende cirurgia individualizada para cada doente.

A origem femoral do LCA é uma área ovoide que ocupa cerca de 18x11mm[30]. Nesta área, o feixe AM ocupa a porção mais proximal e o feixe PL ocupa uma posição mais distal, próxima da superfície articular anterior do côndilo femoral externo. Cada um dos feixes ocupa aproximadamente 50% da inserção femoral total, com áreas de 47±13 mm2 para o feixe AM e 49±13mm2 para o feixe PL[31].

Na tíbia, as inserções para os feixes AM e PL localizam-se entre as espinhas medial e lateral, numa área ampla que se estende posteriormente até à raíz posterior do menisco externo[18]. A área de inserção total na tíbia foi descrita como sendo de forma oval, com um diâmetro de 11 mm no plano coronal e 17 mm no plano sagital[32]. Os feixes do LCA são designados de acordo com a sua posição dentro desta área estando o feixe AM localizada na sua porção mais anterior e medial e o feixe PL na sua posição mais posterior e lateral. O tamanho da inserção tibial do LCA é cerca de 120% o da inserção femoral[18].

CONSIDERAÇÕES BIOMECÂNICAS O LCA é um elemento fulcral na resistência tanto à translação anterior da tíbia como ao torque rotacional imposto ao joelho[14]. Conforme referido anteriormente, a literatura atual sugere que cada um dos feixes do LCA contribui de forma singular para a cinemática do joelho. Apesar de ambos os feixes funcionarem em conjunto, o feixe AM revela-se o principal antagonista da translação anterior, enquanto que o feixe PL tem maior influência na estabilidade rotacional[8]. A distribuição das forças entre os feixes AM e PL em resposta a cargas de direção anterior aplicadas na tíbia foi estudada por Sakane et al[33] através da utilização de tecnologia robótica. Neste estudo, o feixe PL suportou a maior parte da força entre os 0 e os 15º de flexão e o feixe AM assumiu a maior parte da carga a partir dos 30º de flexão.

A reconstrução do LCA que segue estes princípios assume assim vantagens biomecânicas potenciais sobre a reconstrução de um único feixe por permitir um maior controlo da translação anterior da tíbia e melhorar a resposta às cargas rotacionais combinadas impostas ao joelho[28,34]. Tashman et al[35] desenvolveram uma análise cinemática de joelhos normais e joelhos submetidos a reconstrução de um feixe único do LCA, avaliando a translação antero-posterior e a rotação do joelho durante a atividade desportiva em plano inclinado. Os doentes submetidos a cirurgia de reconstrução do LCA demonstraram padrões de translação anterior da tíbia muito semelhantes aos sujeitos com LCA intacto, revelando, contudo, uma cinemática rotacional anormal[35]. Os resultados de Tashman foram confirmados por Ristanis et al[36] que sublinharam a falência da reconstrução tradicional do LCA na restauração da mecânica rotacional normal da articulação do joelho durante atividades de elevada exigência.

RESULTADOS CLÍNICOS E LIMITAÇÕES s resultados clínicos disponíveis parecem defender a superioridade da reconstrução duplotúnel na restauração da estabilidade anteroposterior e rotacional após rotura do LCA[24, 28,37-43].

Siebold et al[28], num estudo de nível I de evidência, compararam os resultados clínicos em 70 doentes randomizados prospetivamente para reconstrução anatómica com duplo túnel ou reconstrução de um feixe único, tendo verificado vantagens significativas no grupo submetido a reconstrução duplo-túnel tanto no que respeita à estabilidade anterior e rotacional como na pontuação obtida na escala International Knee Documentation Committee (IKDC) 2000. As pontuações na escala subjetiva de Cincinnati, escala de Lysholm e IKDC subjetivo não demonstraram, contudo, diferenças significativas entre grupos. Yasuda et al[40] compararam igualmente os resultados clínicos entre os dois tipos de técnicas, tendo demonstrado menos laxidez anterior na reconstrução anatómica, com base nas medições do KT-2000. As vantagens da reconstrução duplo-túnel são, assim, evidenciadas em vários estudos[18,19,22,23,25,28], no entanto, não foram ainda demonstradas diferenças significativas nos resultados subjetivos. Meredick et al[44], numa metaanálise de 2008, reportaram não existirem diferenças clínicas significativas nem na laxidez instrumentada com artrómetro (KT-1000) nem no teste de pivot-shift nos doentes submetidos a reconstrução com duplotúnel. Os resultados obtidos não permitem, portanto, suportar a filosofia da reconstrução anatómica do LCA que defende um melhor controlo da rotação do joelho. Por outro lado, verifica-se que nem todos os procedimentos duplo-túnel poderão ser considerados anatómicos que a realização de dois túneis na tíbia e dois túneis no fémur não resulta, per se, numa restauração anatómica do LCA[29].

Importa ainda referir que a identificação da posição dos túneis após a reconstrução do ligamento pode revelar-se difícil com a ressonância magnética ou com o estudo radiográfico simples, que estes são representações 2D de uma situação 3D.

A comparação das diferentes técnicas e avaliação dos resultados de forma a corroborar dados com significância é atualmente muito dificultada pela carência de um instrumento que permita ao ortopedista quantificar em termos absolutos e simultaneamente a estabilidade anteroposterior e rotacional do joelho.

RECONSTRUÇÃO ANATÓMICA FEIXE-ÚNICO O conceito e os princípios associados à reconstrução anatómica do LCA que decorreram da investigação da técnica de duplo-túnel podem ser igualmente aplicados à reconstrução de um único feixe. Conhecendo detalhadamente as inserções do LCA, o cirurgião poderá aproximar a posição e o tamanho dos túneis à anatomia do LCA nativo[29]. Freddie Fu[29], conhecido defensor da técnica duplo-túnel, defende a reconstrução anatómica de um feixe simples quando o ponto de inserção é inferior a 14 mm, face às dificuldades técnicas que a realização de dois túneis poderá comportar. Aliás, na Universidade de Pittsburgh, cerca de 30% das ligamentoplastias do LCA são realizadas reconstruindo apenas um único dos feixes, respeitando, no entanto, o princípio da anatomia. Está advogada a reconstrução rotineira de apenas um dos feixes do LCA nos doentes esqueleticamente imaturos, com alterações degenerativas do joelho, lesões multiligamentares ou que apresentem contusão medular dos côndilos femorais[29]. Ao conceito anatómico aplicado à reconstrução tradicional têm-se associado resultados clínicos e biomecânicos satisfatórios conforme demonstrado recentemente por Ho et al[45], que obtiveram resultados cinemáticos equivalentes entre a reconstrução antómica feixe-único centralizada nas inserções femoral e tibial do LCA e a reconstrução duplo-túnel.

CONCLUSÃO A reconstrução anatómica do LCA permanece um assunto complexo e um procedimento exigente do ponto de vista técnico. Os objetivos major da reconstrução duplo- túnel passam pela replicação dos parâmetros biomecânicos nativos e da anatomia normal do joelho. No entanto, deve ser enfatizado que a ciência atual não providenciou ainda estudos a longo-prazo que documentem, de forma inequívoca, as vantagens clínicas das técnicas de reconstrução independente dos dois feixes do LCA. Adicionalmente, o desenvolvimento de uma medida objetiva da estabilidade rotacional do joelho assume importância fundamental para que o clínico possa avaliar a cinemática in vivo do joelho reconstruído, que a persistência pós-operatória de um teste pivot-shift positivo é, neste momento, a principal condicionante de mau prognóstico após reconstrução do LCA[13]. Por outro lado, os valores da laxidez instrumentada (KT) que fazem parte da escala de prognóstico IKDC não demonstraram uma correlação evidente com os resultados subjetivos[44].

Os principais oponentes desta técnica mantêm acesa a discussão relativa ao posicionamento adequado dos túneis, padrões de tensionamento do enxerto, tempo aumentado de cirurgia e custos associados. Dependendo das técnicas de fixação escolhidas pelo cirurgião, os custos de uma abordagem duplo-túnel aumentam de forma significativa quando comparada com as técnicas tradicionais. Não obstante, toda a controvérsia relativa à reconstrução duplo-túnel e à abordagem anatómica da ligamentoplastia do LCA conduziu ao "renascimento" da cirurgia do LCA, fomentando a análise crítica da anatomia ligamentar e das técnicas utilizadas na prática clínica.

Ainda que os ensaios controlados em laboratório e os estudos clínicos relativos à reconstrução dos dois feixes funcionais do LCA pareçam promissores, são fulcrais estudos clínicos adicionais que permitam o aperfeiçoamento e a estandartização desta técnica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS "Siga as pegadas" esta pode acabar por ser a melhor metáfora para a reconstrução do LCA. Os autores acreditam que respeitar os footprints é crítico para o sucesso da reconstrução do LCA. A curva de aprendizagem, o tempo aumentado de cirurgia, a dificuldade na revisão e, essencialmente, a ausência atual de evidência que suporte de forma inequívoca a técnica duplo-túnel, são aspetos capitais que condicionam a nossa opção de prosseguir com o aperfeiçoamento das técnicas anatómicas de feixeúnico. Entretanto, absorvemos com interesse o desenrolar da discussão científica atual.


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