Estudo comparativo da distribuição de carga articulação anca intacta e com
prótese total press-fit e resurfacing
INTRODUÇÃO
A artroplastia total da anca é uma das técnicas de substituição funcional de
uma articulação do corpo humano com maior sucesso, a médio e longo prazo nos
diferentes registos ortopédicos1. A solução mais comum da artroplastia total da
anca baseia-se no corte da cabeça do fémur e introdução de uma haste e um
acetábulo na componente ilíaca. O método de fixação da haste no fémur tem sido
largamente estudado, existindo apologistas pela fixação press-fit em pacientes
jovens com boa qualidade de osso e cimentado nos casos mais complicados e com
qualidade óssea inferior. Mas a escolha do método de fixação depende de outros
fatores.
Contudo os últimos registos ortopédicos têm demonstrado o aumento de patologias
da articulação da anca com maior incidência em pacientes jovens na faixa etária
entre os 45 e os 59 anos2, com atividade física e com boa qualidade de osso.
Nestes casos existe a possibilidade de aplicação de uma prótese press-fit, ou
uma solução menos invasiva a prótese de resurfacing.
A prótese de resurfacing da articulação da anca é uma alternativa cirúrgica à
tradicional artroplastia total da anca em patologias associadas a dor:
osteoartrose, artrites, displasia e necrose avascular, em especial quando o
paciente possui boa qualidade de osso e jovem. Os registos ortopédicos têm
revelado nos últimos anos um aumento considerável do seu uso em pacientes
jovens3-5. Esta técnica cirúrgica diferencia-se da artroplastia convencional da
anca especialmente no componente femoral, a não utilização de haste no interior
do fémur e não procedendo ao corte da cabeça do fémur, permitindo assim a
manutenção de maior quantidade de osso.
A principal vantagem deste procedimento em relação à artroplastia convencional
total da anca prende-se com o fato de permitir uma mais fácil artroplastia de
substituição, em cirurgia de revisão. A outra vantagem prende-se com o facto de
com este método existir uma redução na probabilidade de descolamento do
implante ou loosening. Estes mecanismos de falha estão associados a pacientes
jovens devido à sua atividade física diária5-7.
No entanto existem desvantagens associadas à aplicação da prótese resurfacing.
Registos ortopédicos indicam que com o uso da prótese resurfacing na
artroplastia da anca, aumenta o risco de fratura do colo do fémur e o desgaste
do material da prótese aumenta7. Embora estudos anteriores indiquem que esta
metodologia deva ser aplicada em pacientes jovens, as diferenças entre a
solução de resurfacing e artroplastia total da anca não estão bem
esclarecidas8-12.
A prótese total press-fit da articulação da anca tem vindo a revelar crescente
aplicação nos registos ortopédicos1, justificada pelo aumento da taxa de
sucesso em alguns países nas últimas décadas, contudo inferiores às cimentadas.
Esta solução tem vindo a ser aplicada em pacientes jovens e com boa qualidade
de osso. Um fator de elevada importância nesta solução é o revestimento da
superfície, que vai facilitar a integração óssea na interface.
De forma a contribuir para um conhecimento mais efetivo sobre as diferenças
entre estas duas opções para prótese da anca, o principal objetivo deste
trabalho prende-se em avaliar as diferenças de comportamento das estruturas
ósseas com e sem prótese. O estudo pretende analisar comparativamente as duas
soluções por forma a dar indicações de como melhorar o seu comportamento.
MATERIAL E MÉTODOS
O presente estudo teve por base 3 modelos experimentais desenvolvidos
previamente. Um modelo da articulação da anca intacta com os diferentes
componentes (fémur, Ilíaco e cartilagem), o segundo modelo com prótese total
press-fit e o terceiro modelo com prótese resurfacing.
Os modelos experimentais foram baseados em ossos compósitos do fémur (ref.
3406) e do ilíaco (ref. 3405) Sawbones Pacific Research Labs, Vashon Island,
WA, U.S.A,modelos validados previamente13 e que representam o comportamento de
estruturas ósseas cadavéricas.O modelo da cartilagem foi desenvolvido por
técnica de RTV (Room Temperature Vaccum) uma camada de silicone com a forma da
cabeça do fémur e da cavidade acetabular de forma a simular a função da
cartilagem existente na articulação intacta e descrita previamente em diversos
estudos14-17.
O modelo com prótese total press-fit, foi utilizado uma haste femoral press-fit
Laffit® Selft locking, de 174mm de comprimento e com uma cabeça de alumina de
28mm de diâmetro. Este conjunto articula num componente acetabular de par
cerâmica- polietileno, que por sua vez encaixa numa cúpula de titânio na
cavidade do ilíaco de 60mm de diâmetro exterior.
No terceiro modelo foi implantado com uma prótese de resurfacing modelo
Birmingham® de 48mm de diâmetro, na cabeça do fémur e uma cúpula metálica de
58mm de diâmetro na cavidade acetabular com a referência de 179.256B. Os 3
modelos representados na figura_1 serviram de base para o desenvolvimento dos
modelos numéricos.
Figura_1
O correto posicionamento de cada um dos implantes nos modelos experimentais foi
garantido pela implantação in vitro, assim foram implantados por um cirurgião
recorrendo-se do instrumental adequado para cada um dos casos. Foi desenvolvido
um sistema de fixação para simular o posicionamento da articulação, fixando-os
na asa do ilíaco e no ramo ísquio de forma a garantir a posição natural da
articulação, com 7º e 9º nos planos sagital e frontal respetivamente, utilizado
previamente14, 15. Em cada um dos modelos foi aplicada a mesma carga de 1700N
no sentido vertical descendente.
A modelação dos componentes da articulação da anca intacta foi baseada nos
modelos experimentais utilizados mantendo a posição relativa dos componentes
(figura_1). Os modelos implantados experimentais, com prótese press-fit e com
resurfacing, foram digitalizados19 (componente femoral e acetabular), utilizou-
se o software de modelação CAD, Catia V5R19, Dassault Systemès, respeitando o
posicionamento real de cada um dos implantes na estrutura óssea. Na simulação
computacional de cada componente foi definido como material homogéneo,
isotrópico e com comportamento linear elástico por aproximação em estudo
comparativo (tabela_1) e utilizado em estudos prévios14. Cada estrutura foi
composta em elementos tetraédricos lineares como ilustra a figura_2.
Em todos os modelos foi considerado que a interface entre osso cortical e osso
esponjoso do ilíaco e do fémur se encontravam coladas. Entre a cartilagem e a
cabeça do fémur foi considerado um coeficiente de atrito de 0,00115, 16. Entre
o componente de polietileno e a esfera cerâmica foi utilizada uma prótese
press-fit com coeficiente de atrito de 0,220. No modelo de resurfacing foi
considerado um coeficiente de atrito entre a cabeça de resurfacing do fémur e a
cúpula metálica da cavidade acetabular de 0,320-22.
Foram aplicadas as mesmas restrições e casos de carga aplicados nos modelos
experimentais, ou seja, uma restrição do ilíaco na asa do ilíaco e no ramo
ísquio permitindo apenas translações verticais ascendentes e descendentes. Foi
definida uma restrição na parte distal do fémur que permite apenas as rotações
deste componente semelhante ao caso experimental.
RESULTADOS
Foram realizadas cinco repetições de aplicação de carga nos diferentes ensaios
experimentais, para validação experimental dos modelos numéricos. Verificou-se
que ambos os modelos apresentam um grau de correlação próximo de 1 (máximo de
1.12), verificando-se um valor de R2 de 0,92 para o modelo intacto, de 0,95
para o modelo com prótese press-fit e de 0,90 para o modelo com prótese de
resurfacing. Estes resultados revelam correlação entre modelos numéricos e
experimentais, permitindo assim estudar o comportamento biomecânico das
estruturas ósseas envolvidas, de forma mais aprofundada através dos modelos
numéricos.
Componente Femoral
A análise dos resultados comparativos foi realizada no fémur considerando os
quatro aspetos, anterior, posterior, medial e lateral ao longo da sua linha
média em termos de deformações principais (máxima e mínima) na superfície
exterior do fémur. Verificou-se que o aspeto anterior do fémur intacto é o que
apresenta menores deformações, apresentando valores de 1000 µε e -800 µε na
zona proximal, ao nível das deformações principais máximas e mínimas
respetivamente.
Os modelos implantados apresentam diminuição das deformações proximal e distal
neste aspeto. O modelo com prótese press-fit apresenta uma diminuição de 9
vezes relativamente ao modelo intacto indicando efeito de bloqueio de carga
conhecido como efeito de strain-sheilding. O modelo com prótese resurfacing
apresenta o mesmo efeito com diminuição da deformação proximal em 100%. Na
região distal a diferença dos modelos implantados são menores, observando-se
diferenças de 70% entre modelos intacto e implantados. A salientar a prótese
resurfacing apresenta um aumento da distribuição de deformação na linha
intertrocantérica, com valores 2 vezes superiores ao modelo fémur intacto
No aspeto lateral os modelos de fémur implantados (figura_3), revelam uma
diminuição das deformações principais máximas de cerca de 93% no modelo com
prótese press-fit e 43% na prótese de resurfacing na zona do grande trocânter
do fémur. Observou-se comportamento distinto após essa região, na zona da
diáfise, um aumento de 150% e 90% nos modelos com prótese press-fit e com
prótese de resurfacing respetivamente.
Figura_3
No que se refere a deformações principais mínimas, embora existam algumas
diferenças entre os três modelos, essas diferenças não são significativas. O
modelo com prótese de resurfacing é o que mais se aproxima do comportamento
nativo do osso em termos de deformações principais máximas e mínimas.
O aspeto medial do fémur intacto é o mais solicitado, apresentado 3000 µε e -
2500 µε para as deformações principais máximas e mínimas respetivamente (figura
4). As deformações principais mínimas apresentam diminuição na região do colo
do fémur, nos dois modelos implantados. Estes resultados sugerem alguma perda
óssea a longo prazo, mas mais focado no modelo com prótese press-fit. Na região
distal observou-se um aumento das deformações de 66% para o modelo com prótese
press-fit, e uma diminuição de 37% e de resurfacing, justificado pela alteração
do sistema de cargas.
Figura_4
No aspeto posterior não se verificaram alterações significativas na
distribuição de deformações ao nível das deformações máximas. As deformações
principais mínimas revelam comportamento semelhante entre modelos implantados,
com menores níveis de deformação.
A análise do comportamento no interior do fémur revelou, que a região mais
afetada é o aspeto medial em cada um dos modelos. Comparando o modelo intacto e
o com prótese de resurfacingno plano frontal,verifica-se um aumento
significativo das deformações na região do colo do fémur (figura_5).
Figura_5
A comparação com modelo de prótese press-fit verificou-se que os níveis mais
elevados de deformação acompanham a geometria da haste press-fit. O modelo
intacto apresenta um valor máximo de deformação de 2300 µε na região do colo do
fémur, enquanto o modelo com prótese press-fit apresenta um valor de 8700 µε no
final da haste. Na região próxima ao local onde ser verificou o máximo no
modelo intacto, encontramos a zona crítica do modelo com prótese press-fit,
onde apresenta um máximo de 4300 µε, 50% superior ao modelo intacto. O modelo
com prótese de resurfacing apresenta um valor máximo de deformação junto do
final da haste, no entanto na região crítica do modelo intacto, o modelo com
prótese de resurfacing apresenta um valor de 4000 µε, cerca de 2 vezes o modelo
intacto do fémur.
As deformações principais mínimas representadas na figura_6, observa-se que o
modelo com prótese de resurfacing é o que apresenta valores mais elevados,
existindo um concentrar de deformações no colo do fémur, e observa-se que as
maiores deformações seguem a geometria da prótese press-fit. O valor de
deformação observado na zona crítica, colo do fémur correspondeu -8000 µε na
região medial no fémur intacto, enquanto no modelo com prótese press-fit
observou-se apenas -4500 µε, logo efeito de bloqueio de deformações ou de
cargas. No modelo com prótese de resurfacing observou-se que as deformações
principais mínimas apresentam um valor máximo de -15000 µε junto ao final da
haste de resurfacing. Verificou-se na região onde o modelo intacto apresentou o
seu máximo (região inferior ao colo fémur), este apresentava um valor de -2500
µε, representando uma diminuição de 68%.
Figura_6
Componente acetabular
Na região de contorno do componente acetabular as deformações principais dos
modelos implantados acompanham o comportamento das deformações registadas no
modelo intacto (figura_7). No entanto, observou-se diminuição entre os modelos
intacto e com implante em duas regiões específicas, 90% na região anterior e de
85% na região posterior. E possível observar, a diminuição global das
deformações no ilíaco a quando da aplicação do componente acetabular, o que
poderá implicar perda de massa óssea.
Figura_7
Relativamente á restante estrutura óssea do Ilíaco, observou-se através dos
padrões de deformação presentes em cada um dos modelos que o modelo intacto foi
o que apresentou valores mais elevados de deformações (figura_8). No entanto,
relativamente aos modelos com implante, as diferenças entre ambos não apresenta
elevada importância. A diferença entre modelos com prótese e intacto centra-se
na região de contorno do ilíaco ou limbo acetabular e na zona do corpo do púbis
onde se observa diminuição da deformação.
Figura_8
DISCUSSÃO
Foi possível verificar a correlação entre modelo numérico e modelo
experimental, o que permitiu uma análise aprofundada da transferência de carga
entre modelos. O método de elementos finitos é um método bem estabelecido, na
determinação de tensões e deformações em estruturas mais complexas. Permite
prever os potenciais riscos de fratura dessas estruturas e por isso, largamente
aplicados em estudos biomecânicos de forma a prever o comportamento mecânico de
estruturas biológicas3, 27, 28.
Os resultados revelaram ao longo do aspeto medial, existe uma maior
distribuição das cargas aplicadas na articulação da anca. Comparando o
comportamento de cada um dos modelos, observa-se ao longo dos aspetos
considerados que o modelo com prótese de resurfacing é o que mais se aproxima
do comportamento do modelo intacto, apresentando resultados próximos dos
apresentados por Little et al3.
Os resultados ao longo do aspeto lateral revelaram uma diminuição das
deformações nos modelos com implante, estes poderão causar perda óssea na
região proximal do fémur com efeito de bloqueio de cargas (strain-sheilding).
No modelo com prótese press-fit, observou-se um aumento das deformações na zona
distal, comparando com o modelo intacto, mas não existe o risco de hipertrofia
pois os valores máximos de 1100 µε. Com a prótese press-fit não transfere carga
na zona proximal, transferindo esta para a zona distal do fémur o que levará
perda óssea no aspeto lateral.
Verificou-se que existe um aumento significativo das deformações principais no
fémur com prótese press-fit no aspeto medial e lateral e diminuição nos
restantes aspetos, podendo alterar a rigidez da estrutura óssea em comparação
com fémur intacto. A colocação de qualquer solução estudada altera a
distribuição das deformações principais no osso. Essa alteração deve-se às
hastes existentes em cada um dos implantes.
No modelo com prótese press-fit e resurfacing verificou-se que o máximo de
deformação ocorre na ponta da haste, podendo desta forma provocar falha por
fadiga nessa região. Este comportamento observado é algo espectável, uma vez
que a geometria da haste promove um acumular de deformações na sua ponta e dai
esse incremento de deformações nessa região, indo de acordo com resultados de
estudos prévios29.
Após colocação da prótese press-fit existiu uma diminuição de 60% das
deformações na região onde se tinha observado o máximo no modelo intacto (colo
do fémur), fenómeno semelhante ocorreu no modelo com prótese de resurfacing.
Este fator indica que as soluções descentralizam o problema daquela região
específica do fémur, para o colocar junto do final da haste em cada um dos
respetivos casos. No entanto, verificou-se que no modelo onde foi utilizado a
prótese resurfacing o problema do acumular de deformações no colo do fémur
agrava-se (zona próxima do intacto), sendo que este fator poderá originar falha
por fadiga nesta região. Este resultado vai de encontro ao afirmado por Mont7,
que afirma que a colocação de uma prótese de resurfacing, mantém presente o
risco de fratura na região do colo do fémur. Ao comparar o modelo fémur intacto
na região onde se observou o máximo no modelo com press-fit verificamos que
existiu um aumento das deformações nessa região em ambas as soluções. Os
resultados sugerem a colocação da prótese em posição mais varus por forma a
diminuir o risco de fratura do colo femoral e diminuindo as cargas na
articulação15.
Relativamente ao comportamento distal dos modelos, podemos observar diferenças
significativas na distribuição distal do fémur. Esta variação sugere a
ocorrência de alteração no sistema de cargas da articulação que poderá originar
as alterações nas deformações. A prótese total press-fit aumenta a distribuição
distal no aspeto medial e lateral, logo provoca maiores forças na reação da
articulação.
Relativamente ao componente acetabular, observou-se globalmente diminuição do
estado de carga na estrutura óssea. O Ilíaco apresenta na situação de intacto
maior solicitação na zona do acetábulo, em especial na zona do limbo acetabular
e na zona do corpo do púbis. As reduções são justificadas pelo bloqueio de
transferência de carga originado pelo acetábulo metálico, implicando a longo
prazo alguma perda de massa óssea nesta regiões. A restante estrutura apresenta
comportamento semelhante, contudo não é possível aferir este comportamento,
pois situa-se na zona de aplicação da carga.
CONCLUSÃO
A comparação entre o modelo intacto, modelo com prótese total press-fit e
modelo de resurfacing permitiu verificar que o modelo de substituição total da
anca que mais se aproxima do comportamento osso intacto é o modelo com prótese
de resurfacing. No entanto verificou-se que existem zonas em que existe o risco
de falha por fadiga é uma realidade e um problema a ter em conta em especial na
zona medial do colo do fémur no caso da prótese resurfacing.
O modelo com prótese press-fit apresenta efeito de bloqueio de cargas na zona
proximal, transferindo carga apenas no plano frontal, logo diminuindo as
deformações no aspeto anterior e posterior.
No componente acetabular observou-se a diminuição da deformação em ambas as
soluções, o que implicará a diminuição da massa óssea por efeito de bloqueio de
transferência de cargas.